É grande e equivocada a concepção usual de “o mundo estar dividido em dois”.
O primeiro capítulo do livro “Factfulness: o hábito libertador de só ter opiniões baseadas em fatos” (Rio de Janeiro: Record, 2019) de coautoria de Hans Rosling, Ola Rosling e Anna Rosling Rönnlund é sobre o primeiro de nossos dez instintos dramáticos. São eles:
- O instinto de separação
- O instinto de negatividade
- O instinto de linha reta
- O instinto de medo
- O instinto de tamanho
- O instinto de generalização
- O instinto de destino
- O instinto de perspectiva única
- O instinto de culpar
- O instinto de urgência
O instinto de separação é aquela tentação irresistível de dividir todos os tipos de coisas em dois grupos distintos e frequentemente conflitantes, com uma lacuna imaginária — um enorme abismo de injustiça — no meio. Esse instinto de separação cria uma imagem na cabeça das pessoas com um mundo rachado em dois tipos de países ou dois tipos de pessoas: rico versus pobre.
Não é fácil rastrear uma concepção errônea. As grandes e equivocadas concepções têm um impacto enorme sobre a maneira errada com a qual é enxergado o mundo. Ao dividir o mundo em duas categorias enganadoras — pobres e ricos —, esse instinto de separação distorce completamente todas as proporções globais na cabeça das pessoas.
Por exemplo, a mortalidade infantil era maior em sociedades tribais. Elas viviam em florestas tropicais e entre agricultores tradicionais de áreas rurais remotas espalhadas pelo globo. Felizmente, cada vez menos pessoas têm de viver em condições tão terríveis.
Nós podemos confrontar argumentos equivocados, baseados muitas vezes em pura ideologia, com os dados. Se você quer convencer uma pessoa de ela ter uma concepção equivocada, é muito útil poder testar a opinião dela contra informações concretas. Então foi o feito por Hans Rosling pelo resto da sua vida profissional.
O gráfico-bolha tornou-se sua arma favorita na batalha para desmantelar a concepção equivocada repetida incessantemente: “o mundo está dividido em dois”. Quando as pessoas dizem “em desenvolvimento” e “desenvolvidos”, o que provavelmente estão pensando é “países pobres” e “países ricos”. Frequentemente também se ouve “Ocidente/resto”, “norte/sul” e “baixa renda/alta renda”.
O mundo mudou completamente em relação ao existente durante a adolescência da geração baby-boomer. Hoje, as famílias são pequenas e as mortes infantis são raras na vasta maioria das nações, incluindo as maiores: China e Índia.
A expectativa de vida em países de baixa renda é de 62 anos. A maioria das pessoas tem o suficiente para comer; a maioria tem acesso a água tratada; a maioria das crianças é vacinada; e a maioria das meninas termina o ensino fundamental. Porém, somente pequenas porcentagens — muito abaixo dos 33% dos chimpanzés — acertam as respostas sobre o estado atual do mundo. A grande maioria fica com a pior alternativa oferecida, mesmo quando esses números representavam níveis de sofrimento hoje em dia ocorrendo apenas em terríveis catástrofes nos piores lugares da Terra.
Apenas 9% da população mundial vive em países de baixa renda. Esses países estão longe de serem tão terríveis quanto as pessoas pensam. São realmente horríveis em muitos aspectos, mas não estão no nível, ou abaixo, de Afeganistão, Somália ou República Centro-Africana, os piores lugares para se viver no planeta.
Para resumir: países de baixa renda são muito mais desenvolvidos se comparados ao imaginado pela maioria das pessoas. E muito menos gente vive neles. A ideia de um mundo dividido com uma maioria presa ao sofrimento e à privação é uma ilusão. Uma absoluta concepção equivocada. Simplesmente errada.
Juntando-se os países de alta e média rendas, temos 91% da humanidade, com a maioria tendo sido integrada ao mercado global e feito grande avanço rumo a condições de vida decentes. Isso é uma informação positiva para os humanitários e uma informação crucial para as empresas globais. Há 5 bilhões de potenciais consumidores por aí, melhorando suas vidas e desejando consumir.
O que deveríamos fazer é parar de dividir os países em dois grupos. Não faz mais sentido. Não nos ajuda a compreender o mundo de uma maneira prática. Não ajuda as empresas a encontrarem oportunidades de negócios e não ajuda o dinheiro de auxílio humanitário a chegar às pessoas mais pobres.
Mas nós precisamos fazer algum tipo de classificação para compreender o mundo. Senão as interações entre 7 bilhões de indivíduos resultarão na emergência de um sistema extremamente complexo e impossível de se interpretar com a capacidade computacional da mente humana comum.
Em vez de separar o mundo em dois grupos, Hans Rosling vai segmentá-lo em quatro níveis de renda como definido na imagem seguinte. Cada figura no gráfico representa 1 bilhão de pessoas. As sete figuras mostram como a atual população mundial está espalhada pelos quatro níveis, expressos em termos de renda diária em dólares. É possível perceber a maioria viver nos dois níveis intermediários, nos quais as pessoas têm a maior parte de suas necessidades humanas básicas atendidas.
NÍVEL 1. Pessoas no Nível 1 vivem com um dólar por dia (R$ 4/dia ou R$ 120/mês). Seus cinco filhos têm de gastar horas andando descalços com seu único balde de plástico, indo e voltando, para buscar água em uma poça barrenta e suja a uma hora de distância. No caminho de volta para casa, eles pegam lenha, e preparam o mesmo mingau acinzentado comido em todas as refeições, todo dia, a sua vida inteira — exceto nos meses quando o solo pobre não rendeu nenhuma colheita e vão dormir com fome. Um dia, a filha mais nova fica com uma tosse feia. A fumaça do fogão à lenha está enfraquecendo os pulmões dela. Não tem como comprar antibióticos e, um mês mais tarde, ela morre. Isso é extrema pobreza. Se tiver sorte e as safras forem boas, a família miserável talvez consiga vender o que sobrou da colheita e ganhar mais de dois dólares por dia, o que a levaria para o próximo nível. Aproximadamente 1 bilhão de pessoas vivem assim hoje.
NÍVEL 2. Quando o chefe-da-família quadruplicou sua renda e agora ganha quatro dólares por dia (R$ 16/dia ou R$ 480), ou seja, três dólares a mais todo dia. Com todo esse dinheiro pode comprar alimentos não plantados por ela ou galinhas, conseguindo ovos. Economiza algum dinheiro e compra sandálias para as crianças, uma bicicleta e mais baldes de plástico. Agora perde apenas meia hora indo buscar a água necessária para todo o dia. Compra um fogão a gás, para as crianças poderem ir para a escola, em vez de catar lenha. Quando há eletricidade, elas fazem a lição de casa com a luz de uma lâmpada. Mas a eletricidade é instável demais para uma geladeira. Economiza mais para comprar colchões e parar de dormir no chão de terra. A vida agora está muito melhor, mas ainda bastante incerta. Uma única doença e teria de vender a maior parte de suas posses para comprar remédios. Isso a jogaria de volta no Nível 1. Mais três dólares por dia cairiam bem, mas para ter melhorias realmente substanciais é preciso mais uma vez quadruplicar sua renda. Se conseguir um emprego na indústria local de vestuários, será o primeiro membro da família a levar um salário para casa. Aproximadamente 3 bilhões de pessoas vivem assim hoje.
NÍVEL 3. Quando o chefe-da-família a família trabalha em vários empregos, dezesseis horas por dia, sete dias por semana, e dá um jeito de quadruplicar novamente sua renda, para dezesseis dólares por dia (R$ 64/dia ou R$ 1.920/mês). Suas economias são impressionantes e instala uma torneira com água fria. Chega de ir buscar água. Com uma linha elétrica estável, as lições de casa das crianças melhoram e a família pode comprar uma geladeira, o que lhe permite guardar a comida e servir pratos diferentes todos os dias. Economiza para comprar uma motocicleta, contribuindo para o seu deslocamento até um emprego com salário melhor em uma fábrica na cidade. Infelizmente, um dia, a caminho do trabalho, tem um acidente com a moto e precisa usar o dinheiro economizado para pagar as despesas médicas. Mas se recupera, e graças às suas economias não é obrigada a retroceder um nível. Dois dos seus filhos chegam ao ensino médio. Se eles conseguirem terminar os estudos, poderão obter empregos com salários melhores jamais recebidos por alguém da família antes. Para comemorar, pela primeira vez na vida, é possível tirar férias, levando a família inteira para uma tarde na praia, só para se divertir. Aproximadamente 2 bilhões de pessoas vivem assim hoje.
NÍVEL 4. Quando o chefe-da-família ganha mais de 32 dólares por dia (R$ 128/dia ou R$ 3.840/mês). Passa a ser um consumidor rico e três dólares a mais por dia fazem pouca diferença na sua vida diária. Por isso, pensa essa quantia, capaz de mudar a vida de alguém a viver na extrema pobreza, não é muito dinheiro. Quem está neste nível 4 tem mais de doze anos de educação e já viajou de avião nas férias. Pode comer fora uma vez por mês e pode comprar um carro. Naturalmente, tem água encanada quente e fria.
Mas o leitor deste livro já sabe como é este nível. Como está lendo este livro, é seguro viver no Nível 4. A dificuldade, quando se conhece este elevado nível de renda desde sempre, é compreender as enormes diferenças entre os outros três níveis. Aproximadamente 1 bilhão de pessoas vivem assim hoje. Pessoas no Nível 4 devem se esforçar para não se enganar sobre a realidade dos outros 6 bilhões de pessoas no mundo.
Hans Rosling descreveu a escalada dos níveis como se uma pessoa conseguisse ascender vários patamares em total mobilidade social. Isso é bastante raro. Frequentemente são necessárias várias gerações para uma família ir do Nível 1 ao Nível 4.
No entanto, ele deu uma imagem clara dos tipos de vida das pessoas nos diferentes níveis. É possível avançar de nível, tanto indivíduos como países. Acima de tudo, é importante a compreensão de não haver apenas dois tipos de vidas.
A história humana teve início com todos no Nível 1. Por mais de 100 mil anos ninguém escalou os níveis e a maioria das crianças não sobreviveu o suficiente para ter filhos. Há apenas duzentos anos, 85% da população mundial ainda estava no Nível 1, na pobreza extrema.
Hoje, a vasta maioria das pessoas (5 bilhões) se espalha pelo meio, nos Níveis 2 e 3, com a mesma gama de padrões de vida obtida pelas pessoas na Europa Ocidental e na América do Norte na década de 1950. E tem sido assim há muitos anos.
Instinto de Separação publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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