domingo, 29 de setembro de 2019

Vender a casa para fazer compra em supermercado?!

A casa caiu! Esta é uma expressão popular usada quando tudo dá errado, não havendo nada a se fazer para contornar o caos provocado. Significa: alguma situação não teve um bom desfecho, deu errado ou saiu do controle.

O Estado brasileiro não está – e, enquanto for emissor de moeda aceita para liquidação de contratos e pagamento de impostos, não estará – inadimplente. O risco de insolvabilidade do Tesouro Nacional é uma mitificação para assustar os incautos, iludir os desinformados e pressionar o Estado para obtenção de benesses pessoais. A situação de insolvência é o estado do devedor sem recursos, financeiros ou patrimoniais, para saldar as obrigações contraídas. Ocorre quando há inadimplência por parte dele.

Ora, o Tesouro Nacional emite títulos de dívida pública (prefixado e indexado) com risco soberano e juros em longo prazo acima do juro básico em curto prazo amplamente aceitos. Há, inclusive, um custo de oportunidade ficar em aplicação com maior liquidez.

Aqui não aconteceu o fenômeno ocorrido nos Estados Unidos. Lá as taxas longas ficaram abaixo da taxa curta. Alguns analistas acham juros negativos serem o novo “padrão normal” do mercado financeiro mundial nas próximas décadas. Desconfio de todos os prognósticos apocalípticos sem demonstração de evidências empíricas da tendência.

Finanças Comportamentais é uma nova área de conhecimento onde se estuda os vieses heurísticos contumazes para evitar as peças pregadas na mente humana. Um deles é chamado de Contabilidade Mental: manter contas mentais separadas para cada investimento, face à dificuldade de olhar a carteira de ativos como um todo. Ativos são formas de manutenção de riqueza em estoques ou saldos.

Alguns oferecem fluxos de rendimentos. Outros não têm grande valor de mercado por não oferecerem grandes lucros correntes. Mas têm valor intangível.

Por exemplo, a União controla direta ou indiretamente empresas estatais dependentes em mais de 80% de sua receita por meio dos repasses do governo federal. Para fomentar o desenvolvimento em diversas áreas, não supridas por iniciativas particulares do setor privado (“falhas do mercado”), elas recebem recursos financeiros do controlador para pagar despesas com pessoal ou para custeio em geral ou de capital.

A empresa com mais recursos de subvenção no período foi a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), cuja soma foi de R$ 12,6 bilhões, seguida pela Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), recebendo R$ 5,5 bilhões, e pelo Hospital Nossa Senhora da Conceição (HNSC), com R$ 4,6 bilhões de subvenção. A primeira é a responsável pela revolução tecnológica ocorrida na agricultura dos trópicos, propiciando a conquista do cerrado com alta produtividade e exportação pelo agrobusiness brasileiro. As outras duas cuidam da saúde dos brasileiros. Só.

Na classificação por atividade econômica, ficam em destaque as subvenções direcionadas a empresas estatais do setor de pesquisa e desenvolvimento. Nessa área atrasada no Brasil, elas receberam 39% do total dos repasses da União, seguidas pelas companhias dos setores de saúde, com 29%, e transporte, com 10%.

Entre 2012 e 2016, mesmo com o recebimento de subvenções, o conjunto das empresas estatais federais dependentes evidentemente registrou resultados negativos recorrentes. O prejuízo líquido das estatais federais dependentes quase dobrou de R$ 1,5 bilhão para R$ 2,9 bilhões em 2016. O resultado acumulado das dependentes entre 2012 e 2016, desconsiderando as subvenções, seria um prejuízo líquido total de R$ 62,5 bilhões. No entanto, essa análise de contabilistas ou economistas fiscalistas não faz avaliação socioeconômica da importância histórica e futura das empresas estatais.

A Secretaria do Tesouro Nacional revelou alguns números detalhados, infelizmente, restritos apenas ao período de 2012 à Grande Depressão de 2015-16. A arrecadação de dividendos e juros sobre o capital próprio pela União atingiu o montante de R$ 27,8 bilhões em 2012, decrescendo em anos seguintes, devido principalmente à retração da economia por conta da elevação da taxa de juro, até alcançar o patamar de R$ 2,8 bilhões em 2016. Dá para extrapolar esse mau resultado cíclico para o futuro?!

Das cinco maiores participações da União, três são do setor financeiro (BNDES, Banco do Brasil e CAIXA), e duas do setor de energia (Petrobras e Eletrobrás). Representavam 95% do total do patrimônio líquido das empresas estatais federais em 2016. As estatais “top 5” registraram lucro líquido de R$ 60,7 bilhões no primeiro semestre do ano corrente (2019), um avanço de 69% sobre igual período de 2018. Juntas, as top 5 respondem por 95% do total do resultado das empresas estatais federais.

A geração de lucro pelas estatais contrasta com seu desempenho no passado recente. Dados compilados pela Secretaria de Coordenação e Governança das Empresas Estatais mostram, em 2015, ou seja, na Grande Depressão, o conjunto das empresas havia gerado prejuízo de R$ 32 bilhões. Três anos depois, em 2018, o resultado havia sido revertido para lucro de R$ 71,5 bilhões. Houve uma virada de R$ 103,5 bilhões.

Esta “recuperação” do resultado das estatais se deve muito às desestatizações e desinvestimentos, ou seja, não é um resultado recorrente. A venda de empresas estatais explica boa parte da melhora financeira das empresas no primeiro semestre deste ano.

Esses eventos extraordinários, no caso do top 5, implicam em pior resultado no futuro com menos recebimentos de dividendos dos bancos públicos, Petrobras e Eletrobrás. Além disso descapitalizar instrumentos-chave de intervenção econômica de um Estado historicamente desenvolvimentista, fundamentais para a retomada do crescimento.

“Os lucros não recorrentes das empresas estatais contribuirão para o processo de privatização”, avalia o governo neoliberal com visão curto-prazista de O Mercado. Ele terá mais facilidade em colocar no mercado ativos negociáveis. O ministro da Economia, ex-banqueiro de negócios, disse pretender privatizar “todas” as empresas estatais como fossem dele! Ele é um corretor de venda de patrimônio alheio, no caso, público! Sem aprovação do Congresso Nacional, é crime lesa-pátria!

Defende um amplo programa de concessões e privatização de estatais capaz de arrecadar R$ 700 bilhões. Diz o objetivo da venda de ativos da União reduzir em cerca de 20% a dívida bruta do governo geral, atualmente, em torno de R$ 5,5 trilhões. Veja a disparidade para estimativas mais realistas feitas por consultorias de mercado: de R$ 234,5 bilhões a R$ 300 bilhões. Ele não dimensiona o dito levianamente!

Portanto, cabe relembrar a regra de bolso: “não se faz compra com venda de patrimônio”. Em vez de consumir estoque de capital, só usar o fluxo de renda para o consumo é aceito pela contabilidade mental. É uma prevenção contra a Conta de Riqueza, isto é, a propensão a resgatar os ativos ou estoques de riqueza com maior liquidez, interferindo, inconscientemente, na alocação adequada de recursos.

Outra regra de bolso é:
“dinheiro não tem carimbo”. Tem de se avaliar o problema por todos os ângulos, e não apenas sob a forma de apresentação da situação cíclica por alguém suspeito. Não se pode fiar nas contas do ministro da Economia Paulo Guedes, cuja leviandade avalia as vendas dos ativos da União alcançarem até R$ 1,25 trilhão.

Se vende patrimônio – “conjunto de bens”, diferente do “conjunto de males” característico de um matrimônio –, aplaca-se a fome hoje, mas morrerá faminto amanhã sem renda. Daí a solução é gerar um fluxo de rendas perenes – e não vender estoque.

Os níveis de um estoque de riqueza mudam com o tempo, devido ao saldo líquido entre os fluxos de entradas e os de saídas. Para tanto, é necessária a trilogia schumpeteriana: inovação da casta dos sábios-criativos, empreendedorismo da casta dos mercadores e crédito da casta dos mercadores-financistas. A casta dos militares cuide da segurança.

A motivação, em economia de mercado, é usar dinheiro de outras pessoas em benefício próprio: conseguir associados para implementar uma inovação. O ganho do fundador será obter participação acionária com divisão de lucros / prejuízos entre os sócios e controlar a gestão do empreendimento.

Mais adiante, faz a abertura de capital com IPO de parte minoritária com cotação atribuída por mercado de ações. Essa capitalização propiciará tomar dinheiro emprestado para fusões e aquisições, elevando o valor de mercado e enriquecendo os sócios majoritários capazes de manter o controle.

O segredo do negócio capitalista é a alavancagem financeira no mercado de capitais para a capitalização e no mercado de crédito para multiplicar a rentabilidade patrimonial com a maior escala dos negócios. Se usa empréstimos para comprar ativos existentes é apenas troca de propriedades para especulação, isto é, vender mais caro mais adiante. Se os usa para contratar mão-de-obra e adicionar valor novo sob forma de fluxo de rendas, é benéfico para a casta dos trabalhadores e os párias desocupados.

Ciclos de feedback são interconexões dinâmicas entre os distintos agentes econômicos. Os de reforço fazem o sistema complexo se mover. Os de regulação ou balanceamento, por parte da política econômica, o impedem de explodir ou implodir.

Com reforços de feedback, quanto mais se tem, mais se ganha. Sem controle, amplificam o movimento em círculos inicialmente virtuosos, depois viciosos. Atrasos nos fluxos para acumulação de estoque podem gerar obstinação no sistema, isto é, tempo demasiado para regeneração, por exemplo, da confiança. Os maiores riscos não são dos estoques de dívidas públicas e privadas, mas sim do fracasso dos tomadores de decisões de política econômica em fazer as coisas certas para multiplicar fluxos de renda, devido à falta de conhecimento e/ou de dimensionamento do dito levianamente.

Publicado originalmente em:

Vender a casa para fazer compra em supermercado?!, por Fernando Nogueira da Costa

Vender a casa para fazer compra em supermercado?! publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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