Maria Celina D’Araujo e Júlia Petek, professoras do Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, publicaram o artigo “Recrutamento e perfil dos dirigentes públicos brasileiros nas áreas econômicas e sociais entre 1995 e 2012”, na Revista de Administração Pública (RAP. Rio de Janeiro 52(5):840-862, set. – out. 2018).
Consideram, apesar de diferenças entre os três governos, e mesmo considerando a excepcionalidade do governo Lula da Silva nas evidências observadas em sua pesquisa, a hipótese de os ministérios econômicos terem padrões diferenciados foi demonstrada, mas por motivos um pouco distintos daqueles apontados pela bibliografia.
Do ponto de vista do recrutamento regional e funcional, mesmo com a constante predominância do Sudeste, nota-se a forte presença de dirigentes oriundos de Brasília indicar carreiras mais sólidas no governo federal. Entre os funcionários públicos convidados a ocupar cargos de dirigentes na área econômica, predominaram profissionais experimentados por já terem ocupado outras funções no serviço público federal, o que corroborara afirmação anterior.
Diferentemente dessa área econômica, a presença de funcionários públicos oriundos de estados e municípios é expressivamente maior na área social. Saliente-se que os municípios só entraram nessa esfera no governo Lula da Silva, evidenciando o capital político do PT no nível local e a decisão desse presidente em dar visibilidade a essas raízes carismáticas no cenário nacional.
A literatura sobre o Brasil tem insistido na hipótese da área econômica ser mais escolarizada em relação às demais. Não é o apurado na pesquisa das autoras. De fato, ao longo de todos os governos, as áreas mais educadas, do ponto de vista da titulação acadêmica formal, foram Saúde e Educação, com 100% de doutores e mestres no governo Fernando Henrique Cardoso. Talvez a natureza mais técnica das pastas econômicas explique a ênfase menor em carreiras acadêmicas.
Bourdieu (1989) observou que, na França, os alunos mais brilhantes da École Nationale d’Administration (ENA) são recrutados para ocupar cargos governamentais vinculados ao setor de finanças, enquanto os piores colocados vão para a área social. Essa, contudo, é uma situação muito diferente da do Brasil. O país não possui uma escola desse gênero. Há no país dispersão de boas universidades públicas e católicas a oferecer graduados para o serviço público. Por isso, centramos nossa atenção nos níveis de titulação.
A educação dos pais e das mães é um indicador importante para pensarmos a extração social dos dirigentes ou de qualquer grupo social. Os dirigentes da Saúde e da Educação têm pais e mães menos educados nos três governos. Nos ministérios econômicos, Fazenda e Planejamento, há os maiores índices de escolaridade não só dos pais como também das mães.
Esse é um indício para confirmar a tese de os nomeados para os cargos dos ministérios econômicos vêm de uma extração social mais alta. Podemos inferir esse capital social das famílias os incentiva a perseguir carreiras mais sólidas no serviço público e não apenas a titulação acadêmica. De outra parte, em todos os casos, o salto na educação dos pais e das mães em relação a seus filhos demonstra as possibilidades de ascensão social no país.
Quando passamos para a questão partidária, as diferenças entre os três governos não são grandes para estas quatro pastas, pois todas mantêm parcela de dirigentes filiados. O número, contudo, cresce nos governos do PT, mas sempre será o mais baixo entre os dirigentes do Ministério da Fazenda.
A principal diferença está na variedade de partidos a que são filiados. No governo Fernando Henrique Cardoso, 48,8% dos dirigentes filiados a partidos pertenciam ao PSDB, partido do presidente, enquanto nos governos Lula da Silva e Dilma Rousseff esses percentuais chegam a 80% e 81,8%, respectivamente. Trata-se, portanto, de um recrutamento partidário majoritariamente dentro do partido governista, especialmente nos governos do PT, o que pode ser explicado pela forte presença de filiados ao PT no serviço público.
Quando o assunto é a filiação a sindicatos ou a centrais sindicais, temos de novo a excepcionalidade do governo Lula da Silva, mas a manutenção de um padrão na área econômica. As pastas da Fazenda e do Planejamento tiveram participação menor de sindicalizados. No governo Fernando Henrique Cardoso variou entre 13% e 17% nos quatro ministérios e no governo Lula da Silva subiu para patamares entre 26% e 63%. Cai significativamente no governo Dilma Rousseff.
Em se tratando da presença de diretores de centrais sindicais, o governo Dilma Rousseff vai praticamente voltar ao patamar do presidente Fernando Henrique Cardoso. Nota-se que houve sim um afastamento de Dilma Rousseff de movimentos e associações típicas das bases do PT, e isso é especialmente claro quando se analisa a interface com movimentos sociais em geral.
O boom participativo de Lula da Silva não se repete com Dilma Rousseff. Em todo o caso, o importante para o estudo das coautoras é, com os três presidentes, o Ministério da Fazenda ter sido o mais retraído nesse tipo de participação, o que confirma a tese de uma área mais técnica e insulada, embora menos titulada.
No governo Lula, pelo visto na pesquisa, várias formas de capital estão presentes no preenchimento de cargos de livre nomeação. Foi um caso excepcional quando o capital político-partidário e várias formas de capital social em movimentos sociais e associativos foram acionados. De toda forma, os ministérios econômicos são mais retraídos nesse aspecto, em especial o da Fazenda.
Ao fim, o trabalho mostra diferenças pontuais entre os dirigentes dos ministérios examinados, mas demonstra também o quanto o governo conta com quadros qualificados, independentemente de diferenças nas formas de recrutamento. Poderíamos com esses dados buscar refletir como quadros tão preparados tecnicamente, de um lado, e tão socialmente engajados, de outro, contribuem para entender a sociogênese, a ação e a organização do Estado brasileiro.
Como nos lembra Bourdieu (2012), o campo burocrático não está desvinculado das especificidades culturais de cada país, nem é estático. Tem avanços e recuos. Os dados examinados mostram claramente alterações e também persistências.
As permanências residem no perfil mais técnico e insulado da área econômico-financeira, refletindo um aspecto cultural importante no país, ou seja, a ênfase no progresso econômico, ainda que muitas vezes apenas como capital simbólico. Essa visão de progresso deveria ser perseguida por gente com capacidades técnicas excepcionais, levando a supor as demais áreas de ação do governo serem menos qualificadas. De fato, e como provaram as autoras, não é isso o que acontece. Em termos de titulação acadêmica, a área econômica não é a mais expressiva.
O país foi formando gradativamente uma “casta de sábios-tecnocratas de Estado”, um corpo de funcionários altamente qualificado e educado. Essa expansão de quadros foi maior nas áreas voltadas à Saúde e à Educação, competências típicas das políticas de bem-estar social que muitas vezes, entre nós, foram confundidas com políticas de clientela e com gastos irresponsáveis.
Embora a literatura brasileira tenha até hoje valorizado mais os grupos insulados, ou grupos de excelência vinculados à industrialização, podemos começar a inferir que gradativamente o país vai construindo capacidades específicas ou habitus. Elas conformam práticas e espaços sociais com estruturas próprias, objetivos específicos e relativamente autônomos em setores burocráticos para além da esfera econômica.
Leia mais: Recrutamento de Dirigentes Públicos Brasileiros 1995-2012
Casta dos Sábios-Tecnocratas: Recrutamento ou Aparelhamento? publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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