terça-feira, 2 de abril de 2019

Fluxo ou Fluir

O livro de autoria de Mihaly Csikszentmihalyi, “Flow: A Psicologia da Felicidade” (London: Rider; 2017), resume, para uma audiência geral, décadas de pesquisa sobre os aspectos positivos da experiência humana – alegria, criatividade, o processo de envolvimento total com a vida. Ele chama isso de fluxo. Flow pode ser traduzido também pelo substantivo fluidez – característica de ser natural, espontâneo – ou pelo verbo fluir:  percorrer distâncias (no espaço ou no tempo) com rapidez.

Dar esse passo é um tanto perigoso, porque assim quando alguém se afasta das restrições estilizadas da prosa acadêmica, é fácil tornar-se descuidado ou excessivamente entusiasmado com esse tópico. No entanto, Flow não é um livro popular de autoajuda para dar dicas sobre como ser feliz.

Fazer isso seria impossível em qualquer caso, porque uma vida alegre é uma criação individual. Ela não pode ser copiada de uma receita.

Este livro tenta, em vez disso, apresentar princípios gerais, juntamente com exemplos concretos de como algumas pessoas usaram esses princípios, para transformar vidas chatas e sem sentido em pessoas cheias de prazer. Não há promessa de atalhos fáceis nestas páginas. Mas para os leitores capazes de se importarem com essas coisas, deve haver informações suficientes para possibilitar a transição da teoria para a prática.

Para tornar o livro o mais direto e amigável possível, o autor evita notas de rodapé, referências e outras ferramentas empregadas pelos especialistas em sua redação técnica. Ele tentou apresentar os resultados da pesquisa psicológica e as ideias derivadas da interpretação de tal pesquisa, de modo a qualquer leitor instruído poder avaliar e aplicar sua própria vida, independentemente do conhecimento especializado.

Hoje em dia, ocasionalmente, ainda encontramos pessoas cujas vidas revelam uma ordem interna baseada nos insights espirituais das grandes religiões do passado. Apesar do lido todos os dias sobre a amoralidade do mercado de ações, a corrupção dos contratantes da indústria da defesa e a falta de princípios em políticos, existem bons exemplos contrários.

Assim, também há empresários de sucesso doadores/mecenas ou praticantes de voluntariado social: passam parte do seu tempo livre em hospitais acompanhando pacientes à beira da morte porque acreditam apoiar pessoas com sofrimento é parte necessária de uma vida significativa. E muitas pessoas continuam a extrair força e serenidade da oração, pessoas para quem um sistema de crenças pessoalmente significativo fornece metas e regras para experiências de fluidez intensas.

Mas parece claro uma maioria crescente não estar sendo ajudada por religiões tradicionais e sistemas de crenças. Muitos são incapazes de separar a verdade nas velhas doutrinas das distorções e degradações, cujo tempo cuidou de adicionar ainda mais, e, como não podem aceitar o erro, rejeitam eventual verdade também. Outros estão tão desesperados por alguma ordem a ponto de se apegar rigidamente a qualquer crença à mão e se tornam cristãos fundamentalistas, ou muçulmanos, ou comunistas.

 

Existe alguma possibilidade de surgir um novo sistema de metas e meios para ajudar a dar sentido às vidas de nossos filhos no próximo século? Algumas pessoas estão confiantes de o cristianismo, restaurado à sua antiga glória, responderá a essa necessidade. Alguns ainda acreditam o comunismo resolver o problema do caos na experiência humana quando sua ordem se espalhar pelo mundo. Atualmente, nenhum desses resultados parece provável.

Se uma nova fé é capturar nossa imaginação, deve ser uma explicação racional para as coisas sabidas, as coisas sentidas, as coisas esperadas e as temidas. Deve ser um sistema de crenças capaz de organizar nossa energia psíquica em direção a objetivos significativos, um sistema fornecedor de regras ou hábitos para um modo de vida fornecedor de fluidez.

É difícil imaginar um sistema de crenças como este não se basear, pelo menos até certo ponto, naquilo revelado pela ciência sobre a humanidade e sobre o universo. Sem tal fundamento, nossa consciência permaneceria dividida entre fé e conhecimento. Mas se a ciência deve ser de ajuda real, ela terá de se transformar. Além das diversas disciplinas especializadas capazes de descrever e controlar aspectos isolados da realidade, ela deverá desenvolver uma interpretação integrada de tudo o que é conhecido e relacioná-la com a humanidade e seu destino. Este é o objetivo da Ciência da Complexidade.

Uma maneira de conseguir isso é através do conceito de evolução. Tudo o que é mais importante para nós se refere a perguntas como: de onde viemos? Onde estamos indo? Quais poderes moldam nossas vidas? O que é bom e ruim? Como nos relacionamos uns com os outros e com o resto do universo? Quais são as consequências de nossas ações? Tudo isso poderia ser discutido, de uma maneira sistemática, em termos do agora sabido sobre evolução e ainda mais em termos do provável saber sobre isso no futuro.

A crítica óbvia deste cenário é a ciência em geral, e a ciência da evolução em particular, lida com o que é (positivo), não com o que deveria ser (normativo). Fé e crenças, de outro lado, não são limitadas pela realidade. Elas lidam com o que é certo, o que é desejável, em termos morais. Mas uma das consequências de uma fé evolucionária pode ser precisamente uma integração mais estreita entre o que é e o que deveria ser.

Quando entendemos melhor por que somos como somos, quando apreciamos mais plenamente as origens dos impulsos instintivos, controles sociais, expressões culturais – todos os elementos contribuintes para a formação da consciência – tornar-se-á mais fácil direcionar nossas energias para onde elas deveriam ir.

E a perspectiva evolucionária também aponta para uma meta digna de nossas energias. Parece não haver dúvida sobre o fato de, ao longo dos bilhões de anos de atividade na Terra, formas de vida cada vez mais complexas terem surgido, culminando nas complexidades do sistema nervoso humano.

O córtex cerebral desenvolveu a consciência. Ela agora envolve a Terra tão completamente quanto a atmosfera. O reconhecimento da realidade da complexidade é tanto uma quanto outra obrigação: aconteceu – dadas as condições regentes da Terra, estava prestes a acontecer – mas pode não continuar se não tivermos o desejo dela continuar. O futuro da evolução está agora em nossas mãos.

Nos últimos milhares de anos – uma mera fração de segundo no tempo evolucionário – a humanidade alcançou incríveis avanços na diferenciação da consciência. Nós desenvolvemos a percepção de a humanidade ser separada de outras formas de vida. Nós concebemos os seres humanos individuais como separados uns dos outros. Inventamos abstração e análise – a capacidade de separar dimensões de objetos e processos uns dos outros, como a velocidade de um objeto em queda de seu peso e sua massa. Essa diferenciação produziu ciência, tecnologia e o poder sem precedentes da humanidade para construir e destruir seu ambiente.

Mas a complexidade consiste em integração e diferenciação. A tarefa das próximas décadas e séculos é perceber esse componente subdesenvolvido da mente. Assim como aprendemos a nos separar uns dos outros e do meio ambiente, agora precisamos aprender a nos reunir com outras entidades ao nosso redor sem perder nossa individualidade duramente conquistada.

A fé mais promissora para o futuro pode ser baseada na percepção de o universo inteiro ser um sistema relacionado por leis comuns e não fazer sentido impor nossos sonhos e desejos à natureza sem levá-los em conta. Reconhecendo as limitações da vontade humana, aceitando um papel cooperativo em vez de um papel dominante no universo, devemos sentir o alívio do fim do exílio e, finalmente, voltarmos para casa. O problema do significado será então resolvido à medida que o propósito do indivíduo se fundir com a fluidez universal.

Fluxo ou Fluir publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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