Martin Wolf é editor e principal analista econômico do Financial Times. Escreveu artigo (Valor, 03/07/19) onde esboça, com um olhar europeu, as diferenças de concepções entre o liberalismo à americana e as concepções adotadas na Europa e no Brasil. Aqui, o neoliberalismo só dá importância ao liberalismo econômico, isto é, à liberdade das forças de mercado. Seus adeptos não se vexam em aliar, de maneira oportunista para alcançar seus intentos rejeitados eleitoralmente pela comunidade, com a extrema-direita!
Então, os neoliberais brasileiros não se incomodam com a defesa dos direitos da minoria. Este é um pressuposto dos liberais à americana. Eles defendem os mercados competitivos como um princípio para viabilizar empreendimentos da comunidade contra a proteção governamental para grandes corporações. Contra o capitalismo de compadrio, A Comunidade se ergue como um terceiro pilar entre O Estado e O Mercado.
“Há também a chamada ideia liberal, que já viveu além de sua utilidade. Nossos parceiros ocidentais têm admitido que alguns elementos da ideia liberal, como o multiculturalismo, não são mais sustentáveis”. Foi assim que Vladimir Putin reivindicou estar do lado certo da história, em entrevista notável ao “Financial Times“.
Mas, como poderia dizer Mark Twain, as notícias sobre a morte do liberalismo são demasiado exageradas. As sociedades baseadas em ideias liberais básicas são as mais bem-sucedidas na história. Elas precisam ser defendidas contra seus inimigos.
O que é “liberalismo”? Para responder a essa questão, primeiro, pediria aos leitores americanos para esquecerem o que liberalismo significa para eles: o oposto de conservadorismo. Trata-se de um significado singularmente americano, que faz sentido no contexto americano: imigrantes que fundaram seu novo Estado com base em um conjunto de ideias liberais – liberais no sentido europeu, de oposição ao autoritarismo.
Quando Thomas Jefferson escreveu sobre a “vida, liberdade e a busca da felicidade” na declaração da independência, ele estava criando a partir de um dos grandes pensadores liberais, John Locke, substituindo “propriedade” por “felicidade”.
A raiz de liberal é “liber“, o adjetivo em latim para denotar uma pessoa livre, em oposição a um escravo. O liberalismo não é uma filosofia precisa, é uma atitude. Todos os liberais compartilham de uma crença na “agência humana” individual. Acreditam na capacidade dos seres humanos de decidir por si sós.
Essa crença tem implicações radicais. Implica o direito de:
- fazer seus próprios planos,
- expressar suas opiniões,
- participar da vida pública.
Essas atitudes foram materializadas no que chamamos de “democracia liberal“.
Os liberais compartilham da crença de que a agência humana depende de direitos políticos e econômicos. Para proteger esses direitos, são necessárias instituições — sistemas judiciais independentes [com juízes imparciais, viu Moro?!], acima de tudo.
Mas a agência também depende de:
- os mercados para coordenar os atores econômicos independentes,
- a mídia livre para permitir a disseminação de opiniões e
- os partidos políticos para organizar a política.
Por trás dessas instituições, há valores e comportamentos:
- a distinção entre ganho privado e propósito público, necessária para coibir a corrupção;
- o senso de cidadania; e
- a crença na tolerância.
O liberalismo, então, exige um equilíbrio entre virtudes conflitantes.
- Alguns liberais acreditam em mais liberdade econômica e se opõem a um Estado ativo.
- Outros acreditam em mais igualdade entre os cidadãos e temem a plutocracia.
Os dois lados podem ser liberais, na ampla definição do termo. Putin, porém, é inimigo de ambos. A tradição da qual ele se origina é a autocracia czarista.
Como argumenta Anders Aslund em “Russia’s Crony Capitalism” (o capitalismo clientelista da Rússia, em inglês), Putin “tem aniquilado meticulosamente as instituições embrionárias do capitalismo, da democracia e do Estado de Direito que emergiram na Rússia nos anos 90”. “Em seu lugar, ele formou um forte sistema vertical de poder, controlado por seus amigos, que se opõe ao Estado de Direito, favorecendo seu próprios poderes ilimitados sobre o Estado”.
Para mensurar o sucesso do liberalismo, combinamos a medição do Banco Mundial sobre “voz e prestação de contas” e o “índice de liberdade econômica“, da Heritage Foundation. As liberdades políticas e econômicas tendem a andar juntas, em parte porque ambas dependem do Estado de Direito. O liberalismo, assim medido, está associado à prosperidade:
- sociedades liberais tendem a ser ricas e
- sociedades ricas tendem a ser liberais.
Sob o comando de Putin, a Rússia afastou-se do liberalismo. Em grande medida como resultado disso, a economia da Rússia está em pior estado. Apesar de o Produto Interno Bruto (PIB) per capita ser menos da metade do americano, o crescimento médio do PIB per capita entre 2009 e 2018 foi de apenas 1,8% ao ano. A convergência desacelerou-se e passou a engatinhar. Poucos esperam que isso melhore.
O exibicionismo de Putin no cenário mundial é uma forma de desviar a atenção do povo russo da corrupção de seu regime e do fato de seu governo não ter proporcionado uma vida melhor aos russos. Mesmo no caso da economia chinesa, mais exitosa, podemos especular que a guinada de Xi Jinping rumo a um maior controle pelo Estado e à repressão política vai minar o dinamismo do país.
Putin, entretanto, está certo em uma coisa. As democracias liberais encontraram dificuldades, mais notavelmente no que se refere a sua capacidade de absorver imigrantes e de administrar a desigualdade. As sociedades liberais de fato precisam de identidade e de valores compartilhados. Isso é perfeitamente compatível com a imigração e a tolerância a diferenças culturais.
Mas ambas precisam ser administradas: de outra forma, o descontentamento popular vai elevar ao poder líderes que desprezam as normas da democracia liberal. O frágil equilíbrio, então, pode despedaçar-se.
Muito do que o presidente dos EUA, Donald Trump, diz e faz indica seu desprezo por essas normas, mais notavelmente por uma imprensa livre e um sistema judicial independente. O risco, portanto, é que a democracia liberal se torne uma “democracia iliberal“, que, na verdade, não é liberal nem democrática.
No relatório “Liberdade no Mundo 2019“, a organização americana independente Freedom House registrou o 13o ano consecutivo de declínio na força da democracia mundial. Esse declínio, destacou, também ocorreu em democracias ocidentais, sendo que os EUA- o sustentáculo mais influente dos valores democráticos – vêm liderando o caminho. Esse acontecimento é realmente preocupante.
O liberalismo pode muito bem ser a abordagem mais bem-sucedida. Em muitas democracias liberais, no entanto, as pessoas, em especial as elites, parecem ter esquecido do equilíbrio que precisa ser alcançado:
- entre indivíduo e sociedade,
- entre global e doméstico e
- entre liberdade e responsabilidade.
O liberalismo não é um projeto utópico, é um trabalho em perpétuo progresso. É uma abordagem para viver coletivamente que começa a partir da primazia da agência humana. Mas esse é apenas o ponto de partida. Para que essa abordagem funcione, é preciso adaptação e ajustes constantes.
Putin não tem ideia do que isso significa: ele não consegue conceber uma ordem social que não se fundamente na força e na fraude. Sabemos mais do que isso. Mas também precisamos fazer mais – muito mais.”
Liberalismo à Americana X Neoliberalismo à Brasileira publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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