No livro de Andrea Dip, “Em nome de quem?: A bancada evangélica e seu projeto de poder”, há também um capítulo referente ao episódio quando, no Congresso Nacional, parlamentares evangélicos e católicos se uniram em uma missão que se tornaria uma de suas maiores bandeiras nos próximos anos: a exclusão dos debates sobre gênero nas escolas de todo o país.
Na época, era possível encontrar militantes pró-vida gritando “Não ao gênero!” diante de assembleias legislativas e não era incomum ouvir pastores televisivos, como Silas Malafaia, e parlamentares, como o Pastor Marco Feliciano, Jair Bolsonaro e o senador Magno Malta (PR-ES), bradando contra o que chamaram de “ideologia de gênero” – algo que traria a destruição da família e a doutrinação de crianças em uma teoria da conspiração absurda. A CNBB na época também divulgou nota afirmando que a “ideologia de gênero” “desconstrói o conceito de família, que tem seu fundamento na união estável entre homem e mulher”.
Os parlamentares proibiram votações, protestaram e encabeçaram batalhas com o objetivo de retirar o termo “gênero” dos planos municipais e estaduais.
Nas missas e cultos, cartilhas foram distribuídas alertando pais e mães sobre o perigo silencioso ameaçador do lar – aparentemente, os filhos seriam doutrinados a virar “outra coisa” caso contrariasse seu sexo biológico e inclusive ensinados a praticar sexo com coleguinhas. Surgiram até falsas cartilhas, atribuídas ao MEC, com imagens de crianças tendo relações sexuais. A militância conservadora não só conseguiria vetar essa parte do PNE como seria grande impulsionadora do Projeto Escola Sem Partido.
Criado pelo procurador Miguel Nagib em 2004, o Escola Sem Partido, como a iniciativa ficou conhecida, só ganhou força – e passou a ser replicado em projetos de lei pelo país – dez anos depois, como o próprio Nagib admitiu quando Andrea Dip o entrevistou: “A tentativa do MEC e de grupos ativistas de introduzir a chamada ‘ideologia de gênero’ nos planos nacional, estaduais e municipais de educação, o que ocorreu no primeiro semestre de 2014 e ao longo de 2015, acabou despertando a atenção e a preocupação de muitos pais para aquilo que está sendo ensinado nas escolas em matéria de valores morais, sobretudo no campo da sexualidade.” Além da proibição do que chamam de “ideologia de gênero”, o Escola Sem Partido prega “o fim da “doutrinação política e ideológica em sala de aula”, que seria encabeçada por professores de esquerda e marxistas.
Mas o curioso é que o termo “ideologia de gênero” não aparece nenhuma vez nos planos de educação, nos Estudos de Gênero, e nunca foi usado pelas Ciências Humanas. Isso não impediu de grupos protestarem em frente às palestras da filósofa Judith Butler, autora da Teoria da Performatividade de gênero, em sua visita ao Brasil. Também não impediu eles queimarem bonecos com seu rosto estampado e a agredirem, em episódios vergonhosos em São Paulo, no fim de 2017.
Butler, convidada a vir ao país falar sobre democracia, escreveu um texto para o jornal Folha de S.Paulo, a respeito dos ataques sofridos no Brasil, e explicou as diferenças entre a sua teoria e a denominada “ideologia de gênero”: “A teoria da performatividade de gênero busca entender a formação de gênero e subsidiar a ideia de que a expressão de gênero é um direito e uma liberdade fundamentais. Não é uma ‘ideologia’. Em geral, uma ideologia é entendida como um ponto de vista que é tanto ilusório quanto dogmático, algo que ‘tomou conta’ do pensamento das pessoas de uma maneira acrítica.”
O texto vetado no PNE colocava como meta “a superação de desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual”, após uma pesquisa realizada pelo MEC, em 2013, apontar que 20% dos alunos não queriam um colega de classe homossexual ou transexual.
Em um artigo para o site Justificando, Luciana Britto, psicóloga e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética, definiu a importância do debate de gênero nas escolas, principalmente para diminuir a violência contra mulheres e pessoas LGBTQ:
“A escola é um espaço não só para ensinar letras e números, mas também para promover cidadania; e, nesse sentido, deve ser espaço democrático e inclusivo, onde estudantes aprenderão que é possível o convívio com a diferença longe da violência e opressão. Uma escola que promova a igualdade de gênero não é uma escola que ensina crianças e adolescentes a serem gays ou que ensinam sexo de maneira inapropriada para as diferentes faixas etárias. É espaço pedagógico no qual se aprende que sexo é muito mais que natureza ou biologia, é também regime político da vida. Por isso acreditamos que a escola é lugar para o ensino do respeito mútuo.”
“Ideologia de gênero” se tornou conhecida pelo público brasileiro nas discussões sobre os Planos de Educação, em 2014 e 2015, e tem sido apresentado por idiotas como algo muito ruim, visando a destruir as famílias. Trata-se de uma narrativa criada no interior de uma parte conservadora da Igreja Católica e no movimento pró-vida e pró-família.
Em 2015, especialmente, algumas pessoas imbecis se empenharam em se posicionar contra a “ideologia de gênero”, divulgando vídeos em suas redes sociais: o senador pastor Magno Malta, o deputado Jair Bolsonaro, o deputado pastor Marco Feliciano, o pastor Silas Malafaia, a pastora Damares Alves, a psicóloga Marisa Lobo.
Quem imaginaria essa burrice toda vencer por 55% a 45%, ou seja, por apenas 6 pontos percentuais do eleitorado, a eleição para presidente em 2018. A ignorância colou com a campanha antipetista para resultar em todo este retrocesso histórico vivenciado atualmente.
Ideologia do Gênero publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário