Martin Wolf é editor e principal analista econômico do Financial Times. No artigo (FT, 06/05/2020) compartilhado abaixo ele defende a saída dos governos continuarem tomando empréstimos, no longo prazo, tende a levar à inadimplência. A alternativa é mudar a distribuição de renda, para criar uma demanda sustentável e, assim, investimentos mais fortes, sem a dívida das famílias disparar. Quanta diferença dos liberais igualitários britânicos e norte-americanos para os neoliberais de direita brasileiros!
“É totalmente impossível… para os ricos poupar tanto quanto eles vêm tentando poupar, e poupar alguma coisa que valha à pena poupar.” Marriner Eccles, depoimento no Congresso dos EUA, 1933.
Dívida cria fragilidade. A questão é como fugir a essa armadilha. Para respondê-la, temos que analisar por que a atual economia mundial ficou tão dependente de endividamento. Isso não aconteceu devido aos caprichos despropositados dos dirigentes dos bancos centrais, como muitos supõem. Aconteceu devido ao desejo exagerado de poupar, em relação às oportunidades de investimentos. Isso aniquilou as taxas de juros reais e tornou a demanda dependente demais do endividamento.
Dois estudos recentes lançam luz tanto sobre as forças que impulsionam essa ascensão da alavancagem quanto sobre suas consequências.
Um deles, diretamente relacionado aos pontos de vista de Eccles, que foi presidente do Federal Reserve de 1934 a 1948, envolve “A Superoferta de Poupança dos Ricos e a Elevação da Dívida das Famílias”.
O outro, sobre “Demanda Endividada”, explica como excessos de dívida enfraquecem a demanda e baixam as taxas de juros, num processo de retroalimentação. Estão entre os autores de cada um deles Atif Mian, de Princeton, e Amir Sufi, de Chicago, conhecidos por sua excelente obra anterior sobre a dívida.
Como disse Eccles com tanta clareza, para além de um determinado ponto, a desigualdade enfraquece uma economia e leva os formuladores de políticas públicas a ter de fazer uma escolha desastrosa entre desemprego elevado ou endividamento cada vez maior.
O estudo sobre a superoferta de poupança defende duas teses.
Em primeiro lugar, o crescimento da desigualdade nos EUA resultou em um grande aumento da poupança do 1% superior da distribuição de renda, não acompanhado pelo crescimento dos investimentos. Em vez disso, a taxa de investimento caiu, apesar da retração dos juros.
O crescente superávit das poupanças dos ricos foi acompanhado pela crescente poupança negativa, ou o consumo superior à renda, dos 90% inferiores da distribuição de renda.
A poupança dos ricos pode ter conduzido a um superávit em conta corrente, como ocorreu no Reino Unido no fim do século XIX. Mas os ricos do restante do mundo procuraram acumular ativos americanos, e assim geraram um persistente déficit em conta corrente dos EUA. Os principais usuários dos excedentes das poupanças externa e interna são as famílias abastadas e o governo.
Há uma clara ligação entre a poupança dos ricos, a poupança negativa dos menos ricos, e o acúmulo de crédito e de dívida. Desde 1982, a queda do endividamento líquido dos ricos foi acompanhada pelo aumento do endividamento dos 90% inferiores [na distribuição de renda]. É por isso que o argumento de que as baixas taxas de juros prejudicam os menos abastados é absurdo. Os menos abastados não são grandes credores líquidos.
Os ricos são credores dos menos ricos, não apenas diretamente, via depósitos bancários, como também por meio de participações acionárias em empresas que também são credoras desse gênero. Esse fenômeno do crescente endividamento das famílias e da crescente desigualdade não é exclusivo dos EUA. É generalizado.
Por que a dívida crescente é importante?
Uma das respostas, como argumenta David Levy, é a de que a economia se torna cada vez mais impulsionada pelo crédito e cada vez mais frágil, na medida em que os tomadores ficam cada vez mais sobrecarregados.
Outra resposta é a ideia de “demanda endividada” – parente próximo da ideia de “recessões do balanço” sugerida pelo economista japonês Richard Koo. Com a disparada da dívida, as pessoas ficam cada vez menos dispostas a tomar quantias ainda maiores. Diante disso, as taxas de juros têm de cair, a fim de equilibrar a oferta com a demanda e evitar um profundo desaquecimento. Dessa maneira, acabamos onde estávamos ainda antes da covid-19, com taxas de juros reais zero.
Diante disso, como podemos fugir da armadilha da dívida? Uma das medidas é diminuir o incentivo a financiar empresas por meio de dívida mobiliária, e não de participação acionária. A maneira evidente de fazer isso é eliminar a preferência da primeira em detrimento da segunda, presente em quase todos os sistemas fiscais.
Também é possível, como argumentaram os professores Mian e Sufi em livro anterior, mudar de financiamento por dívida mobiliária para o financiamento por participação acionária no mercado de imóveis residenciais.
Além disso, temos uma enorme oportunidade agora de substituir os empréstimos governamentais a empresas, na crise da covid-19, por aquisições de ações. De fato, nas atuais taxas de juros ultrabaixas, os governos poderiam criar Fundos Patrimoniais Aoberanos instantâneos a um custo muito baixo.
Mas nada disso corrigiria a atual relação de dependência entre a estabilidade macroeconômica e o crescente endividamento. Existem duas soluções aparentes.
- A primeira é os governos continuarem tomando empréstimos. Mas, em prazo muito longo, isso tende a levar em algum tipo de inadimplência. Os abastados, que são os principais credores do governo, certamente arcarão com boa parte dos custos, de uma maneira ou de outra.
- A alternativa é mudar a distribuição de renda, a fim de criar uma demanda mais sustentável e, assim, investimentos mais fortes, sem fazer disparar a dívida das famílias.
Em 1933, Eccles também disse ao Congresso americano: “É para o bem dos ricos… que deveríamos tomar deles uma quantia suficiente de seu superávit para possibilitar que os consumidores consumam e que as empresas operem com lucro”. Isso realmente aconteceu, em parte por acaso e em parte deliberadamente, após a Segunda Guerra Mundial.
O crescente endividamento das famílias e do governo não estabilizará a economia mundial para sempre. Tampouco as bolhas dos preços dos ativos deveriam ocupar lugar tão dominante na nossa economia. Teremos de adotar alternativas mais radicais. Uma crise é uma época excelente para mudar de rumo. Comecemos já.”
Como fugir da Armadilha da Dívida (por Martin Wolf) publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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