quinta-feira, 6 de junho de 2019

Crise da Ordem Liberal

Eric A. Posner & Glen Weyl, coautores do livro “Mercados radicais: reinventando o capitalismo e a democracia para uma sociedade justa” (São Paulo: Editora Portfolio/Penguin; 2019), dizem a queda do Muro de Berlim ter sido um momento fundamental para definir suas identidades políticas. O “estilo americano” — livre mercado, soberania popular e integração mundial — tinha vencido o “império do mal” soviético. Desde então, esses valores — chamados por eles de “ordem liberal” — vêm dominando os debates intelectuais. Houve pensadores importantes decretando “o fim da história” por os grandes problemas sociais, ocupando por tanto tempo o centro do drama político, terem sido resolvidos.

Os dois coautores entraram na maioridade intelectual em uma era de confiança, satisfação e consenso intelectual global sem precedentes. Onde mais reinava essa atmosfera era no mundo da política governamental onde acabaram ingressando — um na área jurídica, outro na área econômica.

Ironicamente, foi a Economia, em lugar de qualquer outra área, a capaz de assumir o papel de liderança em um mundo do qual haviam desaparecido os debates sobre sistemas econômicos. Os economistas antigamente tinham ajudado a definir os extremos do espectro político: lembram-se de Karl Marx? Agora, se viam como as vozes dominantes da razão, a quem o público confiava as decisões de política governamental.

Nas universidades e associações profissionais, os economistas se concentravam em análises políticas de centro, as quais, sendo altamente matemáticas e quantitativas, aparentavam uma neutralidade ideológica. Enquanto isso, a área marginalizava os da esquerda radical (os marxistas) e os da direita (a chamada Escola Austríaca).

A maior parte do trabalho desenvolvido pelos acadêmicos nas áreas de Economia, Direito e Políticas Públicas tratava de:

  1. justificar as instituições de mercado existentes ou
  2. propor reformas moderadas, na essência, preservadoras do status quo.

Salvo raras exceções, os economistas convencionais dessa época tomavam como pressuposto o esquema predominante das instituições do mercado funcionar razoavelmente, dentro do limite do possível. Se os mercados “falhavam”, dizia a teoria, uma regulação moderada, baseada em análises de custo e benefício, daria conta do recado.

As questões de desigualdade eram em larga medida ignoradas. Os economistas acreditavam, em vista de tanta riqueza gerada pelos mercados, era possível tolerar a desigualdade. Bastava uma margem de segurança social para garantir os mais carentes não morrerem de fome. Um dos dois coautores foi trabalhar na Microsoft devido a seu interesse em ampliar a abordagem-padrão das plataformas tecnológicas modernas, e o outro se concentrou em questões de reforma jurídica. Enquanto isso, o chão começou a se mover sob seus pés.

Os primeiros tremores foram a crise financeira de 2008 e a recessão subsequente. Contudo, embora a queda econômica fosse a pior desde a Grande Depressão, por algum tempo parecia não ser muito diferente das outras recessões. Houve quem perdesse casa, emprego e crédito, mas isso já acontecera muitas vezes antes e a economia tinha se recuperado. Só em 2016 ficou evidente como a mudança fora drástica.

Notou-se o progresso econômico ocorrido antes da recessão ter sido, em grande parte, ilusório — tinha beneficiado basicamente os muito ricos. A disparada da desigualdade, a estagnação dos padrões de vida e o aumento da insegurança econômica simplesmente zombavam do velho estilo de análise político-governamental.

A raivosa reação política à recessão — exemplificada nos Estados Unidos pelos movimentos do Occupy Wall Street e do Tea Party — não arrefeceu com a recuperação econômica. As pessoas já não acreditavam nas análises político-governamentais dominantes das elites. Elas tinham servido de base para a desregulamentação financeira e para as impopulares injeções de liquidez em empresas pré-falimentares.

Com dúvidas pairando sobre o velho jeito de fazer as coisas e sem clareza sobre os novos rumos, a opinião pública se polarizou. Devido às antigas controvérsias, fermentando sobre questões culturais, em especial referente à imigração, a raiva contra as elites deu uma desagradável guinada nativista. Por todo o mundo, a xenofobia e o populismo emergiram em níveis não vistos desde os anos 1930.

Infelizmente, as ideias não acompanharam o passo da crise.

  • Responsabiliza-se o capitalismo pelo aprofundamento da desigualdade e pela redução do ritmo de crescimento, mas até agora não se apresentou nenhuma nova proposta.
  • Responsabiliza-se a democracia liberal pela corrupção e pela paralisia, mas o autoritarismo dificilmente oferece uma alternativa atraente.
  • A globalização e as instituições de governança global viraram os bodes expiatórios preferidos, mas não se propõe nenhum outro caminho viável para as relações internacionais.
  • Mesmo os governos mais bem conduzidos, dos países mais avançados, adotam a abordagem tecnocrática dominante do passado, apesar de seus múltiplos fracassos.

Assim, ao procurar uma saída desse impasse, os coautores viram-se relendo as obras dos pais fundadores da organização social moderna: um grupo de pessoas do final do século XVIII e do século XIX que se denominavam “economistas políticos” e “Radicais Filosóficos”, incluindo Adam Smith, o marquês de Condorcet, Jeremy Bentham, John Stuart Mill, Henry George, Léon Walras e Beatrice Webb.

Embora vivessem em um mundo diferente do nosso, esses pensadores — cujas ideias são examinadas mais adiante no livro “Mercados Radicais” — enfrentaram problemas parecidos. O sistema econômico e político herdados do século XVIII não era capaz de acompanhar as mudanças na tecnologia, na demografia, na globalização da época e no ambiente cultural mais amplo.

Os privilégios arraigados impediam as tentativas de promover a igualdade, o crescimento e a reforma política. Julgando os recursos intelectuais da época serem insuficientes para permitir um avanço, os Radicais Filosóficos desenvolveram novas ideias.

Elas tiveram um papel enorme no desenvolvimento de nosso sistema econômico moderno, baseado no mercado, e da democracia liberal. Suas ideias e reformas somavam as aspirações libertárias da direita atual e as metas igualitárias da esquerda atual, e constituem uma herança comum aos dois extremos do espectro político padrão. É esse espírito em comum o desejado reviver.

Crise da Ordem Liberal publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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