Yuval Noah Harari nasceu em 1976, em Israel. É autor de Sapiens: Uma breve história da humanidade, best-seller internacional publicado em mais de 35 países. É ph.D. em história pela Universidade de Oxford e professor na Universidade Hebraica de Jerusalém. O segundo best-seller de Yuval Noah Harari é “Homo Deus: Uma breve história do amanhã” (São Paulo: Companhia das Letras; 2015).
“O que será que nos espera hoje?”
Durante milhares de anos a resposta a essa questão não se alterou. Os mesmos três problemas preocupavam as pessoas da China no século XX, da Índia medieval e do antigo Egito. Fome, pestes e guerra sempre estiveram entre as principais dificuldades enfrentadas. Geração após geração os humanos rezaram para todos os anjos, deuses e santos e inventaram um sem-número de ferramentas, instituições e sistemas sociais — mas seguem morrendo aos milhões de inanição, epidemias e violência. Muitos pensadores e profetas concluíram que a fome, a peste e a guerra deviam fazer parte do plano cósmico de Deus ou de nossa natureza imperfeita, e nada a não ser o fim dos tempos nos livraria delas.
Mas no alvorecer do terceiro milênio a humanidade chegou a uma incrível constatação. A maior parte das pessoas raramente pensa sobre isso, porém nas últimas poucas décadas demos um jeito de controlar a fome, as pestes e a guerra. É evidente que esses problemas não foram completamente resolvidos, no entanto foram transformados de forças incompreensíveis e incontroláveis da natureza em desafios que podem ser enfrentados. Não precisamos rezar para nenhum deus ou santo para que nos salvem deles. Sabemos bem o que precisa ser feito para evitar a fome, as pestes e a guerra — e geralmente somos bem-sucedidos ao fazê-lo.
Pela primeira vez na história, hoje morrem mais pessoas que comeram demais do que de menos; mais pessoas morrem de velhice do que de doenças infecciosas; e mais pessoas cometem suicídio do que todas as que, somadas, são mortas por soldados, terroristas e criminosos. No início do século XXI, o ser humano médio tem muito mais probabilidade de morrer empanturrado no McDonald’s do que de seca, de Ebola, ou em um ataque da Al-Qaeda.
Por isso, apesar de presidentes, executivos e generais ainda terem suas agendas preenchidas por crises econômicas e conflitos militares, na escala cósmica da história o gênero humano pode erguer os olhos e começar a perscrutar novos horizontes. Se realmente a fome, a peste e a guerra estão sob controle, o que irá substituí-las como prioridade na agenda humana?
Como bombeiros em um mundo sem incêndios, o gênero humano no início do século XXI deve fazer a si mesmo uma pergunta sem precedente: o que vamos fazer conosco? Em um mundo saudável, próspero e harmonioso, o que vai exigir nossa atenção e nossa engenhosidade?
Essa pergunta torna-se duplamente urgente em razão dos novos e imensos poderes que a biotecnologia e a tecnologia da informação estão nos oferecendo. O que vamos fazer com todo esse poder?
Antes de responder a essa pergunta, precisamos nos estender um pouco mais sobre a fome, a peste e a guerra. A informação de que as controlamos pode chocar muitas pessoas, para quem essa alegação pode soar ultrajante, extremamente ingênua ou talvez insensível. E quanto aos bilhões de pessoas que sucateiam suas vidas sobrevivendo com menos de dois dólares por dia? E quanto à crise da aids na África, ou as guerras que estão sendo travadas na Síria e no Iraque? Para abordar esses temas preocupantes, examinemos de perto o mundo no início do século XXI, antes de explorar a agenda humana para as próximas décadas.
Comecemos com a fome, que há milhares de anos é o pior inimigo da humanidade. Até recentemente, a maioria dos seres humanos vivia no limite mesmo da linha da pobreza biológica, abaixo da qual as pessoas sucumbem à desnutrição e à fome. Um pequeno erro ou um pouco de azar poderiam facilmente constituir-se em sentença de morte para uma família, ou uma aldeia toda. Se chuvas pesadas destruíssem sua colheita de trigo, ou se ladrões levassem seu rebanho de cabras, você e seus entes queridos poderiam passar fome até morrer. Infortúnio ou estupidez em nível coletivo resultavam em fome massiva. Quando uma seca rigorosa atingia o Egito antigo ou a Índia medieval, não raro 5% ou 10% da população perecia. As provisões tornavam-se escassas; o transporte era lento e dispendioso para permitir a importação de comida; e os governos eram fracos demais para salvar a situação.
Abra um livro de história e provavelmente você vai deparar com relatos terríveis de populações famintas, enlouquecidas pela fome. (…) Aproximadamente 2,8 milhões de franceses — 15% da população — morreram de fome entre 1692 e 1694, enquanto o Rei Sol, Luís XIV, flertava com sua amante em Versalhes. No ano seguinte, 1695, a fome assolou a Estônia e matou um quinto da população. Em 1696 foi a vez da Finlândia, onde entre um quarto e um terço da população morreu. A Escócia sofreu sob uma fome rigorosa entre 1695 e 1698, e alguns distritos perderam até 20% de seus habitantes.
A maioria dos leitores provavelmente sabe qual é a sensação que se tem quando se deixa de almoçar, ou quando se jejua em alguma data religiosa, ou quando se vive em alguns dias o choque de comer apenas vegetais, como parte de uma nova e maravilhosa dieta. Mas qual é a sensação de não comer durante dias, sem ter ideia de onde achar a próxima migalha de comida? De modo geral, hoje em dia as pessoas não experimentam mais esse tormento excruciante. Nossos antepassados, pobres deles, o vivenciaram bem demais. Quando gritavam a Deus “Salvai-nos da fome!”, era exatamente isso que tinham em mente.
Durante os últimos cem anos, desenvolvimentos tecnológicos, econômicos e políticos criaram uma rede de segurança cada vez mais robusta, que separa a humanidade da linha biológica da pobreza. Ondas maciças de fome ainda atingem algumas regiões de tempos em tempos, mas são exceções, quase sempre provocadas por políticas humanas e não por catástrofes naturais. Não ocorrem mais surtos de fome por causas naturais; há apenas fomes políticas. Se pessoas na Síria, no Sudão ou na Somália morrem de fome, é porque alguns políticos querem que elas morram.
Na maioria das regiões do planeta, é improvável que uma pessoa que perdeu seu emprego e todas as suas posses morra de fome. Sistemas de seguro privados, agências governamentais e ONGs internacionais podem não a resgatar da pobreza, mas a proverão de um número de calorias diárias suficiente para que sobreviva. Coletivamente, a rede global de comércio transforma secas e inundações em oportunidades de negócios e possibilita superar a escassez de alimentos de modo rápido e barato.
Mesmo quando guerras, terremotos ou tsunamis devastam países inteiros, esforços internacionais para evitar a fome são geralmente bem-sucedidos. Embora centenas de milhões de pessoas ainda passem fome quase todos os dias, na maioria dos países o número de mortes por inanição é muito pequeno.
A pobreza certamente causa muitos outros problemas de saúde, e a má nutrição reduz a expectativa de vida até mesmo nos países mais ricos. Na França, por exemplo, 6 milhões de pessoas (cerca de 10% da população) padecem de insegurança nutricional. Acordam cada manhã sem saber se terão algo para comer no almoço; frequentemente vão dormir com fome; e as refeições que conseguem obter são desequilibradas e pouco saudáveis — amido, açúcar e sal em excesso e, por outro lado, carência de proteínas e vitaminas.3 No entanto, insegurança nutricional não é fome, e a França do início do século XXI não é a França de 1694. Até mesmo no pior dos cortiços em torno de Beauvais ou Paris, as pessoas não morrem porque não comeram durante semanas a fio.
A mesma transformação aconteceu em inúmeros outros países, mais notadamente na China. Durante milênios a fome assolou todos os governos chineses, do Imperador Amarelo aos comunistas vermelhos. Poucas décadas atrás, a China era exemplo de um país que enfrentava a escassez de alimentos. Dezenas de milhões de chineses morreram de fome durante o desastroso Grande Salto para a Frente, e especialistas previam que o problema só iria se agravar. Desde 1974, porém, centenas de milhões de chineses foram resgatados da pobreza, e, ainda que centenas de milhões mais sofram de privações e de subnutrição, pela primeira vez em seus registros históricos a China está livre da fome.
Na verdade, na maioria dos países, o hábito de comer demais tornou-se um problema muito pior que o da fome. Conta-se que, no século XVIII, Maria Antonieta aconselhou as massas famintas a que, se ficassem sem pão, comessem brioches. Os pobres hoje estão seguindo literalmente esse conselho. Enquanto os moradores ricos de Beverly Hills, nos Estados Unidos, comem salada de alface e tofu no vapor com quinoa, nos cortiços e guetos os pobres se empanturram com bolinhos recheados, salgadinhos artificiais, hambúrgueres e pizzas.
Em 2014, mais de 2,1 bilhões de pessoas apresentavam excesso de peso em comparação com 850 milhões que sofriam de subnutrição. Prevê-se que metade da humanidade estará com excesso de peso em 2030.4 Em 2010, fome e subnutrição combinadas mataram cerca de 1 milhão de pessoas, enquanto a obesidade matou 3 milhões.
Homo Deus: Uma breve história do amanhã publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com

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