Eric A. Posner & Glen Weyl, coautores do livro “Mercados radicais: reinventando o capitalismo e a democracia para uma sociedade justa” (São Paulo: Editora Portfolio/Penguin; 2019), dizem a base intelectual dessa idealização abstrata foi um postulado aceito apenas entre os economistas ortodoxos: “os mercados são perfeitamente competitivos”. Por hipótese, existiria um pequeno número de mercadorias homogêneas e nenhum indivíduo é capaz de possuir ou comprar uma grande parcela de qualquer uma delas.
Todos são obrigados a concorrer vigorosamente para vender seus produtos e comprar de outros o necessitado. O exemplo clássico de um mercado perfeitamente competitivo é o trigo nos Estados Unidos. Nenhum produtor de trigo detém uma grande fatia do mercado e, desse modo, nenhum produtor pode afetar o preço demasiadamente. Além disso, como muitos moinhos, fazendas e padarias compram trigo, nenhum comprador consegue forçar uma baixa de preço ao reduzir as compras. Todos têm de aceitar o preço predominante, isto é, oferecido pelo mercado, seja ele qual for.
No entanto, poucos mercados no mundo real funcionam dessa maneira, conforme perceberam teóricos econômicos pioneiros como Joan Robinson. Considere o processo de compra de uma casa. Os mercados imobiliários mais próximos da concorrência perfeita são os de cidades grandes, onde com frequência há disponibilidade de casas e muita procura.
Porém, como o sabe quem já comprou ou vendeu uma casa, o sistema está longe de ser perfeito. As casas divergem na localização, nas facilidades urbanas, nas paisagens, na iluminação e assim por diante. Estão longe de ser homogêneas, o que as diferencia por completo do trigo, cuja homogeneidade é, ela mesma, resultante de um cuidadoso desenho de mercado. Pode-se demorar meses até se chegar a um acordo, enquanto os compradores procuram outras casas possíveis de atenderem às suas necessidades.
Isso significa tanto compradores quanto vendedores disporem de um significativo poder de barganha [variável ao longo do tempo]. Cada lado se empenha em descobrir o quanto o outro estaria disposto a pagar ou aceitar, e manobra para conseguir o melhor preço possível. Muitas vezes, esse comportamento estratégico leva ao fracasso das negociações.
Mesmo quando dão certo, o processo demanda uma quantidade enorme de tempo e energia. Esses problemas aumentam em transações empresariais complexas. Por exemplo, em projetos de incorporação imobiliária, onde é preciso comprar vários terrenos adjacentes para construir uma fábrica ou um shopping, os proprietários das casas já existentes no local levam vantagem na negociação, porque o incorporador tem mais riscos em jogo. Muitos são os proprietários resistentes até conseguir um pagamento maior, atrasando ou mesmo interrompendo o projeto.
A maioria dos mercados com participação de indivíduos e empresas é mais parecida com o mercado imobiliário em lugar do cerealista. Fábricas, propriedade intelectual, firmas, pinturas — são todos ativos idiossincráticos, de tipo único. Neles e em inúmeros outros casos, o postulado da concorrência perfeita não faz muito sentido.
O mesmo se aplica a mercados de trabalho, visto todos os trabalhadores terem talentos e disposições diversos e viverem em lugares diferentes. Mesmo em muitos mercados de commodities relativamente homogêneas, como serviços de internet ou voos aéreos, prevalecem apenas algumas empresas dominantes. Até quando parecem ser muitas, não raro têm os mesmos acionistas ou estão mancomunados.
O poder de mercado — a capacidade de empresas e indivíduos afetarem os preços em benefício próprio — permeia a economia de cima a baixo. Logo, o poder de mercado é onipresente e intrínseco à atual estrutura institucional do capitalismo. Esta é uma das duas principais origens da estagdesigualdade e do conflito político.
O outro problema básico, na opinião de Eric A. Posner & Glen Weyl, é enquanto alguns mercados estarem entupidos de poder de mercado, faltam a muitas áreas da vida humana mercados capazes de melhorar imensamente o bem-estar das pessoas. Esse problema é mais agudo nos bens e serviços normalmente fornecidos pelos governos, como policiamento, parques públicos, estradas, assistência social e defesa nacional — faz-se necessário um mercado para a influência política.
Um mercado para a influência política? Parece absurdo. Se fosse permitido o dinheiro comprar influência política, a política não seria controlada por alguns poucos plutocratas? Esta foi a história da corrupção política nos Estados Unidos, no final do século XIX. Era comum as máquinas políticas, os empresários das linhas ferroviárias e os barões do petróleo comprassem os políticos locais.
O modelo alternativo diz todo cidadão dever ter voz igual. Portanto, todas as questões devem ser decididas pela regra da maioria, tem suas próprias e graves fraquezas. Quando a maioria prevalece, o que ocorre com os que pertencem à minoria?
Podem se preocupar profundamente com uma questão em particular — o direito dos indivíduos transgênero de usar o banheiro, por exemplo, ou a prevenção do aborto —, mas não dispõem de nenhum meio para exercer uma influência proporcional à importância dessa questão tem para eles. O sistema do voto per capita deixa de ser uma solução conciliatória entre grupos de pessoas e leva a brutais oscilações de poder entre blocos ideológicos.
A política não é o único campo da vida contemporânea no qual os mercados estão quase totalmente ausentes. Restrições severas à imigração impedem a contratação de mão de obra no exterior, criando uma lacuna no mercado de trabalho.
Dados constituem uma das commodities mais valiosas na economia digital. São coletados e monetizados por empresas como o Google e o Facebook, mas os usuários fornecedores desses dados não recebem nenhuma remuneração direta. O mercado de dados, embora seja muito necessário, simplesmente não existe. Nossa economia de mercado com competitividade supostamente perfeita está, na verdade, repleta de mercados monopolizados ou inexistentes.
Essas observações lançam dúvidas sobre os otimistas pressupostos da retórica econômica usual, mas também revelam oportunidades perdidas. Se encararmos o fato de os mercados seremtolhidos pelo poder de mercado e muitas vezes nem sequer existem, talvez possamos escapar à polarização entre esquerda e direita, e renovar a luta dos Radicais contra o preconceito e o privilégio.
A solução de Eric A. Posner & Glen Weyl para a crise atual é expandir radicalmente os mercados. Os capítulos 1 e 2, onde apresentam as ideias centrais deste livro, mostram como é possível fazer isso na economia e na política.
O capítulo 1 demonstra como um imposto simples pode, em grande medida:
- reduzir o incentivo ao abuso do poder de mercado e
- limitar a concorrência convertendo o mercado de propriedade privada numa espécie de mercado de “usos”.
O capítulo 2 descreve um mercado eficiente de “bens públicos”, partilhado por muitos e criado normalmente pelos governos.
Os outros capítulos têm focos mais limitados:
- o capítulo 3 defende políticas para a criação de um mercado de mão de obra imigrante mais eficiente e politicamente sustentável;
- o capítulo 4 defende um limite para as holdings financeiras capaz de romper o domínio opressivo dos investidores institucionais na economia;
- o capítulo 5 demonstra como as forças de mercado podem se estender à economia digital.
As ideias presentes nesses capítulos têm o poder de resolver a crise de nossa época. Podem incentivar a igualdade e o crescimento econômico, ao mesmo tempo promovendo a ordem pública e o espírito de conciliação.
Qualquer programa aspirante a mudanças tão abrangentes enfrenta enormes barreiras à sua adoção. Suas propostas exigirão anos de testes, aperfeiçoamentos e uma ampliação gradual antes de estarem prontas para ser totalmente implementadas.
Para ajudar os leitores a entender a radicalidade dessas ideias, cada capítulo começa com uma historieta fictícia. Ela ilustra como elas funcionariam em uma sociedade futura. Em seguida, examinamos a história por trás das instituições a serem erradicadas segundo os coautores, ressaltando os acidentes, paradoxos e passos em falso condutores à crise atual. Então vêm suas propostas, apresentadas em termos simples, e a seguir passam à defesa delas frente a objeções correntes. Por fim, oferecemos algumas formas de testar e refinar suas ideias.
Cada capítulo pode ser lido independentemente, mas a conclusão reúne as propostas e mostra o quanto atingiriam se implementadas em conjunto. No epílogo, imagina-se o que ocorrerá quando os ganhos dos mercados radicais se esgotarem.
Mesmo o leitor não adotando todas as suas ideias, Eric A. Posner & Glen Weyl esperam este livro abrir sua mente para uma nova maneira de imaginar a economia e a política. Esse momento crítico, quando se tem a derrubada de pressupostos persistentes desde longa data, está maduro para a reformulação radical.
Mercados Competitivos = Concorrência Perfeita: Autoengano de Economistas publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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