Lilia Moritz Schwarcz, no livro “Sobre o autoritarismo brasileiro”, mostra: o número diário de homicídios no Brasil equivale ao de mortos na queda de um Boeing 737-800 totalmente lotado. Essa é uma das conclusões do Atlas da Violência 2018, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
Tal quadro nos coloca dentro de um grupo de países considerados violentos, com índices de mortalidade trinta vezes maiores do que aqueles observados, por exemplo, no continente europeu. Registram-se aqui cerca de 171 mortes por dia e, levando-se em conta os dados de 2016, 62,5 mil anuais, sendo que, apenas na última década, houve 553 mil mortes por homicídio doloso.
O mesmo relatório atesta que no Brasil, pela primeira vez, o número de mortes violentas superou a casa dos 60 mil em um ano. Aliás, segundo o Atlas da Violência 2018, também pela primeira vez o país atingiu a taxa de trinta assassinatos para cada 100 mil habitantes. Contabilizando-se 62517 homicídios, a taxa atingiu 30,3.
O Brasil apresenta índices que se comparam aos da Colômbia, e só perdemos para Belize, Honduras, para a própria Colômbia e El Salvador. É fato a Organização Mundial da Saúde (OMS) possuir dados confiáveis apenas para alguns países. A maioria das nações africanas, por exemplo, está fora da lista de registros de alta qualidade. Mesmo assim, com os números efetivamente conhecidos, é possível ter certeza de as taxas de mortes violentas serem muito mais altas na América Latina em relação ao restante do mundo.
A despeito de contarmos com índices muito elevados, de uma maneira geral existem também discrepâncias significativas entre as unidades da federação. Sergipe e Alagoas, com taxas respectivas de 64,7 e 53,4 por 100 mil habitantes, apresentam índices superiores à média nacional de trinta assassinatos por 100 mil habitantes. Se há estados com taxas menores — como São Paulo, 10,9; Santa Catarina, 14,2; e Piauí, 21,8 —, há, porém, unidades da nação cujos registros cresceram mais nos últimos dez anos: o Rio Grande do Norte, por exemplo, apresentou a maior alta, chegando a 256,9%.
Notam-se, ainda, discrepâncias consideráveis no que se refere ao quesito geração. A taxa de homicídios de jovens por 100 mil habitantes é pior do que aquela que mencionamos acima: os 33590 jovens assassinados em 2016 representam um aumento de 7,4% em relação ao ano anterior. Se levarmos em conta os “homens jovens”, de quinze a “a 29 anos, a taxa nacional chega a 122,6 por 100 mil habitantes.
Segundo dados do Atlas da Violência, os homicídios respondem por 56,5% da causa de óbito de homens entre quinze e dezenove anos. Em números absolutos, de 2006 a 2016, ou seja, no espaço de dez anos, 324967 jovens foram assassinados no Brasil.
O Atlas mostra, além disso, que entre 1980 e 2016 cerca de 910 mil pessoas morreram por causa do uso de arma de fogo no país. No ano de 2016, por exemplo, 71,1% dos homicídios foram praticados com esse tipo de instrumento. De acordo com o estudo, uma verdadeira corrida armamentista, que vinha acontecendo desde meados dos anos 1980, só se interrompeu em 2003, quando foi sancionado o Estatuto do Desarmamento. Na década de 1980, a proporção de homicídios já girava em torno de 40%, e o índice cresceu ininterruptamente até 2003, quando atingiu o patamar de 71,1%, ficando estável até 2016.
Em que pesem os limites impostos pelo Estatuto, segundo dados do Exército, obtidos via Lei de Acesso à Informação pelo Instituto Sou da Paz, cerca de seis armas são vendidas por hora no mercado civil nacional. Apenas de janeiro a agosto de 2018, já haviam sido comercializadas 34731 armas. O número de novas licenças para pessoas físicas também cresceu enormemente, passando de 3029 em 2004 para 33031 no ano de 2017. Seguindo a mesma tendência, o registro para colecionadores, caçadores e atiradores desportivos praticamente dobrou. Em 2012, foram 27549 e, em 2017, 57886. Assim, há mais de meio milhão de armas nas mãos de civis, chegando-se a um total de 619604.
Na contramão de tendências expressas pelo atual governo, que tem defendido a facilitação da venda de armamentos, os resultados do Atlas da Violência revelam que, se uma série de fatores precisam ser atacados conjuntamente para garantir que o Brasil seja um país menos violento, o controle das armas de fogo continua sendo uma estratégia central. Afirmam seus autores que, na última década, os estados onde se observou maior crescimento da violência letal são também aqueles em que houve, concomitantemente, maior crescimento de vítimas por arma de fogo.
O Estatuto do Desarmamento, que entrou em vigor no dia 22 de dezembro de 2003 por meio da lei n. 10826, proíbe o porte de armas, abrindo exceção apenas para os casos de necessidade comprovada, os quais, mesmo assim, terão uma duração determinada previamente. Todavia, a licença pode ser cassada a qualquer momento, sobretudo se o portador for abordado em estado de embriaguez, ou sob efeito de drogas ou medicamentos que provoquem alteração na capacidade intelectual ou motora.
Tomando a data da promulgação da lei, e transformando em números as afirmações dos autores do Atlas, é possível sustentar: no período que vai de 2003 a 2012, cerca de 120 mil mortes por arma de fogo foram evitadas no país. Essa quantidade corresponde a um Maracanã antigo lotado e a quase uma Hiroshima ou duas Nagasakis; tudo no espaço de uma década.
O impacto positivo do Estatuto do Desarmamento sobre os indicadores da violência no Brasil é, portanto, inegável. Visto por outro ângulo, e tomando-se os anos que antecederam a entrada em vigor da lei — de 1980 a 2003 —, o aumento médio do número de homicídios por arma de fogo chegou a 8,36% ao ano, o percentual caindo para 0,53% com o começo do cumprimento do Estatuto.
Mesmo assim, e de acordo com a Organização Mundial da Saúde, 123 pessoas morrem vítimas de homicídio por arma de fogo todos os dias no nosso país. Conforme a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, somente no ano de 2014 ocorreram cinco mortes por hora, registrando-se um total de 44861 vítimas. O Brasil mata 207 vezes mais que Alemanha, Áustria, Dinamarca e Polônia, quando as mortes violentas são causadas pelo uso de arma de fogo. Além do mais, segundo o Ministério da Saúde, entre 2015 e 2018 houve 518 internações na faixa etária de até catorze anos, motivadas pela existência de arma em casa.
Tais argumentos não têm impacto em certos setores da sociedade, representados por um grupo de parlamentares que atuam no Congresso, a assim chamada “bancada da bala”, os quais continuam atacando o Estatuto do Desarmamento e defendendo uma maior “flexibilização da lei”. Entre as propostas do setor estão o aumento do número de armas, de seis para nove, por civil; a redução da idade mínima para o porte de arma; e o fim da necessidade de revalidação da licença a cada três anos. Parte dessas demandas foram atendidas pelo novo governo, e já no princípio da gestão, em 2019.
O que esse tipo de argumento não avalia, porém, é a escalada das armas, embora possa resolver problemas pessoais, provocar ainda mais violência social.
Violência publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário