sexta-feira, 12 de julho de 2019

Ameaças à Democracia

Segundo Lilia Moritz Schwarcz, no livro “Sobre o autoritarismo brasileiro”, muitos são os fatores que nos legaram um presente com instituições ainda frágeis. Essa fragilidade ajudou a fomentar práticas de corrupção que se entranharam no coração do sistema, contaminando esferas públicas e privadas de uso do Estado.

A contravenção deixou de ser apenas um fenômeno frequente para encontrar-se arraigada na própria representação dos políticos e da política. Ao mesmo tempo, uma grande e persistente concentração de renda gerou acessos desiguais à terra, à educação, à moradia, à saúde, aos transportes e aos direitos.

Por fim, não há como esquecer diferentes momentos de intervenção autoritária no Brasil terem sido, com frequência, justificados em nome da segurança nacional. O problema é, nessas horas de pico na temperatura política, os direitos de os brasileiros costumarem ser vilipendiados, bem como a própria norma democrática.

Não podemos negar o Brasil ser hoje, sem sombra de dúvidas, um país menos desigual, a pobreza diminuiu, a educação e a saúde estão melhores do que já foram. O acesso a bens materiais também cresceu, como resultado da aplicação de políticas públicas, durante os últimos trinta anos, preocupadas, de forma crescente, com uma redistribuição mais equânime.

Não obstante, nossos indicadores sociais continuam alarmantes. A despeito de o Brasil ser o nono PIB mundial, 40% da sua população, até catorze anos de idade e nomeadamente negra, ainda se encontra em situação de pobreza.

Admite-se a existência, aqui, da polícia mais violenta do mundo — aquela que mais mata, morre e prende —, contando com a terceira maior população carcerária do planeta. Os registros de morte guardam uma certa cor definida, sendo que 70% dos casos envolvem populações jovens e negras. As ocorrências de feminicídio, estupro, assassinato e assédio à população LGBTTQ ainda são por demais frequentes e acham-se refletidas na baixa representatividade de mulheres e trans no Congresso Nacional.

O mesmo acontece com a população indígena. Ela segue mantida em grande invisibilidade social e representativa, e tem hoje seu direito à terra reiteradamente contestado.

Apesar de ter havido um aumento no acesso à educação infantil e de 90% das crianças de zero a três anos frequentarem agora a pré-escola, apenas 30% delas têm acesso a creches. Quase 55% dos estudantes que terminam o terceiro ano do ensino médio continuam apresentando problemas sérios de leitura, enquanto as melhores escolas privadas capacitam os alunos das elites para entrar nas melhores universidades, nesse caso, públicas. O desemprego subiu 12% em janeiro de 2019 e atinge 12,7 milhões de brasileiros. A área da cultura segue sucateada, não merecendo mais sequer um ministério em especial. Tais características, teimosas nesta nossa agenda brasileira de cinco séculos, tendem a se avolumar em contextos de recessão, notadamente, quando falta vontade política e sobra jogo para a plateia.

Mas, se a crise iniciada em 2013 e que tomou forma definida segue castigando o cotidiano dos brasileiros, ela carrega consigo uma ponta de esperança. Aliás, a própria palavra “crise”, de origem grega, traz o significado de “decisão”, no sentido de buscar a recuperação de um momento de instabilidade e de desequilíbrio do sistema político. Por outro lado, nem toda crise é causada por contextos de recessão, injustiça e desemprego.

A população lotou as avenidas das principais cidades, no ano de 2013, para pedir mais direitos no que se refere à saúde, à educação, à moradia e aos transportes, todas benesses previstas na Constituição. Criticou também políticos, partidos, as instituições. Nem mesmo o futebol, até então uma grande unanimidade nacional, a despeito dos valores exorbitantes recebidos por alguns de seus jogadores, ficou de fora.

E não parece coincidência a Lilia Schwarcz também nessa época ter se iniciado um acentuado processo de radicalização social, quando os brasileiros mostraram crescente descaso e pouco compromisso com as instituições, os partidos, a política e os políticos. Tanto no campo da direita como no da esquerda, as demandas desaguaram em ressentimento.

Por sua parte, o vazio social e o ceticismo adubaram um terreno já fértil para a ascensão de pretensos outsiders, políticos autoritários, oportunistas e populistas. Eles se dizem acima e além dos demais dirigentes, apesar de compartilharem do mesmo jogo político e viverem dele. Como não conseguem produzir consensos mais amplos na sociedade civil, apostam, seguindo as lições dos outros governos emergentes, no conflito e na divisão.

Com certeza, os protestos de 2013 e a crise política que se agravou com o impeachment da [golpe na] presidente Dilma, bem como os escândalos do Mensalão e da Lava Jato, impactaram negativamente a imagem dos políticos, de uma forma geral, e foram responsáveis por um ambiente generalizado de desconfiança. Não obstante, em países de tradição autoritária, a crise é capaz de fazer reviver e de renovar histórias de mais longo curso, de desrespeito às leis, descrença nas instituições e que sinalizam saídas dogmáticas e que se apresentam como as “salvadoras da pátria”.

Muito foi feito e, como lemos neste ótimo livro, “Sobre o autoritarismo brasileiro”, escrito por Lilia Moritz Schwarcz, muito há por fazer. Não existe sistema ou modelo que não sofra a ação do tempo. Por isso mesmo, uma democracia funciona melhor, e sobrevive por mais tempo, quando sua constituição é reforçada por normas democráticas escritas e não escritas, ou seja, partilhadas.

Também contaremos com cidadãos mais aptos para participar ativamente de nosso corpo de leis se reforçarmos as bases de uma educação pública e de qualidade: inclusiva e atenta a nossas diversidades sociais, e responsável diante das populações mais vulneráveis como indígenas, pessoas despossuídas e com deficiência. Em um país mais bem formado também se desenvolverão cidadãos mais comprometidos e republicanos, no sentido de não atravancarem o trânsito e a delimitação entre espaços públicos e privados.

Só assim criaremos um ambiente de tolerância — quando representantes de partidos diferentes são entendidos como rivais legítimos e dessa maneira reforçam o pacto republicano almejado. Já as polarizações têm o poder de matar a democracia, gerar uma retórica da divisão e eleger apenas demagogos. Eles não representam os desejos de justiça, segurança, ética, igualdade, os quais, suponho, são de todos nós, brasileiros.

A saída para a crise experimentada desde 2013 só pode vir de um pacto constitucional amplo e democrático, firmado com os múltiplos setores da sociedade, por meio da progressiva implementação de direitos em um país tão desigual como o nosso, e do fortalecimento institucional. Aliás, as constituições, na verdade, atuam como dispositivos que procuram regular o exercício do poder, estabelecem parâmetros de justiça que pautam as relações entre as pessoas e os cidadãos do Estado, e têm como destino último robustecer e aperfeiçoar a democracia, que é, até por definição, imperfeita.

Até o instante quando Lilia Moritz Schwarcz termina este ensaio em forma de livro, “Sobre o autoritarismo brasileiro”, a norma democrática não foi atingida, ao menos formalmente, já que as eleições foram vencidas nas urnas e as instituições mantêm sua rotina de trabalho. No entanto, democracia não se resume ao ato da eleição, ela vive do cotidiano. Ele ajuda a instaurar, e este tem enfrentado momentos difíceis:

  1. demonstrações de “namoro” com a nostalgia de uma ditadura presa a um passado mitificado; o caráter messiânico de certos representantes políticos;
  2. os ataques aos grupos minoritários, entre eles indígenas, negros e negras, homossexuais, queers ou transexuais;
  3. o desrespeito a formas de religião distintas das de matriz cristã-judaica; a ampliação de poderes de classificação do sigilo de documentos históricos;
  4. a repressão à liberdade pedagógica a partir da justificativa de doutrinação ideológica;
  5. a flexibilização do porte de armas de fogo;
  6. a celebração do exílio de adversários políticos, só têm feito soar o despertador do medo, para quem é adepto dos valores democráticos e dos direitos humanos.

E o medo funciona, é bom que se diga, como o oposto lógico e prático da utopia.

Toda vez quando a crise se avoluma, reaparece o nosso déficit republicano, localizado bem na raiz da comunidade política. Faz-nos falta, nessas horas, uma agenda ética capaz de:

  1. transformar o sistema político eleitoral e o comportamento partidário;
  2. atacar a corrupção dentro e fora do governo;
  3. combater a violência ainda assaltando a nossa liberdade de circular nas ruas.

O problema é, sendo assim frágil, nossa República continuar vulnerável.

Ameaças à Democracia publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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