domingo, 1 de março de 2020

Epidemia Narrativa no Jornalismo Econômico

O consumo das famílias brasileiras está ainda 2% abaixo do atingido no quarto trimestre de 2014, quando atingiu seu máximo. Nos últimos cinco anos, diagnostica a editora adjunta da redação do principal jornal econômico, “as famílias, superendividadas, começaram um longo e penoso processo de desalavancagem, juntamente com as empresas”. Mistura alhos (empresas não-financeiras) com bugalhos (famílias).

A desalavancagem financeira das empresas ainda se processa. O crédito à Pessoa Jurídica caiu de 22% do PIB em 2017 para 20% em 2019, enquanto no mesmo período o crédito à Pessoa Física se elevou de 25,2% para 27,3% do PIB. O comprometimento financeiro da renda das famílias não paralisou seu consumo. Aumentou sim a cautela em relação ao futuro porque o emprego formal no setor privado da população ocupada caiu em termos absolutos de 2015 a 2018 e só aumentou 0,93% em 2019. A queda da confiança atingiu até quem não ficou desempregado como os servidores públicos.

O PIB real per capita caiu 8,8% de 2014 a 2016. Houve perda de massa salarial real entre 2015 e 2018, devido à não reposição inflacionária, dado o menor poder de barganha sindical. Foram cortados direitos previdenciários, obrigando assalariados e pejotizados de renda mais elevada aumentarem as reservas financeiras. Esse fenômeno foi agravado pela menor capitalização da renda fixa com a virtual zeragem dos rendimentos financeiros reais. Logo, o consumo se mantém em um piso sustentado graça aos benefícios sociais, inclusive a política de salários mínimos reais e as aposentadorias. São ameaçados pela ânsia de combate da atual política de Estado mínimo à “socialdemocracia”. Crescimento vegetativo é estagnação pela falta de dinamismo.

Economistas ortodoxos pautam de maneira equivocada os jornalistas. Apontam uma estagnação dos indicadores de produtividade, mas não destacam essa ser uma constatação ex-post. Quando a produção está em queda, evidentemente o resultado constatado é a queda da produtividade por trabalhador. O ritmo de desemprego é inferior ao da queda do volume produzido, por prevenção face ao custo de desempregar e depois recontratar e dar novo treinamento. Produtividade registrada a posteriori não depende a priori de qualificação profissional dos trabalhadores, mas enfrenta sim a carência de demanda efetiva. Indica um problema macroeconômico.

Em meados de 2019, segundo o CEMEC, o grau de cobertura das despesas financeiras pela geração de lucro operacional, isto é, a relação dívida financeira líquida / EBITDA das empresas de capital aberto, mesmo desconsiderando a Petrobras, devido ao seu peso, ainda estava em 1,91 (quase o dobro), bem abaixo de 5,25 atingido em 2015, mas ainda sem baixar para o nível de 1,20 em 2010. Analisando a alavancagem dessas empresas abertas pela relação dívida bruta / patrimônio líquido, ou seja, recursos de terceiros / recursos próprios, nas mesmas datas, ela foi de 0,65 em 2010 para 1,04 em 2015 e no 2º trimestre de 2019 tinha baixado para 0,87.

O retorno sobre capital era 15,7% e o custo do capital era 12,7% em 2005. Após as decisões de investimento e endividamento, em 2010, suas direções se inverteram com o primeiro caindo para 11,2% e o segundo elevando-se para 16,4% em 2015. Foi o pior momento, quando o custo do capital para as empresas superou o retorno em 5,2 pontos percentuais (pp). No 2º trimestre de 2019, havia ainda uma diferença de 1,4 pp: 11,8% contra 10,4%. Caiu bem o custo, mas o retorno também caiu – e permanece inferior.

Há também a desalavancagem financeira do setor público. As despesas com juros caíram abaixo de 5% do PIB pela primeira vez desde outubro de 2014 a partir do corte muito atrasado da taxa de juro básica em agosto de 2019. Em 2015, quando o juro estava 10 pp acima da Selic atual (4,25%), o governo geral gastou mais de R$ 500 bilhões, praticamente 9% do PIB, com juros! Querem independência do Banco Central do Brasil…

Investimento caiu do patamar de 20% do PIB em 2014 para o 15% do PIB desde 2016. Com a falta de dinamismo da absorção interna (consumo + investimento + gasto governamental), a esperança é colocada em exportação líquida. Mas ela não reagirá à depreciação da moeda nacional em relação ao dólar, por conta da queda da demanda externa.  Já caiu 9% no último trimestre de 2019. Com a desaceleração da economia mundial em geral e da China, em particular, por ser o epicentro do coronavírus, não se deve esperar o crescimento brasileiro no comércio internacional.

O problema agora não é só a crise econômica da Argentina, mas a quarentena da China. É disparada a maior parceira comercial do Brasil. Exportava 20% do total para ela em 2015. No ano passado, exportou 29%. Em seguida, na ordem, vieram Europa (19%), América do Norte (17%, inclusive Estados Unidos com 13%). América do Sul (12%, incluindo Mercosul com 7%), Oriente Médio (5%), África (3%) e América Central (2%). A Ásia (inclusive a China) foi o destino de 41% da exportação total.

O efeito multiplicador de renda já atua no sentido negativo. As agências brasileiras de turismo começaram a sentir o impacto da epidemia. Viagens de negócios e de férias para a Europa, e até para ver a Olimpíada no Japão, estão sendo canceladas, tornando mais difícil o cenário das companhias aéreas. Suas ações despencam. O surto gripal deve provocar perda de receita de US$ 29,3 bilhões no setor aéreo global neste ano.

Provas esportivas como maratonas e feiras de alimentos foram afetadas em todo o arquipélago japonês. A liga de futebol profissional informou o adiamento de partidas do campeonato nacional. Parques de entretenimento e restaurantes estão sendo fechados.

As vendas de alimentos e bebidas foram prejudicadas pelo fechamento de bares e restaurantes na China, juntamente com o adiamento de eventos e a queda do turismo na Ásia. As montadoras anunciam as operações em suas fábricas de automóveis na China, Japão e Coréia do Sul estarem sendo afetadas por problemas da cadeia de suprimentos. Quebraram elos da cadeia global de valor. Despencam as vendas. No mercado de tecnologia, as Big Techs não conseguirão alcançar suas metas. No setor de mineração, a maior demandante mundial é a China. Já se registra a “recessão do coronavírus”.

Sem a compensar, a epidemia levou fabricantes brasileiros de máscaras descartáveis e gel antisséptico a aumentar significativamente a produção neste início de ano, antes mesmo do registro do primeiro caso de Covid-19 no país. Houve um choque de demanda externa e, agora, esperam ocorrer o mesmo no Brasil. O valor médio da caixa de 50 unidades de máscaras no varejo dobrou de R$ 15 para R$ 30.

Mesmo as bandeiras de cartões de crédito diminuíram suas perspectivas de receita. As interações pessoais em economia de mercado se dão por dinheiro, vírus – e narrativas!

Contágio é a transmissão de uma doença de uma pessoa para outra por contato mediato (indireto) ou imediato (direto). Refere-se também à imitação involuntária por conta de absorção de uma narrativa comum: falta confiança no governo inerte. Constelação se refere a um grupo de compartilhamento dessa estória, influenciando outros. Quando duas ou mais narrativas são de certa forma coincidentes, há confluência de opiniões.

A metáfora primária usada para narrar o estado de uma crise econômica, dominante na mídia popular, é “a economia estar doente ou saudável”. É como ela precisasse de um doutor-médico capaz de administrar a dose certa de medicamento: política fiscal ou política de juros. Daí a mídia popular dá manchetes escandalosas sobre um termômetro chamado “confiança”, medido por diversos índices de confiança ou pelo Ibovespa.

O uso e o abuso dessa expressão são tantos a ponto de economistas heterodoxos a ironizarem com a metáfora “fada-madrinha da confiança”. Ela teria a varinha de condão para tudo mudar em direção às expectativas otimistas dos empreendedores!

Analisando os Indicadores de Confiança das Sondagens IBRE-FGV, pós-golpe, o visto é uma série de ondas. As medianas de Expectativas de Mercado, dada pela pesquisa Focus do Banco Central aponta também as tentativas-e-erros de propagandear uma retomada do crescimento. É tipo “agora vai” com alguma “reforma neoliberal milagrosa” até um factoide reverter a propaganda enganosa: Joesley Baptista, greve dos caminhoneiros, Brumadinho, Argentina, coronavírus…

Os peritos em previsões não falam com vozes discordantes. Todos adotam a mesma narrativa epidêmica ao mesmo tempo. E o que dizem é quase sempre errado. Na realidade, a Ciência Econômica é uma Ciência Exata. Erra 100% das vezes!

Um dos motivos para essa aglomeração das previsões em torno de certa narrativa consensual deriva da maioria delas basear-se apenas na assimilação de peritos das opiniões e previsões de outros peritos. Não é surpreendente assemelharem entre si.

A imprensa sempre consulta os mesmos notáveis e estes intelectuais midiáticos só leem o próprio grupo ortodoxo, quando não as mesmas fontes estrangeiras. Economistas desse grupo não respondem às perguntas porque sabem qual é a resposta. Eles respondem simplesmente porque foram perguntados…

Para peritos do mercado financeiro, cujas reputações profissionais podem estar em jogo, é sempre mais seguro cometer o mesmo erro cometido por todos os colegas. Por isso, raramente se distanciam muito do consenso narrativo. Mesmo quando os fatos e os dados desmentem suas previsões, os peritos preferem insistir no diagnóstico, pois senão seriam “culpados” individualmente de imperícia, em vez de se colocarem como “vítimas” de acontecimentos coletivos inesperados.

Publicado originalmente em:

Epidemia Narrativa no Jornalismo Econômico, por Fernando Nogueira da Costa

Epidemia Narrativa no Jornalismo Econômico publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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