Conheci em debate no COFECON, em Brasília, o Carlos Luque, professor da FEA- USP e presidente da Fipe. Ele é desenvolvimentista. Escreve bons artigos em coautoria com Simão Silber, também professor da FEA-USP, e Roberto Zagha. Este foi professor Assistente na FEA-USP nos anos 1970 e no Banco Mundial a partir de 1980, onde encerrou a carreira em 2012 como Secretário da Comissão sobre o Crescimento e o Desenvolvimento, e diretor para a Índia. Reproduzo seu artigo (Valor, 27/08/19) abaixo.
“Nossa inflação foi um problema por mais de um século. Chegou a 16% ao ano durante 1889-93 com um pico de 25% em 1891. Este surto inflacionário foi seguido por muitos outros. Períodos de estabilidade de preços: poucos e curtos. A partir dos anos 1980, com o segundo choque do petróleo, a inflação se descontrolou, chegando a 100% ao ano. Depois de vários planos que deram resultados temporários, a estabilização fiscal de 1993, o Plano Real e o “tripé” conseguiram estabilizar os preços de maneira durável.
Mas o espectro da inflação continuou dominando o país. Como explicar a política de taxas de juros do Banco Central? Com a retomada decepcionante dos últimos anos seria adequado o BC seguir o exemplo dos bancos centrais dos EUA, Europa e Japão. Estes bancos centrais reduziram suas taxas de juros reais para níveis negativos e sinalizaram que a política monetária por si só não poderia reanimar suas economias: políticas fiscais e monetárias expansionistas ambas são necessárias.
A decisão de reduzir a Selic a 6% indicando possíveis reduções adicionais é excelente. Mas não podemos esquecer que o excesso de juros pagos ao longo dos últimos anos comprometeu as finanças públicas e inibiu por completo os investimentos públicos. Certamente a trajetória de crescimento teria sido diferente. É importante agora que a redução de juros seja acompanhada por políticas fiscais expansionistas que permitam estimular nossa economia.
Como no caso dos EUA, UE e Japão a prioridade no Brasil é de fato a adoção de políticas fiscais e monetárias expansionistas. As condições são favoráveis para uma expansão dos gastos privados e públicos em nossa dilapidada infraestrutura, financiados por um programa ambicioso de privatização e concessões e emissão de títulos do governo de longo prazo. A “regra de ouro” permite este endividamento e o Tesouro pode se endividar a taxas de longo prazo que estão em queda.
Mas apesar da evidência dos últimos anos, nos quais a dívida pública aumentou e as taxas de juros e inflação caíram, perdura o temor de que a expansão de gastos com infraestrutura possa elevar a relação dívida/PIB e ameaçar a estabilidade de preços. A relação dívida/PIB pode ter significados diferentes dependendo da conjuntura. Uma coisa é a elevação dessa relação numa economia deprimida, taxas de desemprego elevadas e incerteza dominando os agentes econômicos. Outra é o comportamento dessa relação no quadro de um programa de investimentos públicos bem estruturados que permitam recuperar a trajetória de crescimento. Mesmo que a relação dívida/PIB se eleve no curto prazo será vista pelos agentes econômicas numa perspectiva completamente diferente.
Similarmente a taxa de inflação, dentro de certos intervalos, tem significados distintos dependendo do comportamento geral da economia. Uma inflação de 2% tem um significado muito distinto numa economia estagnada do que uma de 4% a 6% numa economia em crescimento.
As causas de inflação são múltiplas e variam dependendo de situações específicas. Os modelos que a explicam também variam. A inflação dos anos 1889-93, anos do “encilhamento”, foi devida a bancos privados que podiam emitir moeda livremente e fizeram-no sem restrições. Em outros períodos a causa foi expansão da demanda além da capacidade de oferta, rigidez da oferta, expectativas de desvalorização, indexação, falta de confiança na capacidade do Tesouro de honrar a dívida pública, ou aumentos de salários mais rápidos do que aumentos de produtividade.
Dependendo do período alguns destes fatores foram mais importantes do que outros. O debate entre os que acreditam que a inflação tem sua origem na economia real e os que acreditam que ela provém da expansão monetária é analiticamente um dos mais interessantes e importantes na teoria e prática da economia. Este é um debate que foi vigoroso no Brasil e voltou à tona nos EUA e Europa depois da crise de 2008.
Nos países desenvolvidos desde os anos 80, linhas de investigação teórica concluíram que políticas monetárias contracionistas podem ser incapazes de combater a inflação, que o papel das expectativas é fundamental, que a inflação pode ter raízes fiscais e que nestes casos políticas monetárias contracionistas podem acelerar a inflação. Um exemplo bem conhecido no Brasil é o do ex-economista-chefe do FMI, Olivier Blanchard, que demonstrou no começo dos anos 2000 que altas taxas de juros, ao levantar dúvidas sobre a capacidade do governo de honrá-las, poderiam levar a uma fuga do real e acelerar a depreciação e a inflação. Resultados exatamente opostos aos convencionalmente previstos. Estas ideias ressurgiram nos últimos anos no contexto, não de combate à inflação, mas de combate à deflação, quando se tornou evidente que sem políticas fiscais expansionistas os EUA, Europa e Japão não conseguiriam sair da recessão.
Apesar da riqueza dessas discussões e a complexidade associada a um diagnóstico do que causa a inflação, a política macroeconômica continuou refratária a novos desafios. Em 2015, chegou-se ao ponto de aumentos de preços administrados serem interpretados como resultantes de expansão de demanda, quando a economia já estava exibindo sinais de recessão.
As promessas de retomada da economia pela política fiscal convencional não se realizaram. É também improvável que se realizem com a reforma da previdência, os acordos comerciais com a União Europeia ou a reforma tributária. Nenhuma destas reformas será suficientemente poderosa para estimular a economia de maneira significativa. A ameaça de mais uma década de crescimento econômico anêmico e desemprego alto é real. Um programa de recuperação econômica se torna mais urgente a cada dia que passa.
Este programa deveria primeiro ter como objetivo principal o crescimento a taxas de pelo menos 4% sustentadas no longo prazo. Isto requer uma estratégia de crescimento baseada na exportação de manufaturados. O que por sua vez requer uma taxa de câmbio depreciada e a abertura comercial. Taxas de juros reais menores e um programa ambicioso de investimento em infraestrutura seriam dois elementos essenciais desta estratégia. Finalmente para assegurar a sustentabilidade desta estratégia por um período de tempo prolongado será importante assegurar sua sustentabilidade fiscal. Isto significa eliminação gradual dos incentivos fiscais que custam ao erário 4% do PIB ao ano e aumentar a tributação sobre as camadas de renda mais altas.
É verdade que o risco de aceleração da inflação não é zero e políticas monetárias e fiscais expansionistas poderiam reativá- la. Mas esta incerteza não justifica a continuação da situação econômica na qual o pais se encontra. Um futuro compatível com as aspirações da população exige repensar nossas políticas monetárias e fiscais e mudar de rumo.”
Editorial do Valor, no mesmo dia, fez sua avaliação da razão para a baixa inflação brasileira.
“A inflação deixou de ser foco de preocupação dos economistas nos últimos meses. Os índices de preços vêm se mantendo bem-comportados, apesar das turbulências nos mercados financeiros, ao contrário do que ocorria no passado. O Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo-15 (IPCA-15), prévia da inflação oficial do país, surpreendeu ao desacelerar para 0,08% em agosto na comparação com 0,09% registrado no mês anterior, informou na semana passada o IBGE. Foi a menor variação para o mês em nove anos e ficou no piso das estimativas dos analistas, balizando as expectativas para o IPCA do mês fechado. No acumulado em 12 meses, a variação também está em baixa, e ficou em 3,22%.
A queda de 0,45% do preço dos alimentos surpreendeu e foi explicada por uma temporada favorável de chuvas, que aumentou a oferta dos produtos. Ficaram mais baratos alimentos importantes na mesa brasileira como o feijão-carioca e o tomate, que contribuíram para reduzir os gastos da alimentação dentro de casa. Gasolina caiu 1,88%; e as passagens aéreas, passado o período de férias, despencaram 15,57%. A queda do combustível reduziu o IPCA-15 em 0,08 ponto percentual, e a das passagens aéreas em mais 0,07 ponto percentual.
Esses itens serviram de contrapeso ao aumento da conta de luz, que subiu 4,91% com o acionamento da bandeira tarifária vermelha, depois de ter subido 1,13% em julho. Desta vez, o reajuste foi mais intenso em São Paulo, onde alcançou 7,51%. Em consequência, a região metropolitana de São Paulo apresentou o índice mais alto de inflação das 11 regiões pesquisadas, de 0,31%. O menor índice foi registrado em Goiânia, onde houve deflação de 0,29%, em função da queda nos preços da gasolina. Outras cinco regiões metropolitanas das 11 pesquisadas registraram deflação em agosto.
O resultado do IPCA-15 contribuiu para influenciar a revisão para baixo das previsões para o IPCA do mês fechado de agosto, chegando a reduzir pela metade o número esperado por algumas instituições. O IPCA de julho já havia surpreendido com a variação de 0,19%, a menor taxa para o mês em cinco anos. No acumulado em 12 meses, ficou em 3,22%, 1 ponto percentual abaixo do centro da meta de inflação, fixado em 4,25%. Houve revisão também dos resultados esperados para o ano. Pesquisa Focus divulgada nesta segunda-feira mostrou a redução da mediana da inflação prevista pelas instituições financeiras e consultorias ouvidas de 3,71% para 3,65%, mais de meio ponto abaixo do centro meta da inflação, de 4,25%. As top 5 que mais acertam os prognósticos falam em 3,5%.
A recente estirada do dólar chegou a levantar a preocupação com o impacto da pressão do câmbio na inflação. Mas os registros do IPCA-15 indicam que esses temores são infundados. No período em que o IPCA-15 de agosto foi apurado, de 13 de julho a 13 de agosto, o dólar subiu cerca de 7%, passando de R$ 3,73 para pouco mais de R$ 4. Mas não teve espaço para mudar a trajetória do índice.
Desde 1 de agosto, quando o IPCA começa a ser calculado, o dólar já avançou perto de 8%, e a cotação supera os R$ 4,15. Economistas discutem a partir de qual nível o dólar levaria à alta da inflação. Esse, porém, é um fator fora de controle, atrelado ao cenário internacional, determinado pelos rumos da briga comercial entre os Estados Unidos e a China.
Por outro lado, as forças que seguraram o IPCA-15 em agosto seguem atuantes, entre elas o recuo dos preços dos alimentos. Mas sobressaem os motivos negativos: a demanda fraca, que não abre espaço para o repasse de preços, consequência da economia estagnada e do desemprego ainda elevado. Há ainda a capacidade ociosa das indústrias, situação agravada pela crise na Argentina.
O endividamento das famílias parece ter voltado a crescer e também restringe o consumo. Nem mesmo a liberação do saque de R$ 500 das contas do FGTS deve mudar significativamente esse quadro.
O Produto Interno Bruto (PIB) do segundo trimestre, a ser divulgado, vai dimensionar o tamanho do problema. O consumo equivale a 63% do PIB.
O patamar atual da inflação, porém, ao lado do andamento das reformas econômicas, mantém aberto o caminho para o Banco Central (BC) continuar cortando os juros, o que pode resultar em ânimo para o nível de atividades. Um fator de risco no horizonte é uma escalada na crise internacional de modo a acentuar a saída de capital estrangeiro e pressionar mais o câmbio.”
Era da Inflação e dos Juros Baixos publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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