Eric A. Posner & Glen Weyl, coautores do livro “Mercados radicais: reinventando o capitalismo e a democracia para uma sociedade justa” (São Paulo: Editora Portfolio/Penguin; 2019), dizem: mesmo sem ter restado nenhum rival da economia de mercado, ainda assim cabe indagar como deve se dar a organização dos mercados.
A concepção corrente na direita é “o governo precisa apenas sair do caminho”. Há uma ponta de verdade nesse argumento. Quando houve a derrocada dos países comunistas em 1989 e começo dos anos 1990, de início se teve a impressão de bastar remover o planejamento centralizado para surgir um mercado florescente.
Mas qualquer mercado sofisticado e em grande escala depende de regras bem concebidas e aplicadas, sem as quais grassam roubos, rompem-se constantemente contratos e prevalece a lei dos mais fortes. Essas regras podem ser sintetizadas em três princípios:
- liberdade,
- concorrência e
- abertura
Em um mercado livre, os indivíduos podem comprar os bens que quiserem, se pagarem um valor adequado para compensar os vendedores pela perda desses bens. Também precisam receber de terceiros, pelo trabalho feito ou pelos produtos oferecido, o valor criado por esses serviços para outros cidadãos. Tal mercado dá a cada indivíduo o máximo de liberdade se não ferir a liberdade alheia.
Como disse o importante radical filosófico John Stuart Mill: “A única finalidade pela qual o poder pode ser exercido de maneira justa sobre qualquer integrante de uma comunidade civilizada, contra sua vontade, é impedir causar danos a outrem”.
Os mercados não livres privam os indivíduos de oportunidades de ganho através do comércio. Um claro exemplo de restrições sobre a liberdade do comércio é o sistema de racionamento imposto em muitos países durante a Segunda Guerra Mundial. Embora defensável como expediente e elemento de coesão social necessário em épocas tais, o racionamento resultou em uma insípida uniformidade e deu origem a mercados negros e a economias de escambo. Permitiram, por exemplo, cigarros serem trocados por alimentos para crianças.
Em um mercado competitivo, os indivíduos precisam aceitar como um fato consumado os preços a pagarem e a receberem. Eles não são capazes de manipular os preços exercendo o que os economistas chamam de “poder de mercado”.
Os mercados não competitivos convertem o mecanismo produtivo do interesse próprio em um flagelo destrutivo, ao permitir indivíduos ou grupos obstruírem o comércio e reduzirem a produção para alterar os preços a seu favor.
Nos Estados Unidos, os cidadãos convivem com a luta contra os monopólios pelo menos desde a briga dos colonos americanos contra a exclusividade da Companhia das Índias Orientais sobre o comércio do chá.
Na segunda metade do século XIX, um movimento antimonopolista popular se ergueu contra os grandes cartéis da época, afetando a política e gerando partidos como o Partido Progressista nos Estados Unidos, o “novo Partido Liberal” no Reino Unido, o Partido Radical na França e o Partido Liberal Radical na Dinamarca.
Os monopolistas fornecem artigos de baixa qualidade a alto preço. Em um mercado aberto, todas as pessoas de qualquer nacionalidade, gênero, cor ou crença podem participar no processo de troca, maximizando a oportunidade de benefícios mútuos.
Os mercados fechados reduzem a oportunidade de troca e excluem injustamente algumas pessoas dos benefícios que dela decorrem. A abertura dos mercados de trabalho para novos participantes trouxe as contribuições das mulheres para os cargos de diretoria. A abertura dos mercados para aplicativos nos trouxe uma imensa variedade de usos de nossos smartphones. Os mercados abertos encarnam a ideia de a mais ampla cooperação possível trazer benefícios a todos.
Para Smith, os mercados a prosperarem ao redor constituem não só uma força produtiva, mas também uma força profundamente igualitária. Smith acreditava, fervorosamente, a desigualdade ser, acima de tudo, decorrente de restrições jurídicas e sociais favoráveis à aristocracia e incompatíveis com uma economia de mercado.
Smith não pensava os mercados livres, abertos e competitivos serem automáticos ou inevitáveis. O tema central dos Radicais Filosóficos era a luta contra uma sociedade dominada pela aristocracia.
Os Radicais reclamavam da aristocracia controlar o governo, levando-o a proteger seus monopólios ao restringir mercados e fechar fronteiras comerciais. Entendiam o privilégio econômico e o privilégio político como dois lados da mesma moeda e, assim, lutavam em favor de eleições democráticas competitivas e pela ampliação do direito de voto com a mesma energia a defenderem a abertura do país ao comércio internacional.
Esses pioneiros alcançaram muitas vitórias, mas logo perceberam suas propostas iniciais não serem suficientes. Ao mesmo tempo, enquanto os mercados fundiários e os mercados de trabalho avançavam, o capitalismo industrial se mostrava predisposto a criar novas formas de poder monopolista sobre fábricas, ferrovias e recursos naturais.
A ampliação do direito de voto enfraqueceu a aristocracia fundiária, mas as novas maiorias fortalecidas tiranizaram todas as minorias. Os capitalistas usaram seus recursos para corromper políticos e controlar a imprensa.
A expansão do livre-comércio internacional seguiu em paralelo com a política de poder internacional. A principal potência do livre-comércio — a Grã-Bretanha — explorava suas colônias para obter mão de obra escrava e recursos naturais.
A geração seguinte de reformadores liberais de fins do século XIX e início do XX, como Henry George, Léon Walras e Beatrice Webb, procurou responder a esses problemas. Os resultados de seus trabalhos, baseadps no legado dos Radicais Filosóficos, permanecem conosco até hoje.
As políticas antitruste e as bases jurídicas para sindicatos restringiram o poder dos monopólios. A previdência social, a tributação progressiva e o ensino gratuito e obrigatório fortaleceram a concorrência ao ampliar o acesso às oportunidades.
Os sistemas de pesos e contrapesos, a proteção dos direitos fundamentais e o maior poder judicial para proteger os direitos das minorias corrigiram a tirania da maioria. Instituições internacionais, o livre-comércio e tratados sobre direitos humanos se destinavam a pavimentar o caminho para uma maior cooperação internacional em uma ordem liberal.
Após a Segunda Guerra Mundial, essas reformas contribuíram para se iniciar um período de crescimento econômico, diminuição da desigualdade e consenso político sem precedentes nos países ricos. Esse grande sucesso do liberalismo [de esquerda nos Estados Unidos] trouxe transformações similares na política prática e na economia acadêmica.
Nas duas esferas, os dirigentes concluíram mercados mais ou menos perfeitos haviam sido alcançados. Abandonaram-se em larga medida ideias com objetivo de novos avanços na expansão do mercado ou a eliminação do poder dos monopólios.
Os economistas passaram a acreditar as diferenças nos talentos naturais dos indivíduos constituírem a principal fonte da desigualdade. Concordavam a tributação progressiva e os sistemas de bem-estar social serem necessários para assegurar uma distribuição justa, mas deviam ser limitados de modo a não prejudicar o tamanho da renda total.
Essa mudança fragmentou a coalizão liberal. Quem havia liderado a segunda geração de reformas constituiu a esquerda política moderna, conhecidos nos Estados Unidos como liberais e na Europa como socialdemocratas. [No Brasil como socialdesenvolvimentistas.]
Davam prioridade à igualdade no interior das nações e à abertura dos mercados a mulheres e minorias internas, grupos antes excluídos das trocas no mercado. Nos anos 1960 e 1970, conquistaram vitórias no movimento americano pelos direitos civis e no movimento feminista em todo o mundo desenvolvido.
A dissidência dos liberais ao priorizarem o livre mercado e a eficiência em detrimento da igualdade formaram a “direita” política moderna, conhecidos nos Estados Unidos como libertários e na Europa como neoliberais. [Assim como aqui, herdeira da cultura europeia luso-ibérica em lugar da norte-americana.]
Além de combater a intervenção estatal, a direita também teve papel fundamental ao empenhar-se por mercados mais abertos para produtos e capitais no plano internacional. Suas grandes vitórias se deram nos anos 1980 e 1990, quando vários países venderam suas estatais, desregularam a economia e se abriram ao comércio exterior.
No entanto, enquanto a desigualdade entre os países e entre grupos identitários dominantes (homens brancos) e outros (mulheres, afro-americanos) diminuiu, a desigualdade no interior dos países ricos aumentou. Os índices de crescimento caíram e nunca mais voltaram aos patamares da metade do século XX.
Com a estagnação econômica e a crescente desigualdade interna — a estagdesigualdade —, as políticas se deterioraram e se fragmentaram.
Embora alguns críticos acreditem a estagdesigualdade ser resultado de amplas forças econômicas e demográficas fora do controle das pessoas, Eric A. Posner & Glen Weyl acreditam ela resultar de um fracasso das ideias. O conhecimento econômico da esquerda e da direita não chegou ao cerne das tensões na estrutura básica do capitalismo e da democracia.
A propriedade privada conferiu intrinsecamente poder de mercado, problema disparado com a desigualdade e passado por mutações constantes interruptoras das tentativas governamentais de solucioná-lo.
O sistema de voto per capita deu às maiorias o poder de tiranizar as minorias. Pesos, contrapesos e intervenções judiciais impuseram limites a essa tirania, mas transferiram poder às elites e a grupos específicos de interesses.
Nas relações internacionais, as tentativas de fortalecer a cooperação e a atividade econômica transnacional fortaleceram uma elite capitalista internacional. Ela se beneficiou com a cooperação internacional de maneira desproporcional e enfrentou uma reação nacionalista da classe trabalhadora.
Dessa forma, as vitórias ideológicas e militares da Segunda Guerra Mundial e da Guerra Fria, acompanhadas pelas realizações econômicas e políticas na segunda metade do século XX, alimentaram a arrogância, responsável pela complacência e pela divisão interna. Os reformadores radicais do século XIX e começo do XX se tornaram os atuais tecnocratas irascíveis.
Regras para um Mercado Competitivo Sem Compadrio e/ou Favorecimento publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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