sexta-feira, 14 de junho de 2019

Invisibilidade das Circunstâncias

Sam Sommers, no livro “O Poder das Circunstâncias: entenda como o mundo à nossa volta influencia nossos pensamentos e comportamentos” (Rio de Janeiro: Elsevier; 2012), pergunta-se: “então, o que nos leva a explicar o comportamento de outras pessoas em termos internos, ditados pelo caráter? Abandonar o poder das circunstâncias pelo fascínio da personalidade? A resposta está na maneira como pensamos e também como nos sentimos.

Essa tendência resulta da forma como nossa mente assimila informações e também porque pensar dessa maneira torna nosso mundo um lugar previsível e tranquilizador.

É fácil ver as pessoas. Elas são tangíveis. O contexto é mais difícil: é um conceito abstrato e nebuloso, um cenário capaz de ser totalmente invisível. Nesse sentido, nossa lente social é definida para o foco superficial. Vemos o mundo com profundidade de campo limitada, enevoando o pano de fundo e acentuando a ação no primeiro plano em nítido contraste.

Exatamente porque é difícil ver as situações, é necessário esforço para reconhecer sua influência. Então, estamos bastante propensos a nos agarrar a explicações internas para o comportamento quando não temos energia mental para considerar as alternativas. Quando estamos cansados, ocupados ou sob pressão de tempo, nossos recursos cognitivos ficam ocupados e não conseguimos reunir a força mental necessária para superar o desafio do WYSIWYG: o que você vê é o que você obtém (what you see is what you get – WYSIWYG em inglês).

Quando nossa mente está ocupada com outras tarefas e preocupações, somos ainda menos capazes do que o habitual de ver as situações. Na maior parte do tempo, nossa tendência padrão é dar um salto automático para WYSIWYG, e às vezes somos impotentes para passar por cima dele.

Há também outra razão mais estratégica para o poder de atração do WYSIWYG. Muitas vezes, não queremos reconhecer a influência do contexto.

Os desastres naturais ocorrem sem aviso prévio. Os mercados financeiros caem em queda livre. O Cruzeiro ganha a Copa Brasil. Duas vezes seguidas e seis alternadas. O mundo pode ser um lugar imprevisível, então, alguma aparência de consistência na personalidade de nossos companheiros nos dá uma preocupação a menos. Faz-nos sentir mais no controle.

Afinal, não recorremos apenas a quaisquer explicações internas quando avaliamos o comportamento dos outros. Em especial, apegamo-nos à Teoria do Caráter Estável. No estudo do quiz show, a ideia de o apresentador parecer tão inteligente porque ele é a pessoa mais inteligente é a explicação mais simples para o que o público observa.

Nossa falsa confiança de sermos capazes de prever o comportamento dos outros é reconfortante e nos leva a resistir a provas em contrário. É reconfortante pensar nossos vizinhos serem capazes de nada pior em lugar dos pecados observados por nós: deixar as latas de lixo destampadas, estacionar muito longe do meio-fio e colocar um cachorro preso para latir durante todo o dia tal como fosse um alarme disparado.

Mas quantas vezes já vimos na televisão quando o colega de trabalho, ex-companheiro de quarto ou noiva diz: “Eu o conheço e ele não machucaria uma mosca”? Então surge a evidência para provar o suspeito ser, de fato, capaz de usar inseticida e outras coisas.

A motivação para ignorar situações é ainda mais forte quando as ações em questão são de mau gosto. É reconfortante rotular espectadores que não conseguem ajudar em uma emergência como cronicamente apáticos.

É o que pensamos quando ouvimos sobre o paciente desmaiado e morrendo na sala de espera, na frente dos funcionários do hospital. Eles não fizeram nada para ajudá-lo por mais de uma hora.

Ou a mulher atacada perto de seus vizinhos. Eles a ouvem gritar, mas nenhum deles intervém, grita pela janela ou chama a polícia.

Nossa reação imediata a essas histórias é pensar: Qual é o problema com essas pessoas? Nós nos agarramos à crença de que teríamos feito alguma coisa. No entanto, esse processo de pensamento ignora uma ampla gama de circunstâncias segundo as quais todos – você e eu incluídos – provavelmente continuamos fazendo o que estávamos fazendo, deixando de ajudar um concidadão em dificuldade.

Viés de Omissão: quando tanto uma omissão quanto uma ação podem levar a um prejuízo, claramente, sempre se opta pela omissão, pois os prejuízos por ela causados parecem subjetivamente mais inofensivos.

Viés de Ação: tornamo-nos ativos mesmo quando de nada adianta. Na evolução, inicialmente, a atividade compensava mais do que a reflexão. A inação de se aguardar não valerá nenhum reconhecimento de ter havido prudência na espera.

O WYSIWYG nos permite ver o mundo como um lugar estável e a nós mesmos sob uma ótica positiva. Ele nos permite resistir à ideia de que, se nos encontrássemos na mesma situação, poderíamos agir exatamente da mesma forma desagradável.

Além do fato de minha mãe sempre me ter dito eu ser único, qual é o fundamento para pensar que eu sou, de alguma forma, a exceção? No fim das contas, enquanto minha mãe podia ter sido mais criteriosa em seu elogio, tenho certeza de todos os puxa-sacos também dizerem às outras pessoas elas também serem especiais.

Não pense, porém, a mensagem deste capítulo do livro de Sam Sommers, “O Poder das Circunstâncias”, consistir na inevitabilidade de enxergar os outros em termos disposicionais. É uma tendência generalizada? Certamente: às vezes somos quase impotentes em evitá-la. Mas totalmente inevitável? Não.

Nem sempre fazemos inferências sobre a personalidade. Por um lado, muitas vezes reconhecemos o impacto do contexto quando pensamos em pessoas já bem conhecida por nós. Já vimos nossos amigos e familiares em uma variedade de cenários. Esse reservatório de memórias nos faz lembrar fulano ter um lado gentil além do lado detestável demonstrado agora.

Você também é mais propenso a reconhecer a influência do contexto quando é o ator em questão. As outras pessoas na fila para o banheiro não perceberam, mas fiquei sabendo: furei a fila só porque estava segurando uma criança de colo com a bexiga explodindo. Sei: não sou antissocial, mas não havia ninguém naquela festa com quem valesse a pena conversar. Em suma, há uma enorme diferença entre ser um observador e ser a pessoa envolvida na ação.

Você não vê a si mesmo através da lente do WYSIWYG porque, para melhor ou para pior, está amarrado a si mesmo o tempo todo. Viu como age de maneira diferente em diferentes contextos. Além disso, tendemos a ser excessivamente generosos quando nos avaliamos, por isso somos bastante motivados para dar uma desculpa para nosso próprio comportamento negativo em termos situacionais.

Outra maneira de pensar sobre inevitabilidade é considerar se há indivíduos não vítimas do WYSIWYG. Embora alguns cientistas comportamentais a tenham rotulado como uma tendência humana fundamental, pesquisas mais recentes sugerem a omissão de observar o contexto é particularmente pronunciada nas culturas americana, europeia e em outras culturas ocidentais.

A tendência de ignorar situações do passado e focar na ação à nossa frente não é um tipo de condição universal. Em vez disso, experiências e prioridades culturais moldam nossas tendências padrão para a forma como vemos o mundo.

Em especial, os ocidentais são os que têm mais probabilidade de ser discípulos ferrenhos da doutrina WYSIWYG, uma mentalidade consistente com o desdobramento natural dos valores ocidentais tradicionais, como individualismo, autossuficiência, singularidade pessoal e autorrealização. Esses ideais se traduzem facilmente em um foco social sobre:

  1. os indivíduos específicos em torno de nós e
  2. o que seu comportamento tem a dizer sobre o caráter subjacente.

Os entrevistados orientais, contudo, prestam mais atenção ao pano de fundo e ao contexto na cena. Psicólogos e antropólogos culturais sugeririam isso refletir a maneira mais holística e situacionalmente sensível do pensamento predominante nas sociedades asiáticas.

Esta é uma visão de mundo remontada à antiga ênfase chinesa sobre a obrigação social e a harmonia coletiva. De fato, os chineses estavam contemplando a inter-relação de todas as coisas enquanto os primeiros filósofos gregos elogiavam as propriedades únicas inerentes a cada objeto.

Enquanto a medicina oriental enfatizava o equilíbrio harmonioso de forças por todo o corpo, a medicina ocidental fazia experiências com a cirurgia, resolvendo problemas de saúde pela extração da parte do corpo problemática. Enquanto Pequim abriu as Olimpíadas com 2.008 percussionistas tocando em sincronia impressionante, a cerimônia de abertura de Atlanta se destacou pelas características inimitáveis de uma Celine Dion. Platão teria se sentido muito orgulhoso.

Não nascemos com o cérebro programado para ignorar o contexto. Na comparação relativa a como as crianças nas culturas ocidentais e orientais escrevem sobre o comportamento dos outros, há muitas semelhanças. Já os adultos evoluíram para ver as coisas de forma diferente, com os ocidentais voltando-se para explicações baseadas na personalidade para as ações dos outros.

Por exemplo, é comum escutar a crítica aos outros no Ocidente: “Ele é uma pessoa centrada apenas em si”. Os orientais apresentam relatos mais sensíveis ao contexto. Por exemplo, “Ele está desempregado e não tem condições de dar dinheiro”.

O contexto não precisa ser invisível, mas muitos de nós crescemos em culturas onde nos ensinam a focar os indivíduos logo de cara, a pensar sobre o que torna um objeto, pessoa ou qualquer coisa singular, em vez de considerar como se encaixa no ambiente à sua volta.

Não se iluda – personalidade e caráter existem. Algumas pessoas realmente são mais prestativas, mais agressivas ou mais despachadas em lugar de outras. Mas a forma como tendemos a ver um ao outro, especialmente no Ocidente, está fora de equilíbrio. Colocamos todos os ovos na cesta de personalidade, ignorando o contexto.

Felizmente, isso também significa você poder se treinar para não fazer isso ou pelo menos não agir assim o tempo todo. E este é o assunto deste livro de Sam Sommers, “O Poder das Circunstâncias”.

Invisibilidade das Circunstâncias publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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