Lilia Moritz Schwarcz, no livro “Sobre o autoritarismo brasileiro”, afirma: toda sociedade elabora seus próprios marcadores de diferença. Ou seja, transforma diferenças físicas em estereótipos sociais, em geral de inferioridade, e assim produz preconceito, discriminação e violência.
O conceito de “diferença” implica reconhecer, como explica o filósofo Michel de Montaigne (1533-92): “o homem é um assunto espantosamente vão, variado e inconstante”, no sentido de ser rica e plural a experiência humana, o termo, na prática, tem sido mais utilizado para desqualificar. No mundo contemporâneo, ele também é aplicado para justificar um tipo de comportamento que privilegia a formação de grupos isolados em suas mídias digitais, separados por seus interesses e polarizados nas suas identidades; cada qual ficando prisioneiro cativo e afetivo da sua própria bolha.
De outra parte, o aumento da percepção social da igualdade, com a inclusão de novos sujeitos políticos, muitas vezes acaba por gerar insatisfação em setores da sociedade. Eles tendem a considerar o “outro” como menos legítimo e dessa maneira lhe negam o direito a uma cidadania plena, condicionada pela “diferença” que ostentam.
Marcadores sociais da diferença são, portanto, e como define o Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença da USP (Numas), “categorias classificatórias compreendidas como construções sociais, locais, históricas e culturais, que tanto pertencem à ordem das representações sociais — a exemplo das fantasias, dos mitos, das ideologias que criamos —, quanto exercem uma influência real no mundo, por meio da produção e reprodução de identidades coletivas e de hierarquias sociais”.
Mas essas categorias não produzem sentido apenas isoladamente; elas agem, sobretudo, por meio da íntima conexão que estabelecem entre si — o que não quer dizer que possam ser reduzidas umas às outras. Na lista de marcadores sociais, com impacto na realidade em que vivemos, estão incluídas categorias como raça, geração, local de origem, gênero e sexo, e outros elementos que têm a capacidade de produzir diversas formas de hierarquia e subordinação.
Em nossa sociedade, o uso perverso de tais categorias tem gerado todo tipo de manifestação de racismo, levado ao feminicídio, produzido muita misoginia e homofobia, bem como justificado uma disseminada “cultura do estupro”, cujos números continuam alarmantes, mas são, ao mesmo tempo, majoritariamente silenciados no país, como veremos mais à frente neste livro.
Uma profusão de estatísticas oficiais demonstra como as populações afro-brasileiras são objeto dileto da “intersecção” de uma série de marcadores sociais da diferença que acabam condicionando, negativamente, sua inclusão na sociedade “, com um acesso mais precário à saúde, ao emprego, à educação, ao transporte e à habitação. Por exemplo, negros e negras sofrem com enormes disparidades salariais no mercado de trabalho. Dados divulgados pelo IBGE para o ano de 2016 revelam que eles ganham 59% dos rendimentos de brancos.
O tempo de vida desses grupos é também desigual: em 1993, o total de mulheres brancas com mais de sessenta anos de idade representava 9,4%, e o de mulheres negras, 7,3%. Em 2007, os percentuais alcançaram 13,2% e 9,5%, respectivamente. Isso sem contar que são elas as maiores vítimas das práticas violentas que se expressam nas relações de sexo e gênero. Marcadores funcionam, pois, ainda mais traiçoeiramente, quando interseccionados.
A mesma pesquisa indica como jovens negros costumam morrer antes dos demais, por causa do menor acesso que têm aos serviços médicos. Vivem menos, também, porque possuem menos condições — por conta da pobreza, da falta de estrutura familiar, da exposição ao comércio de drogas, das regiões em que habitam — de terminar a escola e assim buscar outras formas de inserção no mercado de trabalho. São, portanto, vários marcadores sociais da diferença, que, colocados em relação, mostram a produção de uma realidade particularmente segregada: geração (jovens), região (periferias do país), raça (negra) e sexo (masculino).
Raça e Gênero publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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