Lilia Moritz Schwarcz, no livro “Sobre o autoritarismo brasileiro”, lembra a predominância no Brasil de várias formas de compadrio, a moeda de troca dos favores, o recurso a pistolões, o famoso hábito de furar fila, de levar vantagem, ou a utilização de intermediários se enraizaram nesta terra do uso abusivo do Estado para fins privados. Persiste, no Brasil, um sério déficit republicano enquanto práticas patrimoniais e clientelistas continuarem a imperar no interior do nosso sistema político e no coração de nossas instituições públicas.
“República” significa “coisa pública” — bem comum —, em oposição ao bem particular: a res privata. Pensada nesses termos, “nossa República nunca foi republicana”. Não pode haver república sem valores republicanos, e por aqui sempre fez falta o interesse pelo coletivo, a virtude cívica e os princípios próprios ao exercício da vida pública.
Nos falta, ainda mais, o exercício dos direitos sociais, qual seja, a participação na riqueza coletiva: o direito, ou melhor, o pleno exercício do direito à saúde, à educação, ao emprego, à moradia, ao transporte e ao lazer.
Diante desses impedimentos, ficam expostas a cidadania precária de certos grupos sociais brasileiros e as práticas de segregação às quais são sujeitos. Sobretudo para os setores vulneráveis da sociedade, a regra democrática permanece muitas vezes suspensa no país. Nosso presente, ainda muito marcado pelo passado escravocrata, é autoritário e controlado pelos mandonismos locais.
Como nossa República é frágil, ela se torna particularmente vulnerável ao ataque de seus dois principais inimigos:
- o patrimonialismo e
- a corrupção.
O primeiro deles, o patrimonialismo, é resultado da relação viciada estabelecida entre a sociedade e o Estado, quando o bem público é apropriado privadamente. Trata-se do entendimento, equivocado, de o Estado ser bem pessoal, “patrimônio” de quem detém o poder eventualmente.
Apesar de o conceito de patrimonialismo parecer velho e em desuso, até superado, ele nunca se mostrou tão atual. A prática atravessa diferentes classes, não sendo monopólio de um grupo ou estrato social.
A palavra “patrimônio” deriva de “pai”, enquanto o termo em si evoca o sentido de propriedade privada. O conceito também sugere a importância do lugar patrimonial; isto é, do espaço individual constantemente imposto diante das causas públicas e comuns.
Remete a uma forma de poder onde as fronteiras entre as esferas públicas e privadas se tornam tão nebulosas a ponto de acabarem por se confundir. Patrimonialismo passou a designar, então, a utilização de interesses pessoais, destituídos de ética ou moral, por meio de mecanismos públicos. Não vale, porém, o seu contrário: o uso de bens privados em prol da vontade pública. Nesse caso, a ordem dos fatores altera, e muito, o produto.
Quando o Estado faz uso desse tipo de expediente patrimonial e passa a ser entendido como mera extensão dos desejos daqueles ocupantes do poder, a máquina política acaba por se revelar, ela própria, ineficiente. Isto é, o Estado perde em racionalidade quando os interesses públicos deixam de ditar as normas de governo, e, ainda mais, quando se afirma o personalismo político: essa verdadeira colcha de arranjos pessoais alimenta práticas de conchavo, de apadrinhamento, de mandonismo e de clientelismo, as quais se sobrepõem à regra pública.
No caso brasileiro, não foram poucos os autores que lidaram com o conceito de patrimonialismo ao resumir práticas políticas reincidentes no país. A despeito de vivermos em um longo período de redemocratização, firmado desde a Carta Magna de 1988, tornando mais robustas as instituições brasileiras, o certo é o conceito continua operante no Brasil.
Aqui, a prática política é ainda muito afeita à mistura entre afetos públicos e privados. Essa contaminação de esferas leva, por sua vez, ao fortalecimento dos pequenos e grandes poderes pessoais, ampliando as possibilidades de suas ações nas esferas do Estado.
A propósito, a persistência dos mandonismos locais acaba por produzir outra espécie de patrimonialismo, quando interesses regionais passam a afetar diretamente a lógica pública. O Estado não deve ser imune às demandas setoriais, mas o problema se apresenta quando um certo tipo de corporativismo político favorece alguns cidadãos, em detrimento de muitos.
No Brasil, por imperar um tipo de família patriarcal, levou o Estado a ser encarado como um prolongamento e uma extensão do ambiente doméstico. Os detentores das posições públicas de responsabilidade, formados no interior dessa sorte de ambiente, logo aprenderam a manipular e misturar os domínios do privado e do público.
Como a burocracia administrativa era exercida diretamente por essa aristocracia, e a partir de uma autarquia agrária, reforçava-se, ainda mais, o caráter hoje chamado de patrimonialista do aparato estatal então existente no país.
A proporção de bacharéis em direito foi sempre alta, atingindo quase 40% no final do Império. A concorrência com profissionais liberais, como os médicos, só tendeu a se elevar nos tempos da República.
Com a chegada da República, o fortalecimento de setores urbanos, a diversificação dos grupos de reivindicação e o funcionamento mais regular das instituições públicas, esse tipo de expediente político poderia até parecer superado. Não obstante, práticas patrimonialistas continuaram a residir no seio do Estado, sendo políticos e chefes de Estado acusados de fazer uso pessoal das verbas públicas.
O legado do poder privado sobrevive dentro da máquina governamental. O Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) apresenta dados muito reveladores acerca da chamada “bancada de parentes”, que continua crescendo no Congresso Nacional. Na Câmara, em 2014, foram eleitos 113 deputados com sobrenomes oligárquicos, sendo parentes de políticos estabelecidos. Nas eleições de 2018, o número de parlamentares com vínculos familiares aumentou para 172.
A Paraíba é o estado que possui o maior número, proporcional, de parlamentares eleitos com laços familiares. Dos doze deputados eleitos pelo estado, dez têm relação de parentesco com outros políticos. No Senado, os dois estreantes chegam ao poder por conta de sua ascendência familiar. Completa a bancada um senador do MDB, com mandato até 2023, e que também se enquadra perfeitamente nos critérios da “bancada de parentes”.
Dentre os partidos que mais elegeram parentes na Câmara o destaque fica para PP e PSD, com dezoito representantes cada. Eles são seguidos pelo MDB com dezessete, PR com dezesseis, PSDB com treze, e DEM e PT com doze cada. O PSB conta com onze deputados, PDT e PTB têm nove, e PRB oito. O SD tem seis e o partido do presidente-capitão, o PSL, tem quatro deputados. O PCdoB conta com quatro, e PROS e PPS com três cada. O Pode tem dois, enquanto PSOL, PSC, Avante, PTC, PPL, PRP e Patri têm um deputado cada.
No Senado, em 2018, a “bancada de parentes” caiu de 39 para 24 senadores, incluindo-se os suplentes, número ainda grande quando se sabe que o Senado Federal possui 81 representantes.
Em um levantamento preliminar do Diap, foram identificados, entre os 567 novos parlamentares, 138 deputados e senadores que pertencem a clãs políticos — um aumento de 22% em relação a 2014. O número de membros da “bancada dos parentes”, no entanto, é seguramente muito mais alto, já que a pesquisa ainda está em andamento e considerou apenas relações de primeiro grau.
No ano de 2018, houve até mesmo casos de “dinastias” que fizeram campanha com um discurso antissistema, aproveitando a onda em voga contra a política tradicional. Esse é o caso de Eduardo e Flávio Bolsonaro (ambos no PSL), eleitos para a Câmara e o Senado, respectivamente, e que já fazem carreira na política estadual e nacional.
Outra franja do sistema que possibilita a prática do patrimonialismo faz parte do Orçamento Federal brasileiro, no qual se determina como será gasto o dinheiro público definido de forma conjunta pelo Palácio do Planalto e pelo Congresso Nacional. Se o governo formula a proposta, deputados e senadores a modificam e aprovam.
Há, porém, um tipo de “atalho” no Orçamento. Ele permite aos políticos o acesso a uma parte da verba sem a necessidade de submetê-la à aprovação dos colegas. São as “emendas parlamentares”. Emendas correspondem aos pedidos que deputados e senadores realizam com o objetivo de incluir no Orçamento despesas específicas, ligadas à saúde e ao transporte, por exemplo. Elas costumam ser destinadas às cidades e demais localidades onde se encontram os eleitores do parlamentar em questão, o qual, por sua vez, as utiliza para fortalecer laços políticos.
Patrimonialismo publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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