O livro “Factfulness: o hábito libertador de só ter opiniões baseadas em fatos” (Rio de Janeiro: Record, 2019) de coautoria de Hans Rosling, Ola Rosling e Anna Rosling Rönnlund argumenta: porque os seres humanos têm um forte instinto dramático direcionado a um pensamento binário, há uma compulsão básica para dividir as coisas em dois grupos distintos, com nada exceto uma lacuna no meio.
Adoramos dicotomias. Bem versus mal. Heróis versus vilões. Meu país versus o resto. Dividir o planeta em dois lados distintos é simples e intuitivo, e também dramático porque implica conflito. Nós fazemos isso sem pensar, o tempo inteiro.
Jornalistas sabem disso. Eles constroem suas narrativas como conflitos entre duas pessoas, visões ou grupos opostos. Eles preferem histórias de extrema pobreza e bilionários, em vez de histórias sobre a vasta maioria das pessoas lentamente se arrastando na direção de uma vida melhor.
Jornalistas são contadores de histórias. Assim como as pessoas produtoras de documentários e filmes. Os documentários mostram o frágil indivíduo enfrentando a grande e maligna corporação. Filmes blockbusters geralmente apresentam uma luta entre o bem e o mal.
O instinto de separação faz imaginarmos:
- uma divisão onde há apenas uma variação suave;
- uma diferença onde há convergência; e
- um conflito onde há concordância.
É o primeiro instinto da lista de dez instintos humanos produtores de pensamento equivocado sobre o mundo, analisados no livro, porque é muito comum e distorce fundamentalmente os dados. Se você examinar o noticiário ou visitar o website de um grupo de lobby, provavelmente observará histórias sobre conflitos entre dois grupos ou frases como “a crescente separação”.
Há três sinais de alerta comuns capazes de soar quando alguém está contando a você (ou você estar contando a si próprio) uma história de separação superdramática e deflagrando o seu instinto de dividir as coisas. Rosling os chama de:
- comparações de médias,
- comparações de extremos e
- visão de cima.
Comparações de médias
Médias são uma forma rápida de transmitir informação. Frequentemente nos contam algo útil. As sociedades modernas não poderiam funcionar sem elas, tampouco este livro se utiliza de inúmeras delas. Mas qualquer simplificação de informação também pode ser enganadora – e as médias não são uma exceção. As médias iludem ao esconder uma dispersão (uma gama de diferentes números) em um único número.
Quando comparamos duas médias, corremos o risco de nos enganar ainda mais ao focar na lacuna entre esses dois números e nos esquecer das extensões onde eles se sobrepõem, as variações de números sobrepostos e constituintes cada média. Isto é, enxergamos separações e, na verdade, elas não estão lá.
Por exemplo, uns gráficos parecem mostrar os homens obterem melhores resultados se comparados às mulheres em Matemática e norte-americanos terem uma renda acima da dos mexicanos. Em certo sentido, isso é verdade. É dito pelos números. Mas em qual sentido? Até qual ponto? Todos os homens são melhores matemáticos comparados a todas as mulheres? Todos os norte-americanos são mais ricos comparados a todos os mexicanos?
Se mudarmos a escala do eixo vertical, os mesmos números podem ser usados para dar uma impressão bastante diferente. Agora, a “separação” parece quase inexistente com as duas curvas muito próximas ao longo do tempo estampado no eixo horizontal.
Se examinarmos os mesmos dados de uma terceira forma, ele nos dá uma noção melhor da realidade por trás dos números. Em vez de olhar para as médias de cada ano, vamos ver o espectro das notas de matemática, ou das rendas, em um ano específico, ou seja, com um corte temporal.
Assim, obtemos uma noção de todos os indivíduos juntados dentro do número médio. Há uma sobreposição quase total entre as notas dos homens e das mulheres. Quando se trata das rendas no México e nos EUA, a sobreposição está lá, embora seja apenas parcial. O que está claro, entretanto, olhando para os dados dessa forma, é os dois grupos de pessoas — homens e mulheres, mexicanos e norte-americanos — não estão separados. Eles se sobrepõem. Não há lacuna.
Naturalmente, histórias de separação podem refletir a realidade. Na África do Sul do apartheid, negros e brancos viviam com diferentes níveis de renda e havia verdadeira divisão entre eles, com quase nenhuma sobreposição. A história de separação entre grupos distintos era totalmente relevante.
Mas o apartheid era muito incomum. Com frequência bem maior, histórias de divisão são uma dramatização excessiva e enganadora. Na maioria dos casos, não há uma clara separação de dois grupos, mesmo assim parecendo a partir das médias.
Quase sempre, obtemos um quadro mais preciso indo um pouco mais fundo e examinando não apenas as médias, mas também a dispersão: não somente o grupo amontoado junto, mas os indivíduos. Dessa forma, em geral vemos que grupos aparentemente distintos na verdade estão bastante sobrepostos.
Comparações de extremos
Somos naturalmente atraídos a casos extremos, porque eles são fáceis de lembrar. Por exemplo, se estamos falando acerca de desigualdade social, podemos pensar nas histórias vistas no noticiário sobre a fome no Sudão do Sul, por um lado, e na nossa própria realidade confortável, por outro.
Se nos pedem pensar sobre diferentes tipos de sistemas de governo, podemos rapidamente nos lembrar, por um lado, de ditaduras corruptas e opressoras, e, por outro, de países como a Suécia, com grandes sistemas de bem-estar social e burocratas benevolentes, cujas vidas são dedicadas a resguardar os direitos de todos os cidadãos.
Essas histórias de opostos são sedutoras, provocativas e tentadoras — e muito eficazes para despertar nosso instinto de separação —, mas raramente ajudam na compreensão. Sempre haverá o mais rico e o mais pobre, sempre haverá os piores regimes e os melhores. Mas o fato de existirem extremos não nos diz muito. A maioria geralmente se encontra no meio e conta uma história bem diferente.
Considere o Brasil, um dos países mais desiguais do mundo. Os 10% mais ricos no Brasil têm 41% da renda total. Perturbador, não? Soa alto demais. Rapidamente imaginamos uma elite roubando recursos de todo o resto. A mídia apoia isso com imagens dos muito ricos — frequentemente não os 10% mais ricos, mas provavelmente o 0,1% mais rico, os ultrarricos — e seus iates, cavalos e imensas mansões.
Sim, o número é perturbadoramente alto. Ao mesmo tempo, atingiu o ponto mais baixo em muitos anos depois da redemocratização, ou seja, depois da ditadura militar e, acentuadamente, depois do neoliberalismo dos anos 90s.
Estatísticas frequentemente são utilizadas de maneiras dramáticas com fins políticos, mas é importante também nos ajudarem a navegar pela realidade. Rosling examina as rendas da população brasileira distribuídas pelos quatro níveis.
A maioria das pessoas no Brasil saiu da extrema pobreza. A grande saliência está no Nível 3. É onde se consegue uma motocicleta, óculos de leitura e economiza dinheiro no banco para pagar o ensino médio e algum dia comprar uma máquina de lavar roupa. Na realidade, mesmo em um dos países mais desiguais do mundo, não há lacuna. A maioria das pessoas está no meio.
Visão daqui de cima
Como já mencionado por Hans Rosling, se você está lendo este livro provavelmente vive no Nível 4. Mesmo se você morar num país de renda média, o que significa a renda média estar no Nível 2 ou 3 — como o México, por exemplo —, você provavelmente vive no Nível 4 e sua vida provavelmente é semelhante de maneiras importantes às vidas de pessoas no Nível 4 moradoras em San Francisco, Estocolmo, Rio de Janeiro, Cidade do Cabo e Beijing.
O que se conhece por pobreza no seu país é diferente de “extrema pobreza”. É “relativa pobreza”. Nos Estados Unidos, por exemplo, as pessoas são classificadas como abaixo da linha de pobreza mesmo se viverem no Nível 3.
Desse modo, muito possivelmente você não terá qualquer familiaridade com as batalhas diárias enfrentadas por pessoas nos Níveis 1, 2 e 3. Elas não são descritas de maneira positiva pela mídia de massa.
O seu desafio mais importante na construção de uma visão de mundo baseada em fatos é perceber a maioria das suas experiências de primeira mão são do Nível 4. Suas experiências de segunda mão são filtradas pela mídia de massa. Ela adora eventos extraordinários não representativos e despreza a normalidade.
Quando você vive no Nível 4, todos nos Níveis 3, 2 e 1 podem parecer igualmente pobres, e a palavra pobre pode perder qualquer sentido específico. Mesmo uma pessoa no Nível 4 pode parecer pobre: talvez a tinta na parede de casa esteja descascando ou talvez o carro dela seja um seminovo.
Qualquer um morando em um arranha-céu e olhando para baixo sabe ser difícil avaliar dali a diferença de altura das construções mais perto do solo. Todas parecem pequenas.
Do mesmo modo, é natural para as pessoas vivendo no Nível 4 verem o mundo dividido em apenas duas categorias: ricos (no topo do arranha-céu, como você) e pobres (lá embaixo, diferentes de você). É natural olhar para baixo e dizer “ah, elas são tão pobres”.
É natural não perceber as distinções entre as pessoas com carros, as pessoas com motos e bicicletas, as pessoas de sandálias e as pessoas com motos e bicicletas, as pessoas de sandálias e as pessoas sem nenhum calçado.
Mundo Binário: Equivocadamente Analisado por Comparações de Médias, Comparações de Extremos e Visão de Cima publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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