Yuval Noah Harari, no livro “Homo Deus: Uma breve história do amanhã” (São Paulo: Companhia das Letras; 2015), pergunta: se a história não segue regras estáveis, e se não somos capazes de predizer seu curso futuro, por que estudá-la? Parece, para muitos, o principal objetivo da ciência ser predizer o futuro.
Da mesma forma, pede-se a historiadores examinarem as ações de nossos antepassados para repetir suas decisões sensatas e evitar seus erros. Mas quase nunca as coisas funcionam assim, simplesmente, porque o presente é muito diferente do passado.
Logicamente, com quebra da regularidade, a ciência não diz respeito só à previsão do futuro. Estudiosos em todos os campos buscam ampliar nossos horizontes e com isso abrem à nossa frente um futuro novo e desconhecido, portanto, incerto. Isto porque ele é fruto de múltiplas decisões ainda a serem tomadas de forma descentralizada, descoordenada – e desconhecida uma das outras.
Isso é especialmente verdadeiro no que diz respeito à história. Embora historiadores ocasionalmente arrisquem fazer profecias (sem muito sucesso), o estudo da história visa acima de tudo nos tornar cientes de possibilidades que talvez não levássemos em consideração. Historiadores estudam o passado não para poder repeti-lo, e sim para poder se libertar dele.
Cada um de nós e todos nós nascemos em uma determinada realidade histórica, governada por normas e valores específicos e conduzida por um sistema econômico e político ímpar. Vemos essa realidade como fato consumado e a achamos natural, inevitável e imutável.
Esquecemos o nosso mundo ter sido criado em uma cadeia de eventos acidental. A história configurou não apenas a tecnologia, a política e a sociedade, mas também nossos pensamentos, temores e sonhos.
A mão fria do passado emerge do túmulo de nossos ancestrais, nos agarra pelo pescoço e nos força a olhar na direção de um único futuro. Sentimos essa constrição desde o momento em que nascemos. Assim, presumimos ela ser parte natural e inescapável do que somos. Portanto, raramente tentamos nos livrar dela para antever futuros alternativos.
O estudo da história tem o objetivo de nos livrar dessa submissão ao passado. Ele nos permite voltar a cabeça para mais de uma direção e começar a perceber possibilidades inimagináveis para nossos antepassados.
Ao observar a cadeia acidental de eventos que nos trouxe até aqui, nos damos conta de como nossos pensamentos e projetos ganharam forma — e podemos começar a pensar e projetar de modo diferente. O estudo da história não dirá qual deve ser nossa escolha, mas ao menos nos dará mais opções.
Movimentos em busca de mudar o mundo, frequentemente, começam com a reescrita da história, permitindo reimaginar o futuro. Se você quer que trabalhadores façam uma greve geral, que as mulheres assumam que são donas do próprio corpo ou que minorias oprimidas exijam direitos políticos — o primeiro passo é recontar sua história.
A nova narrativa histórica vai explicar que “nossa situação atual não é nem natural nem eterna. As coisas uma vez já foram diferentes. O mundo injusto conhecido hoje foi criado apenas por uma série de eventos ocasionais. Se agirmos com sabedoria, poderemos mudar este mundo e criar um muito melhor”.
Por isso, marxistas recontam a história do capitalismo, feministas estudam a formação das sociedades patriarcais e afro-americanos rememoram os horrores do tráfico negreiro. O objetivo não é perpetuar o passado, e sim libertar-se dele.
O que é verdadeiro para as grandes revoluções sociais é igualmente verdadeiro para o micronível da vida cotidiana. Por exemplo, a ideia de criar um gramado na entrada de residências privadas e edificações públicas só nasceu nos castelos de aristocratas franceses e ingleses no final da Idade Média. No início da era moderna, esse costume enraizou-se e tornou-se uma marca registrada da nobreza. Palácios reais e castelos ducais fizeram do gramado um símbolo de autoridade.
Durante milhares de anos os humanos praticaram jogos em quase todo tipo de terreno imaginável, do gelo ao deserto. Mas, nos últimos dois séculos, os jogos realmente importantes — como no futebol e no tênis — são disputados em gramados. Contanto, é claro, que se tenha dinheiro.
Assim os humanos estabeleceram uma identificação entre gramados e poder político, status social e riqueza econômica. Não é de admirar que no século XIX a burguesia em ascensão tenha adotado o gramado entusiasticamente. No início, somente banqueiros, advogados e industriais podiam permitir tais luxos em suas residências.
Mas, quando a Revolução Industrial aumentou a presença da classe média e fez surgirem o cortador de grama e o aspersor automático de água, milhões de famílias puderam permitir-se ter um relvado em casa. Nos subúrbios americanos, gramados limpos e bem cuidados deixaram de ser luxo de gente rica e passaram a ser vistos como uma necessidade da classe média.
Foi então que um novo rito foi acrescentado à liturgia suburbana. Após os serviços da manhã de domingo na igreja, muita gente, com devoção, vai aparar seus gramados. Caminhando pelas ruas, você rapidamente verifica qual a riqueza e a situação de cada família pelo tamanho e pela qualidade de seu gramado. Não há sinal mais claro de que algo vai mal com os Jones do que um gramado negligenciado no jardim da frente. A grama é atualmente, depois do milho e do trigo, o cultivo mais disseminado nos Estados Unidos, e a indústria dos gramados (plantas, esterco, cortadores de grama, aspersores, jardineiros) fatura bilhões de dólares a cada ano.
Depois de ler essa breve história dos gramados, quando você for planejar a casa dos seus sonhos, pense duas vezes antes de escolher ter um gramado em seu jardim. Você é livre para espantar a carga cultural que lhe foi legada por duques europeus, magnatas capitalistas e os Simpsons — e imaginar um jardim de pedras japonês, ou alguma criação completamente nova.
Este é o melhor motivo para estudar história: não para poder predizer o futuro, e sim para se libertar do passado e imaginar destinos alternativos. É óbvio não ser uma liberdade total — não há como evitar sermos moldados pelo passado —, mas alguma liberdade é melhor do que nenhuma.
Todas as predições que aparecem neste livro, “Homo Deus: Uma breve história do amanhã”, não são mais do que uma tentativa de discutir os dilemas da atualidade e um convite para mudar o futuro. Predizer – a humanidade tentará alcançar a imortalidade, a felicidade e a divindade – é muito semelhante a fazer uma previsão de as pessoas, ao construírem uma casa, vão querer um gramado em seu jardim. Soam como coisas muito prováveis. Mas, uma vez ditas em voz alta, pode-se começar a pensar em alternativas.
O futuro descrito neste capítulo inicial do livro é o futuro do passado — isto é, um futuro baseado nas ideias e esperanças que dominaram o mundo nos últimos trezentos anos. O futuro real — isto é, um futuro nascido das novas ideias e esperanças do século XXI — pode ser completamente diferente.
Para compreender tudo isso, precisamos retroceder e investigar o que o Homo sapiens realmente é, como o humanismo se tornou a religião dominante no mundo e por que é provável que a tentativa de concretizar o sonho humanista cause a sua desintegração. Esse é o plano básico deste livro.
A primeira parte do livro examina a relação entre o Homo sapiens e outros animais, em uma tentativa de compreender o que faz nossa espécie tão especial. Alguns leitores poderão se perguntar por que os animais recebem tanta atenção em um livro sobre o futuro. Na opinião de Harari, não se pode realizar um debate sério sobre a natureza e o futuro da humanidade sem começar com nossos colegas animais.
O Homo sapiens faz o melhor que pode para esquecer esse fato, mas ele também é um animal. É duplamente importante lembrar nossas origens numa época em que buscamos nos tornar deuses. Nenhuma investigação de nosso futuro divino pode ignorar nosso passado animal, ou nossas relações com outros animais — porque a relação entre humanos e animais é o melhor modelo que temos para as futuras relações entre super-humanos e humanos.
Você quer saber como ciborgues superinteligentes poderiam tratar humanos normais de carne e osso? É melhor começar a investigar como os humanos tratam seus primos animais menos inteligentes. A analogia não é perfeita, é claro, porém é o melhor arquétipo que podemos observar, e não só imaginar, no presente.
Com base nas conclusões da primeira parte do livro, a segunda parte examina o mundo bizarro que o Homo sapiens criou no último milênio e o percurso que nos trouxe à nossa encruzilhada atual.
- Como é que o Homo sapiens se deixou levar pelo credo humanista, de acordo com o qual o Universo gira em torno da humanidade, e os humanos são a fonte de todo significado e de toda autoridade?
- Quais são as implicações econômicas, sociais e políticas desse credo?
- Como é que ele formata a nossa vida diária, nossa arte e nossos desejos mais secretos?
A terceira e última parte retorna ao início do século XXI. Fundamentada em um entendimento muito mais profundo da humanidade e do credo humanista, ela descreve nossos apuros e nossos possíveis futuros.
- Por que as tentativas de realizar o humanismo poderiam resultar em sua derrocada?
- Como poderia a busca da imortalidade, da felicidade e da divindade sacudir os fundamentos de nossa crença na humanidade?
- Que sinais prenunciam essa catástrofe, e como isso se reflete nas decisões que tomamos no dia a dia?
- E se o humanismo realmente está em perigo, o que poderia ocupar seu lugar?
Essa parte do livro não consiste em um mero filosofar ou em um predizer ocioso do futuro. Em vez disso, ela esquadrinha nossos smartphones, os costumes de paquera e namoro e o mercado de trabalho em busca de pistas de o que está por vir.
“As pessoas comumente têm medo da mudança porque temem o desconhecido. Mas a única grande constante da história é: tudo muda.”
Previsão do Passado não serve para Previsão do Futuro publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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