sexta-feira, 14 de junho de 2019

Em nome de quem? A bancada evangélica e seu projeto de poder

O livro de autoria de Andrea Dip, “Em nome de quem: A bancada evangélica e seu projeto de poder” (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2018), conforme o prefácio escrito pela jornalista Marina Amaral toca em um tema tão poderoso quanto delicado: a penetração das Igrejas Evangélicas – sobretudo as Neopentecostais – no universo político nacional e em seu braço direito, a mídia. Como lembra a repórter Andrea Dip neste trabalho sobre a mistura explosiva de política e religião na vida nacional, ao assumir a Presidência da Câmara, em 2015, o deputado Eduardo Cunha disse: aborto e regulação de mídia só seriam votados “por cima de seu cadáver”.

Personagens como Marcelo Crivella, eleito prefeito do Rio de Janeiro com 1,7 milhão de votos, e Eduardo Cunha, peça-chave na articulação que derrubou a presidenta Dilma Rousseff, mostram os evangélicos mobilizarem não apenas os eleitores, mas também as forças políticas capazes de levar adiante o seu projeto político.

Em sua investigação, Andrea Dip levantou os projetos da bancada evangélica e entrevistou diversos deputados enquanto afinava a percepção sobre o tema junto a pesquisadores e estudiosos. Daí emergem os principais interesses dos políticos evangélicos:

  1. a manutenção de seus privilégios – isenção tributária e concessões de TVs e rádios;
  2. o avanço de pautas conservadoras, como a proibição do aborto, mesmo para os casos legalmente previstos;
  3. a proibição da discussão sobre gênero e prevenção da homofobia nas escolas,
  4. o retrocesso de direitos de grupos vulneráveis, como os travestis e transexuais.

As figuras evangélicas de projeção vestem ternos e carregam a Bíblia como fosse uma arma de convencimento. Representam valores reunidos no PL 6.583/2013, conhecido como Estatuto da Família. Ela reconhece como família apenas aquele “núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”. Isso significaria excluir metade dos lares brasileiros (50,1%), constituídos por outros arranjos familiares!

A respeito dessa exclusão se trata essa batalha política na construção de valores onde o bem é o pai, a figura patriarcal, e o mal é constituído por todos aqueles insubmissos a seus padrões:

  1. a mulher feminista,
  2. os não heterossexuais,
  3. os pobres que contestam o poder dos ricos, alçados a esse papel pelo mérito da fé, como defende a doutrina Teologia da Prosperidade, um dos pilares da ideologia evangélica.

O outro, como nos revela o livro, é a Teologia do Domínio. Esta explica por que o extermínio do diferente é intrínseco a essa ideologia.

Repórter sensível, com profunda bagagem no jornalismo, em especial no campo dos direitos humanos, Andrea Dip não demoniza a religião nem cai na armadilha da generalização. Mostra, por exemplo, a maioria dos evangélicos não concordar com pautas discriminatórias e o alinhamento dos políticos evangélicos – cortejados por anos pelo PT – ao impeachment de Dilma não foi automático. Traz depoimentos de fontes conhecedoras por dentro os artifícios utilizados para mobilizar as massas – e extrair o dízimo – e revela a resistência de parte dos fiéis em misturar religião e política partidária.

Andrea Dip consegue o feito de tornar simples a compreensão de um assunto complexo e cada vez mais relevante à medida que cresce a influência dos mandatos confessionais. Sempre lembra ao leitor vivermos em um país onde a laicidade do Estado é princípio constitucional.

Como repórter, Andrea Dip entendeu, em meados de 2017, quando escreveu o livro, aquele já ser o momento perfeito para o relato sobre um processo político e social apresentando, em seu cerne, a aproximação de uma direita liberal e conservadora com um projeto de poder que se desenha por uma parcela significativa das Igrejas Evangélicas, cujo número de fiéis e de parlamentares no Congresso vinha crescendo a cada legislatura.

Esse projeto alçou, em 2016, o bispo da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), Marcelo Crivella (PRB-RJ), à prefeitura do Rio de Janeiro, a segunda maior cidade do país. Esteve, na figura de Eduardo Cunha (MDB-RJ), no centro do impeachment da primeira mulher eleita presidenta do Brasil, Dilma Rousseff (PT-RS). Ele se colocou de forma emblemática na votação desse impeachment, no apoio à posse de Michel Temer (MDB-SP) à Presidência da República, nas votações do Congresso rejeitando duas denúncias contra ele – então empossado presidente – e em diversas proposições e projetos de lei de cunho religioso, moral e de manutenção de privilégios, como apresentado nos capítulos do livro.

Quem são as pessoas que estão levando adiante esse projeto de poder ligado às Igrejas Evangélicas? Como se articulam? Em nome de que (ou de quem) levantam suas bandeiras, votam suas pautas, fazem suas alianças?

Neste livro-reportagem, Andrea Dip retoma, aprofunda e atualiza as pesquisas para escrever a reportagem investigativa “Os pastores do Congresso”, publicada na Agência Pública em 2015. Muita coisa mudaria desde então.

No ano é 2017 já assistíamos uma onda reacionária se erguer no mundo – Donald Trump foi eleito em 2016. Ela já ameaçava direitos, pensamento crítico e pluralidade de ideias. Discursos de ódio deixaram de ser proferidos à boca pequena e ganham cada vez mais vozes e cada vez mais força. Déspotas conquistam cada vez mais espaço na política, e projetos em busca de tolher direitos dos “outros”, diferentes dos evangélicos, avançam.

No Brasil, essa reação tem características próprias. Uma delas vem da aproximação entre uma direita orgulhosa de si e a Igreja Evangélica, unidas pelo medo de um inimigo. Segundo sua fantasia, ele vem para “destruir a família tradicional”, os “valores cristãos”, o status quo. Por vezes, sem lastro com a realidade, toma rosto no comunismo, no feminismo, no movimento negro, na comunidade LGBTQ e em qualquer participação social em defesa da igualdade de direitos e por uma discussão mais profunda sobre seus papéis na sociedade.

Essa reação chega também, após 14 anos de governo de um partido autodeclarado de esquerda (embora sofra severas críticas por parte de uma parcela purista da esquerda), através do Congresso mais conservador eleito desde 1964, o qual se aproveita de um levante legítimo e importante nascido com as jornadas de junho de 2013 e transforma a insatisfação popular em um grande monstro amorfo, usado como pretexto para legitimar a manobra política culminada no impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016.

Nas ruas, manifestações que antes pediam o fim da corrupção se calam diante de denúncias graves, flagrantes, delações e provas envolvendo o presidente em exercício, Michel Temer. Grande parte dos parlamentares, depois, nem mais se esforçaram para disfarçar a escolha por aqueles em queda ou na manutenção no poder depende de negociação e aliança política.

A direita orgulhosa, religiosa e conservadora homenageia torturadores em carros de som nas grandes avenidas. Bruxas – na figura de grandes bonecos portando chapéus e vassouras, com rosto de filantropos e filósofas – são literalmente queimadas e pede-se que “meninas sejam meninas e meninos sejam meninos” ao vestirem, respectivamente, rosa e azul, em uma tentativa de achatar qualquer discussão mais complexa sobre questões de gênero.

Proibir o debate nesse sentido nas escolas, inclusive, tornou-se uma das maiores bandeiras da bancada evangélica, com parlamentares realizando verdadeiras cruzadas pelo país. Alguns professores ousados a discutirem política, feminismo e homofobia foram processados, afastados, vigiados. O projeto de uma Escola Sem Partido, calada e não crítica avança em projetos de lei municipais, estaduais e federais. Exposições de arte foram censuradas, a intolerância cresceu e a democracia se tornou um conceito em disputa.

Em visita ao Brasil para um seminário sobre os fins da democracia, a filósofa americana Judith Butler foi alvo de protestos violentos e ameaças por ser uma das principais referências nos Estudos de Gênero no mundo, Ela diria: “Se pensarmos a democracia como uma forma de governo cujas leis e instituições refletem o desejo das pessoas, então elas devem ser livres para pensar e debater o conteúdo dessas leis e das instituições.” E ainda: “E quando as pessoas são plurais e heterogêneas, isso significa que o pensamento deve se dedicar a conhecer e encurtar as distâncias entre elas. É estranho que esses desejos, que podemos chamar de democráticos, sejam considerados perigosos.”

Algumas décadas antes, em 1950, a filósofa Hannah Arendt também falou sobre a importância da multiplicidade de pensamentos na política, no ensaio “O que é política?”. Como bem definiu o historiador Clóvis Gruner, ao discorrer sobre o texto, “a filósofa Hannah Arendt define a política como um lugar de aparecimento de rostos, multiplicidades, diferenças e intervalos. Rostos porque a política não é feita de abstrações, mas de corpos que falam e agem. Multiplicidades porque não se trata de homogeneizar os sujeitos políticos, mas de fazer explodir singularidades. A multiplicidade faz aparecer as diferenças e os intervalos: a política faz-se também na reciprocidade entre os diversos. Eles constituem relações naqueles interstícios e intervalos capazes de os aproximarem sem, por isso, lhes anular a diferença. ‘A política’, diz ela, baseia-se na ‘pluralidade dos homens’; ela deve organizar e regular o convívio de e entre diferentes, não de iguais. Razão por que, para Arendt, ‘o sentido da política é a liberdade’”.

Se hoje temos nossa liberdade ameaçada por uma estrutura corrompida de poder, por ideias reacionárias, pelo ódio e pela intolerância, por distorções e achatamentos de conceitos (ou se isso já se transformou em algo outro, caso você esteja lendo do futuro), faz-se essencial entender de onde partimos.

Em nome de quem? A bancada evangélica e seu projeto de poder publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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