domingo, 24 de maio de 2020

Choque Cambial sobre Balanços de Empresas

Nelson Niero e Rita Azevedo (Valor, 18/05/2020) informam: a combinação do real desvalorizado com o início da pandemia cobrou uma conta alta das empresas brasileiras no primeiro trimestre. Foram R$ 21 bilhões em prejuízo, considerando-se 112 companhias de capital aberto que publicaram suas demonstrações financeiras até a manhã de sexta-feira. No mesmo período do ano passado, essas empresas tiveram juntas um lucro líquido de R$ 11,7 bilhões.

Para evitar uma distorção na análise, a amostra não inclui a Petrobras, que fez uma reavaliação gigantesca de seus ativos de exploração e produção depois da reviravolta nos preços dos petróleo e fechou o trimestre com prejuízo recorde de quase R$ 50 bilhões (ver Petróleo barato dá tônica de balanços). A mineradora Vale também ficou de fora por causa da baixa contábil que fez no primeiro trimestre de 2019, quando aconteceu o desastre em Brumadinho (MG).

O efeito do câmbio sobre as dívidas, um fator recorrente nas várias crises vividas pelo país na era do real – a maxidesvalorização de 1999 é o marco inicial -, voltou a desarrumar os balanços no trimestre em que o real desvalorizou-se quase 30% em relação ao dólar, moeda com a qual é fechada a maior parte dos contratos de dívidas externas das empresas.

Como a contabilidade tenta refletir com a maior fidelidade possível os fatos econômicos, a cada fim do período fiscal esse estoque de dívida é convertido em reais para ser apresentado nas demonstrações financeiras, “marcado” ao valor de mercado. Vencendo ou não naquele exercício, o valor é corrigido na totalidade. O efeito na maior parte se restringe aos livros, sem se materializar num dispêndio de caixa (ver reportagem abaixo), mas as manchetes assustam e o choque pode, sim, ter efeitos práticos, como forçar o vencimento antecipado de dívidas.

“A desvalorização do real no período afetou fortemente o resultado financeiro das companhias. As despesas financeiras líquidas cresceram mais de quatro vezes em comparação aos três primeiros meses do ano passado, para R$ 56,3 bilhões”, diz William Volpato, coordenador do Valor Data, que compilou os dados da pesquisa.

Se o financeiro foi problemático, o operacional manteve-se acima da linha d’água, apesar de março já ter sido prejudicado pelo avanço da covid-19. O lucro operacional dessa amostra foi de R$ 30,4 bilhões, estável em relação ao mesmo período de 2019, apesar de a receita de vendas ter subido 11% (R$ 304,9 bilhões), o que mostra uma deterioração nos controles de custos e despesas.

O perigo está aí. Depois do choque financeiro, que tende a se dissipar nos próximos trimestres com uma possível estabilização ou reversão cambial, teremos neste segundo trimestre – já estamos na metade dele – uma segunda onda, desta vez nas operações, com o reflexo amplo e irrestrito do efeito sobre a atividade econômica das medidas que foram tomadas para combater a pandemia.

Com a provável exceção de setores como varejo alimentar e de medicamentos, liberados da quarentena, as empresas foram atingidas em cheio pela queda de receita, ao mesmo tempo que buscam adaptar seu pessoal e seus processos às novas regras de convívio virtual. A primeira reação foi preservar o caixa – e a sobrevivência -, com medidas como cancelamento ou postergação de dividendos e redução de investimentos.

A têxtil Cambuci diz, no balanço, que “caminhava para um crescimento robusto”, mas essa jornada foi interrompida pela covid-19. Em resposta, a empresa reduziu a capacidade operacional e cancelou, por tempo indeterminado, investimentos e contratações previstos para o ano.

“A maior parte das indústrias já mostra queda de volume, o que deve ser traduzido em uma menor diluição dos custos fixos no segundo trimestre”, diz Ricardo Schweitzer, analista da Nord Research. “Como pouquíssimos segmentos tiveram desempenho melhor no cenário de pandemia, o esperado é que, na média, os resultados sejam bastante afetados no financeiro pela variação cambial e, do lado operacional, pela queda das vendas.”

Os prejuízos recordes da fabricante de papel Suzano e do frigorífico JBS no primeiro trimestre tiveram um ponto em comum: a desvalorização cambial fez estrago nos resultados financeiros de duas companhias de setores completamente distintos.

A desvalorização de 29% do real nos três primeiros meses do ano reacendeu o debate sobre como essas variações violentas da moeda são registradas nas demonstrações financeiras. Pelas regras contábeis, o saldo das dívidas em moeda estrangeira deve ser convertido pela taxa de câmbio vigente no fim do trimestre, independentemente da data de vencimento das obrigações e se a dívida foi paga ou não naquele período.

Ao ter que explicar aos acionistas o rombo nas contas, dez entre dez gestores vão dizer que é “meramente contábil”, e emendar em seguida que “não tem efeito caixa”. Esse aparente desprezo, senão pela contabilidade, mas pelo regime de competência que rege as demonstrações financeiras, reforça um vício já arraigado no mercado de usar medidas “alternativas”, como o Ebtida, que costuram ignorar os efeitos chamados não recorrentes e, dependendo do grau de ajuste, ignorar qualquer efeito que impeça a empresa de chegar no resultado desejado.

Esse ruído de informação incomoda os especialistas não é de hoje. Em meio ao avanço da pandemia, a queda sem precedentes do preço do petróleo e os atritos políticos que mexiam com o câmbio, os professores de contabilidade Ricardo Lopes Cardoso e Natan Szuster decidiram que era hora de voltar ao assunto. A eles, uniu-se Eliseu Martins, professor emérito da Faculdade de Economia e Administração (FEA) da Universidade de São Paulo.

“Fala-se muito atualmente sobre a maior possibilidade da realização de baixas contábeis por causa da pandemia, mas a questão do câmbio não tem sido discutida da mesma forma”, afirmou Cardoso, professor da Fundação Getúlio Vargas, em entrevista ao Valor.

A preocupação torna-se ainda mais relevante porque, numa coincidência infeliz, as distorções causadas pelo reconhecimento da variação cambial somaram-se aos efeitos da introdução de uma nova norma contábil, a IFRS 16, que levou para dentro dos balanços ativos e passivos que antes ficavam de fora, como contratos de arrendamento. Na prática, são mais despesas financeiras, anotadas como gastos com juros de amortização dos ativos.

“Com a nova norma, o passivo em dólar de algumas companhias foi ampliado”, explica Szuster, professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Os professores não querem mudar as normas – pelo menos não no curto prazo. Eles sugerem que as companhias utilizem as notas explicativas das demonstrações financeiras para deixar claro a investidores, analistas e curiosos em geral quais são os desdobramentos da perda da variação cambial no passado, no curto e no longo prazos. “Seria interessante se as empresas tivessem uma divulgação mais padronizada, evitando ruídos”, diz Cardoso. “Hoje existe um abismo entre a informação contábil e a que é analisada pelo mercado.”

Uma maneira de tornar mais transparente essa informação seria uma explicação tripartite. A primeira traria ativos e passivos em moeda estrangeira que já foram liquidados durante o exercício e que, portanto, já passaram pelo caixa. A segunda trataria da parte dos ativos e passivos em moeda estrangeira classificados no ativo circulante e no passivo circulante que devem afetar o fluxo de caixa do próximo exercício. Na terceira, a companhia mostraria quais são os ativos e passivos em moeda estrangeira classificados no ativo não circulante e no passivo não circulante, que muito provavelmente não terão efeito imediato.

Para uma solução mais duradoura, os professores sugerem que empresas, auditores e órgãos reguladores e normatizadores considerem a possibilidade de bifurcar a variação cambial entre a demonstração de resultados – onde entrariam ativos e passivos em moeda estrangeira já liquidados ou circulantes – e em outros resultados abrangentes, no qual seriam colocados os ativos e passivos em moeda estrangeira que não vencem no curto prazo.

Segundo Martins, alternativas como essas já foram discutidas e sugeridas no meio contábil, sobretudo por países emergentes, nos quais a desvalorização das moedas locais é algo recorrente. “A grande questão é que o Iasb [Conselho de Normas Internacionais de Contabilidade, entidade responsável pela emissão de normas contábeis, com sede em Londres] é controlado por países que não sofrem com a questão cambial da mesma forma que os emergentes”, afirma.

Martins recomenda que as companhias sejam cautelosas ao mostrar os efeitos da crise nos resultados. “Eu defendo que as empresas abusem das notas explicativas ao invés de tentar fazer milagres no balanço”, diz ele. “Na incerteza de mensuração não reconheça, divulgue”, completa Cardoso.

André Ramalho e Rodrigo Polito (Valor, 18/05/2020) informam: a Petrobras foi o principal destaque negativo entre as grandes petroleiras globais no primeiro trimestre, ao anunciar um prejuízo recorde de R$ 48,5 bilhões para o período. Apesar do resultado no vermelho, puxado pela baixa contábil de R$ 65,3 bilhões, por perda no valor de ativos e investimentos (impairment), a estatal brasileira se mostrou, por outro lado, competitiva na disputa por mercado no cenário internacional, mesmo num momento em que a demanda global pela commodity se deteriora.

O choque dos preços do petróleo deu a tônica nos balanços financeiros das principais empresas do setor no primeiro trimestre, embora o impacto maior da crise seja esperado apenas para os próximos resultados. Levantamento do Valor Data mostra que, entre oito das principais petroleiras do mundo, a queda de receitas foi geral, mas que o recuo da Petrobras ficou abaixo da média de seus pares. A companhia registrou uma perda de 8,8% nas receitas, em dólares – menos do que companhias como Shell (-28,8%), SaudiAramco (-15,9%) e Total (-14,5%).

Em relação ao resultado financeiro, contudo, a situação é outra: o prejuízo da Petrobras foi desproporcional aos de seus concorrentes: em dólar, a perda da companhia, de US$ 9,7 bilhões, por exemplo, foi 1,7 vez maior do que os prejuízos da BP, Equinor, ExxonMobil e Shell, juntas. Essas empresas também anunciaram baixas contábeis, frente à desvalorização da commodity, mas nada comparável à brasileira. O levantamento mostra ainda quemultinacionais como Chevron, SaudiAramco e Total, por sua vez, conseguiram se manter no azul.

Mesmo com resultados no vermelho, BP, Equinor, ExxonMobil e Shell mantiveram compromissos de pagamento de dividendos aos acionistas – ainda que, no caso da Shell, a companhia tenha reduzido os valores por ação pela primeira vez desde 1945, no contexto da Segunda Guerra Mundial.

Ao anunciar prejuízo de R$ 48,5 bilhões do primeiro trimestre, a Petrobras, por outro lado, praticamente enterrou as chances de haver algum pagamento aos investidores este ano. A própria diretora financeira da estatal, Andrea de Almeida, afirmou, na sexta-feira, que, mesmo não sendo possível fazer projeções de resultados para o ano, será difícil recuperar ao longo de 2020 o impacto das perdas registradas no primeiro trimestre.

Apesar do prejuízo recorde, o balanço financeiro da Petrobras foi, de certa forma, bem recebido por analistas. O Ebitda (lucros antes de juros, impostos, depreciação e amortização) da empresa cresceu 17,6%, em dólares, para US$ 8,5 bilhões, e 36,4% em reais, para R$ 37,5 bilhões, na comparação com os três primeiros meses de 2019.

O Credit Suisse destacou que a Petrobras conseguiu surpreender positivamente, mesmo num contexto difícil. O Ebitda, segundo o banco de investimentos, ficou 30% acima do esperado. O UBS, por sua vez, pontuou que 2020 certamente será mais

difícil para as petroleiras, mas que a Petrobras, hoje, é diferente daquela de quatro ou cinco anos atrás. A empresa conta com uma estrutura mais enxuta e uma alocação mais inteligente de capital e, portanto, está mais preparada para lidar com a crise.

Já o Itau BBA citou, em sua análise, a nova queda do custo de extração da estatal, de US$ 6,60 no quarto trimestre para US$ 5,90 nos três primeiros meses de 2020 – no pré-sal o custo chegou a recuar para US$ 2,80 o barril. Além disso, o banco ressaltou que o petróleo da Petrobras tem sido vendido com descontos pequenos em relação ao Brent. No primeiro trimestre, por exemplo, o preço de venda foi de US$ 49,96 o barril, ante um patamar de Brent médio de US$ 50,26.

Esses dois indicadores revelam, em certa medida, como o petróleo da Petrobras tem se apresentado competitivo no mercado internacional. Mesmo diante da queda abrupta da demanda, a empresa tem ampliado as exportações. No primeiro trimestre, foram vendidos para o exterior, em média, 806 mil barris/dia, uma alta de 63,15% em relação a igual período de 2019. Em abril, quando a queda da demanda se acentuou, a companhia bateu recorde de exportação de óleo cru: 1 milhão de barris/dia.

A petroleira brasileira conseguiu compensar os efeitos da crise econômica na China, desencadeada pela pandemia da covid-19, e aumentar as exportações para outros países, como Chile, Índia, Cingapura e Espanha. Embora as vendas para o mercado externo devam recuar em maio, ante a recuperação da demanda no Brasil, os dados operacionais da Petrobras mostram, na visão do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo (Ineep), que a empresa tem tido uma vantagem competitiva no mercado internacional. Isso porque o óleo do pré-sal possui baixo teor de enxofre, especificação cuja demanda cresceu após a entrada em vigor, neste ano, da nova especificação mundial para combustíveis marítimos (IMO 2020).

O BB Investimentos destaca, porém, que os dados operacionais tendem a piorar no segundo trimestre, dadas as condições mais desfavoráveis do mercado.

Choque Cambial sobre Balanços de Empresas publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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