O segundo capítulo do livro “Factfulness: o hábito libertador de só ter opiniões baseadas em fatos” (Rio de Janeiro: Record, 2019) de coautoria de Hans Rosling, Ola Rosling e Anna Rosling Rönnlund é sobre o instinto de negatividade: nossa tendência de prestar atenção mais nas coisas ruins em vez de nas boas. Esse instinto está por trás da segunda grande e equivocada concepção.
“As coisas estão piorando” é a afirmação mais escutada sobre o mundo. É absolutamente verdade haver muitas coisas ruins neste planeta.
O número de mortes por guerra vem caindo desde a Segunda Guerra Mundial, mas com a guerra síria houve uma reversão nessa tendência. O terrorismo também está crescendo de novo.
Em sua opinião de médico com desconhecimento de Economia, Hans Rosling diz: “O colapso do mercado imobiliário dos EUA em 2008, que não foi previsto por nenhuma autoridade reguladora, decorreu das amplamente disseminadas ilusões quanto à segurança de investimentos abstratos. Quase ninguém os entendia. O sistema continua tão complexo hoje como na época, e uma crise semelhante poderia acontecer de novo.
Para o nosso planeta ter estabilidade financeira, paz e recursos naturais protegidos, há uma coisa imprescindível: a colaboração internacional, fundada em uma compreensão global compartilhada e baseada em fatos. A atual falta de conhecimento sobre o mundo é, portanto, o mais preocupante problema de todos.”
A maioria das pessoas pensa o mundo estar piorando. Não é à toa todos nos sentirmos tão estressados.
É fácil ter consciência de todas as coisas ruins acontecendo no mundo. Por outro lado, é mais difícil saber das coisas boas: bilhões de melhorias que nunca são relatadas.
Rosling não está falando de alguma notícia trivial positiva para supostamente equilibrar a negativa. Está falando de melhorias fundamentais transformadoras do mundo, mas elas são lentas demais, fragmentadas demais ou pequenas demais quando vistas isoladamente para poderem ser qualificadas como notícia. Está falando do milagre silencioso e secreto do progresso humano.
Os fatos básicos sobre o avanço do mundo eram tão pouco conhecidos a ponto de Rosling ser convidado para falar a respeito deles em conferências e reuniões de empresas em todo o planeta. Às vezes chamavam suas palestras de “inspiradoras”, e muita gente dizia elas também produzirem um efeito confortador.
Essa nunca foi a sua intenção. Mas é lógico. O que geralmente mostrava eram apenas dados oficiais da ONU. Enquanto as pessoas tiverem uma visão de mundo muito mais negativa em relação à realidade, simples estatísticas podem fazê-las se sentirem mais positivas. É reconfortante, e também inspirador, descobrir o mundo estar muito melhor em relação ao geralmente pensado. Um novo tipo de pílula da felicidade, completamente grátis on-line!
Ao longo dos últimos vinte anos, a proporção de pessoas vivendo em extrema pobreza caiu quase pela metade. Mas pelas pesquisas on-line, na maioria dos países, menos de 10% das pessoas sabiam isso.
Lembra-se dos quatro níveis de renda do capítulo 1? No ano 1800, aproximadamente 85% da humanidade vivia no Nível 1, em extrema pobreza. Por todo o planeta, as pessoas simplesmente não tinham comida suficiente. A maioria ia dormir passando fome várias vezes por ano. Pelo Reino Unido e suas colônias, as crianças tinham de trabalhar para comer e, em média, uma criança britânica começava a trabalhar com 10 anos. Um quinto de toda a população sueca, incluindo muitos dos meus familiares, foi para os Estados Unidos fugindo da fome, e somente 20% regressaram. Quando a colheita fracassava e seus parentes, amigos e vizinhos passavam fome até morrer, o que você fazia? Fugia. Migrava. Se possível.
O Nível 1 é aquele no qual toda a humanidade começou. O modo pelo qual a maioria sempre viveu até 1966. Até então, a extrema pobreza era a regra, não a exceção.
Essa curva mostra como a taxa de extrema pobreza vem caindo desde 1800. Olhe para os últimos vinte anos. A extrema pobreza nunca se reduziu tão rápido na história mundial.
Em 1997, 42% da população da Índia e China viviam em extrema pobreza. Em 2017, na Índia, essa parcela tinha caído para 12%: havia 270 milhões de pessoas a menos vivendo em extrema pobreza do que apenas vinte anos antes. Na China, essa parcela diminuiu no mesmo período para impressionantes 0,7%, o que significou mais meio bilhão de pessoas acima dessa linha crucial.
Enquanto isso, a América Latina levou sua proporção de 14% para 4%: mais 35 milhões de pessoas. Embora todas as estimativas de extrema pobreza sejam bastante incertas, quando a mudança parece ser assim, sem a menor dúvida algo muito importante está acontecendo.
Qual a sua idade há vinte anos? Feche os olhos por um segundo e lembre-se de você jovem. O quanto o seu mundo mudou? Muito? Pouco? Bem, isto é quanto o mundo mudou: somente vinte anos atrás, 29% da população mundial vivia em extrema pobreza. Agora, esse número é 9%. Hoje, poucos passam por esse sofrimento. A fonte original de todo tormento humano está prestes a ser erradicada.
Bilhões escaparam da miséria e viraram consumidores e produtores para o mercado global. Bilhões conseguiram sair do Nível 1 para os Níveis 2 e 3 sem as pessoas do Nível 4 terem notado.
Mostrar todas as causas de mortes e sofrimento em um número é praticamente impossível. Mas a expectativa de vida média chega bem perto. Cada morte infantil, cada morte prematura decorrente de desastres naturais ou causados pelo homem, cada mãe perdendo a vida no parto e cada existência prolongada de um idoso são refletidas nessa estatística.
Em 1800, quando os suecos morriam de fome e as crianças britânicas trabalhavam em minas de carvão, a expectativa de vida era de aproximadamente 30 anos em todo o planeta. Tinha sido assim ao longo de toda a história.
Dos bebês nascidos, a grosso modo metade morria durante a infância. A maior parte da outra metade morria entre 50 e 70 anos. Assim, a média era por volta de 30. Não quer dizer a maioria das pessoas chegar aos 30. É apenas uma média, e com médias temos sempre de lembrar haver uma dispersão.
A expectativa de vida média em todo o mundo hoje é 72 anos.
Há uma queda na curva de expectativa de vida global em 1960 porque de 15 a 40 milhões de pessoas — ninguém sabe o número exato — morreram de inanição naquele ano na China, no que provavelmente foi a maior fome de toda a história causada pelo homem.
A safra chinesa em 1960 foi menor em relação à planejada, devido a uma estação ruim combinada com fraca orientação governamental de como plantar de maneira mais eficaz. Os governantes locais não queriam mostrar resultados negativos. Então, recolheram todos os alimentos e os enviaram ao governo central. Não sobrou nada.
Um ano depois, inspetores em choque enviavam relatos testemunhando canibalismo e cadáveres abandonados pelas estradas. O governo do PCCh negou o planejamento central ter falhado. A catástrofe foi mantida em segredo pelas autoridades chinesas por 36 anos. Somente em 1996 chegou ao resto do mundo uma descrição em inglês.
Pense a respeito. Algum governo poderia manter hoje em segredo global a morte de 15 milhões de pessoas?
Mesmo se o governo chinês tivesse contado a todo o planeta sobre essa tragédia, o Programa Alimentar Mundial da ONU — que hoje distribui comida a quem estiver passando mais necessidade na Terra — não poderia ter ajudado. Ele só foi criado em 1961.
A concepção equivocada de o mundo estar piorando é muito difícil de manter quando consideramos o presente em seu contexto histórico. Não deveríamos diminuir as tragédias das secas e fomes acontecendo neste exato momento. Mas o conhecimento das tragédias do passado deveria contribuir para todos perceberem como o mundo se tornou muito mais transparente e melhor em fornecer ajuda onde ela é necessária.
O país de Hans Rosling, a Suécia, está hoje no Nível 4 e é um dos mais ricos e com melhor saúde do mundo. (Um país estar no Nível 4 significa dizer a pessoa média dessa nação estar no Nível 4. Não significa todos na Suécia estarem no Nível 4. Lembre-se: médias ocultam dispersões.) Mas nem sempre foi assim.
Ele mostra o seu gráfico favorito. Ele o chama de Gráfico da Saúde Mundial: é como um mapa-múndi de saúde e riqueza. Como no gráfico-bolha visto no capítulo anterior, cada país é representado por uma bolha, cuja dimensão representa o tamanho de sua população. Como antes, os países mais pobres estão na esquerda e os países mais ricos, na direita; os mais saudáveis estão no alto e os menos saudáveis, embaixo.
Repare não haver dois grupos. O mundo não está dividido em dois. Há países em todos os níveis, desde os pobres e doentes no canto inferior esquerdo até os ricos e sadios no canto superior direito, onde está a Suécia. E a maioria dos países está no meio.
A linha de pequenas bolhas mostra a saúde e riqueza da Suécia para cada ano desde 1800. Destaca alguns países correspondentes, em 2017, a importantes anos da Suécia antigamente.
Hoje, as pessoas no Afeganistão e em outros países no Nível 1 têm vidas muito mais longas do que os suecos em 1863. Isso acontece porque modernizações básicas chegaram à maioria das pessoas e melhoraram drasticamente suas vidas. Elas têm sacolas plásticas para guardar e transportar comida, baldes plásticos para carregar água, além de sabão para matar germes. A maior parte de seus filhos é vacinada. Em média, vivem trinta anos a mais do que os suecos em 1800, quando a Suécia estava no Nível 1. Isso mostra o quanto a vida no Nível 1 melhorou.
Todos os países do mundo melhoraram sua expectativa de vida ao longo dos últimos duzentos anos. De fato, quase todos os países melhoraram em quase todas as estatísticas.
O objetivo de rendas mais altas não é demonstrar exclusividade e/ou esnobismo. O objetivo de vidas mais longas não é apenas tempo extra. O objetivo supremo é ter a liberdade de fazer o desejado sem perturbar outras pessoas.
O instinto de negatividade se deve por se notar mais os aspectos ruins em vez dos bons. Há três coisas acontecendo comumente:
- a lembrança errada do passado;
- os relatos seletivos feitos por jornalistas e ativistas; e
- a sensação de, enquanto tudo está ruim, ser cruel afirmarmos “estamos melhorando”.
Por séculos, as pessoas mais velhas romantizaram suas juventudes, insistindo que as coisas não eram como costumavam ser. Bem, isso é verdade, mas não no sentido empregado por elas. A maioria das coisas costumava ser pior, não melhor. O problema é ser extremamente fácil para os humanos esquecer como as coisas realmente “costumavam ser”.
Na Europa Ocidental e na América do Norte, só os bem mais velhos, tendo atravessado a Segunda Guerra Mundial ou a Grande Depressão, têm alguma lembrança pessoal das graves privações e fome de apenas algumas décadas antes.
Contudo, mesmo na China e na Índia, onde a extrema pobreza era a realidade para a vasta maioria somente duas gerações atrás, agora ela está praticamente esquecida pelas pessoas que vivem em casas decentes, vestem roupas limpas e andam de lambreta.
Instinto de Negatividade publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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