Jairo Saddi é Doutor em Direito Econômico pela USP. Pós-Doutorado pela Universidade de Oxford, Bacharel em Direito pela FDUSP, Administrador de Empresas pela FGV-SP. Ele comenta a nova emenda autorizando o Banco Central a comprar e a vender ativos específicos em mercados secundários em artigo (Valor, 25/05/2020)
É da maior importância o novo art. 7o, II, da Emenda Constitucional no 106/2020, que recentemente entrou em vigor, e trata da atuação excepcional limitada ao enfrentamento da calamidade pública nacional decorrente da pandemia causada pela covid-19, provocada pelo coronavírus (Sars-CoV-2), reconhecida pelo Decreto Legislativo no 6, de 20 de março de 2020 e com vigência e efeitos restritos ao período de sua duração.
A nova EC 106/20 autoriza o Banco Central a comprar e a vender ativos específicos em mercados secundários nacionais no âmbito de mercados financeiros, de capitais e de pagamento.
Bancos centrais de diversos países já detêm a prerrogativa de comprar ativos. Desde 2008, por exemplo, o Fed anuncia programas específicos de compra de ativos para estimular a economia. E, mesmo em tempos não-extraordinários, no curso normal da política monetária, o Fed chega a comprar mensalmente vários e vários bilhões em ativos e também em títulos do Tesouro Americano.
A chamada “operação Twist”, em que o Fed vende títulos públicos americanos com vencimentos curtos para financiar a compra de papéis com vencimento longo, é um bom exemplo disto.
No Brasil, desde a Carta de 1988, é expressamente proibida ao BC a aquisição de títulos do Tesouro Nacional ou a qualquer órgão ou entidade que não seja instituição financeira, facilmente explicável pelo histórico ruim de relações promíscuas no Estado. A vedação era forma de assegurar a estabilidade monetária que já era um objetivo a ser perseguido quando acabou a conta-movimento entre BC e Banco do Brasil, em 1986. Quando veio a Constituição de 1988, muitos defendiam o cumprimento do artigo 164 como premissa para a inflação desaparecer da história brasileira.
Agora, no meio da pandemia, temos a infraestrutura legal de que o BC precisa. Mas veio com mudanças no Senado, projeto melhor e mais técnico, onde lá havia se estabelecido um numerus clausus dos ativos que poderiam ser comprados e vendidos pelo Banco Central em mercados secundários, a saber:
1- debêntures não conversíveis em ações;
2- cédulas de crédito imobiliário;
3- certificados de recebíveis imobiliários;
4- certificados de recebíveis do agronegócio;
5- notas comerciais; e
6 – cédulas de crédito bancário.
A Câmara dos Deputados alterou e restringiu o rol dos ativos e, no fim, numa nova redação, ficou consignado no art. 7o que o BC poderia adquirir:
1- títulos de emissão do Tesouro Nacional, nos mercados secundários local e internacional; e
2- os ativos, em mercados secundários nacionais no âmbito de mercados financeiros, de capitais e de pagamentos, desde que, no momento da compra, tenham classificação em categoria de risco de crédito no mercado local equivalente a BB- ou superior, conferida por pelo menos 1 (uma) das 3 (três) maiores agências internacionais de classificação de risco, e preço de referência publicado por entidade do mercado financeiro acreditada pelo Banco Central.
O artigo ainda acrescentou quatro parágrafos que não apenas dificultam o processo de atuação do BC, mas a tornam quase impossível. Já no primeiro parágrafo, o artigo afirma que será dada preferência à aquisição de títulos emitidos por microempresas e por pequenas e médias empresas.
Parece desnecessário nos alongar aqui, por tão óbvio que é, e tanto em razões de economia de escala quanto de escopo, mas, neste tipo de organização empresarial, o crédito simplesmente não chega e tais empresas não são emissoras de títulos privados sujeitos à aquisição pelo BC.
Já o segundo parágrafo, determina que o Banco Central do Brasil fará “publicar diariamente as operações realizadas, de forma individualizada, com todas as respectivas informações, inclusive as condições financeiras e econômicas das operações, como taxas de juros pactuadas, valores envolvidos e prazos”, fazendo tábula rasa do sigilo bancário e do dever de fidúcia do gestor financeiro quando usa de recursos de terceiros. Também é pouco aplicável e enfrentará sérios entraves.
Em terceiro lugar, obriga o presidente do Banco Central a prestar contas ao Congresso Nacional, a cada 30 (trinta) dias, do conjunto das operações previstas realizadas. Não há nada de errado nisto, como indica o princípio da accountability do Direito Americano, mas lá o poder emissor é do Congresso e não do Executivo, os seus dirigentes têm mandato e, como decorrência de um compromisso institucional (o Fed-Treasury Accord de 1951), a autoridade monetária é autônoma.
Finalmente, sobre a obrigatoriedade de rating, ou a classificação em categoria de risco de crédito no mercado local equivalente a BB- ou superior, conferida por pelo menos 1 (uma) das 3 (três) maiores agências internacionais de classificação de risco, com preço de referência publicado por entidade do mercado financeiro acreditada pelo Banco Central.
A classificação BB- já é considerada como junk bond, portanto, inferior de alto risco (o chamado investment grade é BBB ou Baa), e sua precificação não é simples, até porque rating é, em alguns casos, contratado pelo emissor, num potencial conflito de interesse entre contratante e emissor e, em geral, caro.
Não apenas só as maiores emissões conseguem ter ratings, como também ele não é a prova cabal da ausência de risco, mas apenas uma avaliação de terceiros sobre a capacidade da empresa em honrar suas obrigações até aquela data.
Por tudo isto, perde-se mais uma oportunidade de se fazer bem-feito uma medida real e necessária. Pena.
Emenda Constitucional 106/2020: “Orçamento de Guerra” publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário