Lilia Moritz Schwarcz, no livro “Sobre o autoritarismo brasileiro”, denuncia essa espécie de história muito pautada em mitos nacionais. Ela, de tão enraizada, costuma resistir à danada da realidade. Como é possível definir o Brasil como um território pacífico se tivemos por séculos em nosso solo escravizados e escravizadas, admitindo-se, durante mais de trezentos anos, um sistema com a posse de uma pessoa por outra?
Lembremos o Brasil ter sido o último país a abolir tal forma de trabalho forçado nas Américas — depois de Estados Unidos, Porto Rico e Cuba —, tendo recebido 5,85 milhões de africanos em um total de 12,52 milhões de pessoas embarcadas e que foram retiradas compulsoriamente de seu continente para essa imensa diáspora atlântica; a maior da modernidade. Se considerarmos apenas os desembarcados e sobreviventes, o total, segundo o site Slave Voyages, foi de 10,7 milhões, dos quais 4,8 milhões chegaram ao Brasil. Estima-se, então, terem morrido cerca de um milhão de pessoas nas viagens.
Por isso mesmo, em lugar do idílio, escravizados conheceram por aqui toda forma de violência. Foi de parte a parte: enquanto os senhores mantinham o controle na base da força e da sevícia, os cativos e cativas respondiam à violência com todo tipo de rebelião.
Outra pergunta: como é possível representar o país a partir da ideia de uma suposta coesão, partilhada por todos os cidadãos, quando ainda somos campeões no quesito desigualdade social, racial e de gênero. Isto é comprovado por pesquisas. Elas mostram a existência de práticas cotidianas de discriminação contra mulheres, indígenas, negros e negras, bem como contra pessoas LGBTTQ: Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Queers.
Queer (em português, ‘excêntrico”, ‘insólito’) é uma palavra usada desde o fim da década de 1980 para representar indivíduos contrários a políticas assimilacionistas dentro da comunidade LGBT. Recentemente, também se tornou uma palavra-ônibus proveniente do inglês usada para designar pessoas não seguidoras do modelo padrão de homossexualidade, heterossexualidade ou do binarismo de gênero.
Sobretudo nos momentos de crise política, muitos nostálgicos de privilégios ou de realidade não vivenciada, apelam ao sonho da “concórdia” do Regime Militar. É como se esse período tivesse sido encantador e carregasse consigo a solução mágica para nossos problemas mais estruturais via torturas e assassinatos dos “inimigos”.
Aqui se destaca sempre a falta de hierarquia de nossas relações sociais quando nosso passado e nosso presente a desmentem. Não é possível passar impunemente pelo fato de termos sido uma colônia de exploração e de nosso território ter sido majoritariamente dividido em grandes propriedades monocultoras. Elas concentravam no senhor de terra o poder de mando e de violência, bem como o monopólio econômico e político.
Por sinal, a despeito de o Brasil ser, cada vez mais, um país urbano, aqui persiste teimosamente uma mentalidade e lógica dos latifúndios, cujos senhores viraram os coronéis da Primeira República. Parte dos quais ainda se encastelam em seus estados, como caciques políticos e eleitorais.
Diante desses grandes poderes personalizados e localizados, acabamos por criar práticas patrimonialistas. Elas implicam o uso do Estado para a resolução de questões privadas. Se durante os últimos trinta anos forjamos instituições mais consolidadas, ainda hoje elas dão sinais de fraqueza quando balançam em função dos contextos políticos.
Isso sem contar a prática da corrupção. Como Lilia Schwarcz demonstra, e a despeito das várias formas e nomes recebidos, já era recorrente na época colonial e imperial. Na República virou endêmica, consumindo divisas e direitos dos brasileiros.
Uma história crítica é aquela capaz de “desnaturalizar” o que parece dado pela biologia de forma a se apresentar, por consequência, como imutável. Não existe nada em nosso sangue ou no DNA dos brasileiros indicando serem todos esses elementos de perversidade social imunes à nossa ação humana e cidadã.
Também não é boa ideia fazer o oposto: relegar ao passado e ao “outro”, quem viveu antes de nós, tudo a nos incomodar no presente. Racista é “alguém outro” (não eu mesmo), o patrimonialismo é uma herança da nossa história pregressa a desigualdade foi consequência da escravidão, e ponto-final.
É impossível jogar em um tempo distante e inatingível todas as nossas mazelas atuais. Desde o período colonial, passando pelo Império e chegando à República, temos praticado uma cidadania incompleta e falha, marcada por políticas de mandonismo, muito patrimonialismo, várias formas de racismo, sexismo, discriminação e violência.
A despeito de vivenciarmos, desde 1988, e com a promulgação da Constituição Cidadã, o mais extenso período de vigência de um Estado de Direito e de uma democracia no Brasil republicano, não logramos:
- diminuir nossa desigualdade,
- combater o racismo institucional e estrutural contra negros e indígenas,
- erradicar as práticas de violência de gênero.
Nosso presente anda, mesmo, cheio de passado, e a história não serve como prêmio de consolação. No entanto, é importante enfrentar o tempo presente, até porque não é de hoje que voltamos ao passado acompanhados das perguntas que forjamos na nossa atualidade.
Portanto, a quem não entende por que vivemos, nos dias de hoje, um período tão intolerante e violento; a quem recebe com surpresa tantas manifestações autoritárias ou a divulgação, sem peias, de discursos ameaçadores de desfazerem abertamente um catálogo de direitos civis aparentemente consolidado; a quem assiste da arquibancada ao crescimento de uma política de ódios e que transforma adversários em inimigos, Lilia Schwarcz convida para uma viagem rumo à nossa própria história, nosso passado e nosso presente.
Atualmente, uma onda conservadora atinge países como Hungria, Polônia, Estados Unidos, Rússia, Itália, Israel, mudando o cenário internacional e trazendo consigo novas batalhas pela “verdadeira” história. No Brasil também andamos “surfando” uma maré conservadora. Afinal, uma certa demonização das questões de gênero, o ataque às minorias sociais, a descrença nas instituições e partidos, a conformação de dualidades como “nós” (os justos) e “eles” (os corruptos), a investida contra intelectuais e imprensa, a justificativa da ordem e da violência, seja ela produto do regime que for, o ataque à Constituição e, finalmente, o apego a uma história mítica, fazem parte de uma narrativa de mais longo curso, a qual, no entanto, tem grande impacto no nosso contexto nacional e contemporâneo.
O objetivo deste pequeno livro, mas oportuno, é reconhecer algumas das raízes do autoritarismo no Brasil. Elas têm aflorado no tempo presente, mas, não obstante, encontram-se emaranhadas nesta nossa história de pouco mais de cinco séculos.
Os mitos mencionados funcionam como exemplo. São uma porta de entrada para entender a formação de ideias e práticas autoritárias no Brasil. Auxiliam também a pensar como a história e certas mitologias nacionais são acionadas, muitas vezes, qual armas para uma batalha. Nesses casos, infelizmente, elas acabam por se transformar em mera propaganda ou muleta para receitas prontas e fáceis de realizar.
O mito da democracia racial, de forte impacto no país, é bom pretexto, portanto, para entender como se formam e consolidam práticas e ideias autoritárias no Brasil. Além desse, Schwartz analisa o patriarcalismo, o mandonismo, a violência, a desigualdade, o patrimonialismo, a intolerância social.
Todos são elementos teimosamente presentes em nossa história pregressa e que encontram grande ressonância na atualidade. E esse é o propósito deste texto: criar pontes, não totalmente articuladas e muito menos evolutivas, entre o passado e o presente.
“História não é bula de remédio nem produz efeitos rápidos de curta ou longa duração. Ajuda, porém, a tirar o véu do espanto e a produzir uma discussão mais crítica sobre nosso passado, nosso presente e sonho de futuro.”
Mitos Nacionais publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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