Há muitos anos, li em um jornal e anotei: “o ato de viver é dispersivo, a experiência humana é diluída, as mais diferentes emoções e os mais diferentes sentimentos se acumulam. Mas, em bons livros, é possível ler uma interpretação do mundo e captar uma parcela da realidade refletida em si. Quando isso acontece, é uma revelação”.
Se alguém descobre a possibilidade de estar se dizendo em um texto lido e trocar esse conhecimento revelador de seu pensamento com outras pessoas, vai entender o livro ser também um modo como alguém se apresenta ou compartilha sua visão de mundo. Por isso, nos surpreendemos e nos identificamos com certos autores capazes de escrever organizadamente sobre o que estamos pensando de maneira muitas vezes inconscientemente desalinhavada.
A leitura é uma grande re-evolução para uma pessoa testar suas ideias, descartar as falseadas e evoluir criativamente. A mistura de ideias ou a aplicação de métodos de análise de uma área de conhecimento em outra estimula a criatividade.
Uma vida com significado exige nos contarmos histórias sobre nós mesmos a nós mesmos. É necessária a permanente criação-destruição-recriação de uma narrativa pessoal a partir dos eventos da nossa vida para trazer luz e entender como nos tornamos quem somos, compartilhar as experiências vivenciadas… e controlar nosso ego.
A análise contínua da nossa evolução deve contemplar tanto o plano pessoal quanto o plano social. Quem sou eu? Se sou… quantos sou? Quantas pessoas pensam como eu a respeito de nossa Sociedade? Poderemos fazer ações coletivas, isto é, Política, para a redirecionar? A Comunidade não deve submeter O Estado e O Mercado aos direitos da cidadania – e não o contrário: permitir ambos se desincrustarem da Sociedade?
Reginaldo Moraes, professor recém-falecido do IFCH-UNICAMP, teve uma vida com sentido exemplar. Deixou-nos um legado intelectual capaz de propiciar uma releitura esclarecedora ou, se quiser, iluminista. Foi capaz de iluminar um aspecto essencial da realidade brasileira contemporânea antes obscurecida, pelo menos na minha modesta mente: a importância dos governos locais como barreiras ao obscurantismo populista de direita em alternâncias pendulares de poder. Eles podem (e devem) colocar obstáculos à destruição cultural, social e econômica de governo central em certas fases.
Em coautoria com Maitá de Paula e Silva, mestre em Ciência Política pela UNICAMP, Regis publicou O peso do Estado na Pátria do Mercado (Editora Unesp; 2013: 83 páginas). Demonstraram ter havido duas fases no ativismo estatal norte-americano, abrindo caminho para o desenvolvimento do país no século XIX. Na primeira dessas fases, o protagonismo coube ao governo estadual, na segunda, ao governo municipal.
Falar de “Estado” e de “ação estatal” nos Estados Unidos envolve uma compreensão do caráter bastante específico da organização do federalismo naquele país. Houve muita relevância dos Estados federados e dos governos municipais em especial na regulação dos atos econômicos referentes às manufaturas, aos bancos e ao comércio, entre outras atividades. Sem eles não haveria como explicar o imenso mercado interno e a máquina produtiva capaz de superar, já no fim do século XIX, os rivais europeus (Inglaterra, Alemanha, França, etc.) somados.
A tese de doutoramento O Departamento de Guerra e o Desenvolvimento Econômico Americano: 1776-1860, defendida por Nicholas Miller Trebat, no IE-UFRJ, analisa o papel das forças armadas no desenvolvimento econômico dos Estados Unidos da Guerra de Independência norte-americana (1776 – 1783) ao início da Guerra de Secessão (1861-1865). A atuação do Departamento de Guerra no processo expansivo nos EUA intensificou especialmente após a Guerra Anglo-Americana de 1812-1815.
O federalismo estadunidense deixava para a União se responsabilizar pela missão militar, cuidando os governos locais (estaduais e municipais) da infraestrutura e da educação. A participação dos gastos militares nos gastos primários totais do governo federal ficou em torno da média de 70%, entre 1792 a 1860, alcançando níveis excepcionalmente elevados acima de 90% em períodos de guerra.
O exército dos Estados Unidos exerceu três funções principais para expansão das fronteiras de colonização: proteção aos povoados de brancos, intimidação e genocídio de tribos de nativos “rebeldes”, e coordenação de atividades de guerra e conquista. É um mito-fundador a descrição liberal e individualista da colonização das regiões a oeste dos Apalaches como um processo liderado apenas por colonos euro-americanos.
Essa mitificação ignora o esforço do Departamento de Guerra para domar o “oeste selvagem”. Foi o exército, fundamentalmente, e não os acordos diplomáticos com as potências europeias, realizados a posteriori, o que viabilizou a expansão territorial no Meio-Oeste e nas regiões interioranas de Geórgia, Alabama e Mississippi.
O Estado bélico norte-americano expropriou e reservou para a União a maior parte dos territórios indígenas do Oeste. Nasceu assim o “domínio público”, colocando milhões de acres de terras em posse do governo federal, à medida que as aquisições e anexações aumentavam o território do país da costa Leste à costa Oeste.
No Brasil, pela Lei de Terras (1850) da Monarquia Absolutista, só poderia ter terra quem as comprasse e legalizasse as áreas nos cartórios mediante o pagamento de taxa à Coroa. Nos Estados Unidos, a Lei da Colonização (1862) garantia somente ter direito à propriedade da terra quem nela morasse e trabalhasse.
A política fundiária com o reconhecimento de direitos de usucapião e crédito facilitou a compra de terra por pequenos proprietários. O Homestead Act, promovido pelo presidente Lincoln, durante a Guerra de Secessão (1861-1865), cedeu terra pública a milhões de famílias dispostas a lavrar a terra. Além de privatizar e/ou doar terra, o governo federal alocou outras partes do domínio público aos estados e a empresas privadas para fins específicos como educação, mineração, e a construção de ferrovias.
Essa política de terras e a política e imigração foi responsável por levar aos EUA cerca de 60% dos imigrantes europeus entre 1800 e 1914, pela distribuição de pequenos lotes de terras e pela formação de grande mercado interno com a riqueza mais bem distribuída. O Brasil recebeu aproximadamente dez vezes menos imigrantes, se comparado aos EUA no mesmo período, porque manteve a concentração latifundiária. Resultado: seu mercado interno é menor de ¼ do norte-americano.
Nos EUA, o governo federal cedia as terras às ferrovias ou as vendiam a baixo custo, para americanos e imigrantes alargarem as fronteiras econômicas do país. As estradas de ferro uniam as zonas de agropecuária do Oeste aos mercados consumidores do Leste. A operação das empresas ferroviárias – algumas das maiores empresas do mundo até então – requeria financiamentos maciços. Deu margem ao surgimento dos bancos de investimento, bem como à centralização e institucionalização do mercado de capitais, com lançamento de ações na Bolsa de Nova York. Pequenos burgueses, proprietários de terras e negócios próprios, se associavam aos grandes “barões-ladrões” dos trustes e carteis por meio de compra-e-venda das ações no mercado secundário.
Tratou-se de um movimento histórico tão específico a ponto de o tornar um caso único, dificilmente repetível. É, portanto, inapropriado o tomar como modelo a ser copiado sem adaptação como é o desejo do atual tzar do ministério da Economia no Brasil.
Outra lição aprendida com leitura: de acordo com o liberalismo da esquerda norte-americana, o governo da comunidade local age como um escudo contra as políticas do governo federal, durante uma alternância de poder, quando o pêndulo vai mais para o lado de uma pauta retrógada. Ele protege as minorias contra uma possível tirania da maioria dos eleitores, dotados de costumes conservadores, com desejo de os impor aos outros. Serve de anteparo contra o poder federal a ameaçar os cidadãos não aliados.
Por exemplo, no Brasil atual, há o pool (ou consórcio) progressista formado por governadores do Nordeste. No entanto, falta-lhes instrumentos de intervenção econômica significativa. Boa parte deles foram extraídos na primeira onda de “privataria”: a tucana dos anos 90s. Foi quando os bancos estaduais lhes foram expropriados em nome da negociação da dívida pública. Hoje, fazem falta para maior autonomia dos Estados federativos frente ao centralismo do orçamento da União.
Finalmente, outra “luz” recebida recentemente através de leitura: o neoliberalismo tem uma atitude dupla em relação ao Estado. No nível exotérico, quanto a uma doutrina passível de ser ensinada ao grande público e não somente a um grupo seleto de pessoas, a propagação da ideologia populista de direita afirma o Estado necessita ser desprezado. Porém, no nível esotérico, isto é, quando a doutrina é destinada a discípulos particularmente nomeados, para aprofundamento da estratégia real, o Estado deve ser ocupado (“aparelhado”) e instrumentalizado para abrir espaço aos negócios particulares da rede de relacionamentos dos nomeados.
Daí o aparente paradoxo: o neoliberalismo enfraqueceu o federalismo brasileiro ao centralizar poder na União. Uma frente ampla progressista necessita se aliar para conquistar governos locais (municipais e estaduais) e barrar o neofascismo miliciano aliado ao neoliberalismo econômico atualmente ocupante do governo central.
Publicado originalmente em:
Federalismo da Cidadania contra Neoliberalismo Neofascista, por Fernando Nogueira da Costa
Federalismo da Cidadania contra Neoliberalismo Neofacista publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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