sexta-feira, 5 de julho de 2019

Mandonismo

Lilia Moritz Schwarcz, no livro “Sobre o autoritarismo brasileiro”, avalia: a nossa República ainda permanece inconclusa. Cada um pensa, em primeiro lugar, nos seus interesses privados e só depois, bem depois, naqueles públicos. Estes dizem respeito à nossa res (“assunto”) publica.

O princípio dessa longa história pode ser localizado já no século XVI, quando a metrópole portuguesa, na impossibilidade de povoar tão vasto território, optou por governar seu domínio americano delegando poderes a uma série de colonos. Eles se transformaram em senhores de extensos domínios. Esse foi o espírito e a base da colonização do Brasil: poucos homens concentrando grandes latifúndios, em geral monocultores.

“Latifúndio” é um termo de origem latina que condensa as noções de latus, “amplo, espaçoso e extensivo”, e fundus, cujo sentido é o de “fazenda”. “Plantation” foi o termo aplicado originalmente para nomear os domínios ingleses no ultramar e que depois a historiografia generalizou para as demais colônias, mas cujo significado era basicamente o mesmo: propriedade rural de grande extensão, muitas vezes formada por terras mal cultivadas ou exploradas, com a utilização de técnicas rudimentares e pautadas no suposto do uso depreciativo da terra e com baixa produtividade.

O poder de mando do senhor sobre suas terras e aqueles nela habitantes seguiu mais ou menos o mesmo. Foi se consolidando em algumas poucas províncias, e de forma paralela, no decorrer desses séculos, uma economia interna baseada em pequenas e médias propriedades. No entanto, e ainda assim, a ascendência dos grandes mandões locais manteve-se pouco alterada. Aliás, de tão presente e naturalizado, o sistema foi transplantado para áreas de menor produção, embora em escala reduzida.

O modelo colonial brasileiro combinava, portanto, e majoritariamente, mão de obra escrava com:

  1. a grande propriedade de monocultura,
  2. o personalismo dos mandos privados e
  3. a (quase) ausência da esfera pública e do Estado.

É no contexto setecentista que “se inventa” uma nova aristocracia nas Américas, porque transplantada para os trópicos. Simbolizados, nesses primeiros momentos, pelos grandes engenhos localizados no litoral de Pernambuco e da Bahia, os novos chefes locais procuraram se transformar em ícones de sua posição econômica, social e política.

Esse grupo conformava uma espécie de “aristocracia meritória” recente, e não “hereditária” como a europeia, uma vez que seu predomínio advinha da concentração da riqueza e do poder. No caso da colônia portuguesa, os títulos concedidos não eram passados de pai para filho. Correspondiam a uma recompensa individual por serviços prestados ou obtidos em troca de pagamento. Representavam, portanto, uma sorte de “favor”. Favor do Estado para fins pessoais.

Assim, o que vigia por aqui era uma “pretensão de nobreza”. Ela combinava os privilégios adquiridos por essa minoria europeia, a qual dominava uma terra de maioria escravizada, e lhes dava lastro. Em um território condicionado pela utilização compulsória do braço escravo, o mero fato de ter uma cor diversa do negro já virava uma possível via de nobilitação.

Poucos eram fidalgos portugueses, e menos ainda católicos. Muitos deles eram cristãos-novos, comerciantes, imigrantes de posse. Eles dedicavam seu tempo e capital à produção e ao comércio da cana. Só com o desenvolvimento do sistema, e com a perpetuação do casamento entre pares, esses senhores foram se convertendo em uma classe mais homogênea. A partir de então, dedicaram-se a refazer e construir genealogias míticas, buscando estabelecer no passado longínquo suas supostas e inventadas raízes nobres.

O que definia a nobreza no Brasil era o que ela não fazia: dedicar-se ao trabalho braçal, cuidar de um estabelecimento, atuar como artesão, arar a terra, carregar pesos, vender produtos e demais atividades manuais ficavam sob responsabilidade dos gentios ou dos cativos. Data da época, inclusive, um persistente preconceito, no país, contra o trabalho manual, considerado símbolo de atividade “inferior”, quando não “aviltante”.

Assim sendo, os novos nobres da terra deveriam permanecer apartados desse tipo de serviço, vivendo do lucro advindo do cultivo de suas terras, do rendimento de aluguéis ou de cargos públicos, das rendas do Estado ou da Igreja, logrados a partir de muita negociação e apadrinhamento. Viva o rentismo!

Existiam várias formas de conquistar alguma nobilitação. O melhor, e se o capital permitisse, era ser proprietário de terras, e se fazer cercar de uma grande “escravaria”, mas também de inúmeros agregados, parentes e criados.

Esse modelo idealizado inventou uma sociedade patriarcal pautada em um padrão de família estendida e de sujeição para além dos laços de sangue. Aí estava o núcleo central do que resultaria na formação básica das elites brasileiras, até pelo menos finais do XIX.

A família biológica constituía o núcleo do latifúndio rural, e os senhores muitas vezes educavam os filhos homens de olho na perpetuação de seu poder. As histórias domésticas narram como, com um pouco de “sorte”, um filho ia parar no comércio, outro no direito e outro ainda entraria para o sacerdócio, garantindo-se dessa maneira o controle sobre todos os braços da atividade. Já as filhas eram logo pensadas como moeda para trocas e alianças com outros poderosos locais. Casamento consistia, portanto, em uma espécie de estratégia que garantia bons dividendos caso se encontrassem pretendentes igualmente poderosos.

Fazia parte do “cabedal de um senhor”, ainda, cuidar de todos aqueles que o rodeavam e suprir-lhes. Desse modo, proprietários ampliavam seus deveres, mas também acumulavam direitos. Enrijecia-se, pois, uma sociedade marcada pela autoridade do senhor. Este a exercia cobrando caro pelos “favores” feitos e assim naturalizava o seu domínio. Capital, autoridade, posse de escravizados, dedicação à política, liderança diante de vasta parentela, controle das populações livres e pobres, postos na Igreja e na administração pública, constituíram-se em metas fundamentais desse lustro de nobreza. Tudo isso encobria muita desigualdade e concentração de poderes.

Sobretudo no campo, tudo virava negócio: títulos, proteção, postos, matrimônios. O domínio dos senhores se estendia, também, pela vizinhança, sobre os trabalhadores moradores nas redondezas ou os pequenos roceiros em geral dependentes dos favores dos grandes proprietários para efetuar o comércio, conseguir empréstimos e transportar seus produtos. Por isso, a adesão aos chefes locais, em busca de benesses, gerava rituais de submissão, nos quais a repetição dos gestos mais cotidianos mostrava-se crucial para solidificar hierarquias.

Mandonismo publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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