As sociedades com economia de mercado seriam configuradas por duplos movimentos opostos: o movimento do laissez-faire, buscando expandir o âmbito do mercado, e o movimento reativo de proteção como resistência à desincrustação da economia. Esta liberalização seria também defendida pelo neoliberalismo em âmbito internacional.
A tese de Karl Polanyi, no livro “A Grande Transformação”, sobre a ascensão do fascismo no período entre as duas guerras destaca o papel do padrão-ouro internacional na limitação das opções políticas ao alcance dos diferentes países. Polanyi via no padrão-ouro uma inovação institucional em busca de colocar em prática a teoria do mercado autorregulado. Essa lógica do padrão-ouro continua como inspiração para os defensores neoliberais do livre-mercado.
Os defensores da plena abertura ao mercado externo pregavam cada país adotar regras simples para a economia seguir o mecanismo automático da autorregulação global. Em primeiro lugar, cada país estabeleceria o valor da sua moeda, referindo-se a uma quantidade de ouro fixa, e comprometer-se-ia a comprar e a vender o ouro pelo preço correspondente. Em segundo lugar, cada país lastrearia a criação interna de moeda na quantidade de ouro possuída nas suas reservas, garantia de sua moeda em circulação. Em terceiro lugar, cada país deveria conceder aos seus residentes a máxima liberdade de celebrarem transações econômicas internacionais.
Assim, as corporações multinacionais poderiam exportar bens e investir em todas as partes do mundo, com a garantia de as moedas recebidas serem conversíveis em ouro. De acordo com a teoria, se um país ficasse em posição deficitária, devido a seus cidadãos gastarem no exterior além do recebido pelo país, o ouro das reservas desse país pagaria aos credores estrangeiros. Então, automaticamente, a oferta interna de moeda e crédito diminuiria, as taxas de juro elevariam, os preços e os salários declinariam, a demanda de bens importados seria menor e as exportações com a moeda nacional depreciada em relação ao ouro poderiam ser barateadas em moeda estrangeira. Elas se tornariam mais competitivas. O déficit do país se autoliquidaria com o equilíbrio externo.
A economia globalizada seria um único mercado, sem necessidade de nenhuma espécie de governo mundial ou autoridade financeira multilateral. A soberania dos Estados nacionais se submeteria à adoção das regras da conversibilidade pelo padrão-ouro.
No entanto, toda essa idealização teórica de equilíbrio automático pelas livres forças de mercado se choca, na realidade, com o tempo do ajuste muito longo face ao insuportável ônus social provocado pela perda de emprego e renda. Por isso, o padrão-ouro teve o efeito contrário ao esperado. Houve elevação da importância do Estado-nação, dados os esforços empreendidos para os ajustes nacionais face ao padrão-ouro. As reações políticas resultaram em duas guerras mundiais.
Quando preços relativos de uma nação divergia dos níveis dos preços internacionais, o único meio para cada país enfrentar a redução das reservas de ouro era aceitar a deflação, isto é, a queda dos preços locais pela escassez monetária. A demanda monetizada se contrairia até provocar corte dos salários e redução do consumo suficiente para assegurar o restabelecimento do equilíbrio do balanço comercial. Esta recessão poderia derivar para uma Grande Depressão com aumento do desemprego e queda da massa salarial dos trabalhadores e dos rendimentos dos agricultores, além da onda das falências nos negócios e de bancarrotas com corridas bancárias.
Os trabalhadores, os agricultores, enfim, todo o mundo corporativo se sente incapaz de suportar a incerteza da duração da instabilidade até atingir o prometido reajuste. Logo, sociedades inteiras se dividem em coligações corporativas, tentando se proteger e contrabalançar as duras consequências. Pressionam o Estado para a utilização das tarifas protetoras dos mercados internos (agrícolas e manufaturados), tornando os fluxos comerciais menos sensíveis às variações dos preços dos bens estrangeiros, devido às barreiras alfandegárias. O protecionismo nacional se alastra. Com o surto do protecionismo face às livres trocas internacionais, os negociantes locais deixam de ter acesso aos mesmos mercados e oportunidades de investimento.
No fim do século XIX, as principais potências econômicas, dos Estados Unidos ao Japão, passando pelas potências europeias, passaram a disputar uma corrida ao estabelecimento de colônias, o exclusivismo inverso à lógica do comércio livre. As colônias ficavam sob a proteção das tarifas fixadas pelas potências imperiais, para os negociantes das nações colonizadoras terem um acesso privilegiado aos mercados e às matérias-primas coloniais. A disputa dos impérios colonizadores intensificou, entre a Inglaterra e a Alemanha, as rivalidades políticas, militares e econômicas até a explosão da Grande Guerra (1914-1918).
Segundo Polanyi, o impulso imperialista foi resultante do esforço das nações em busca de proteção das exigências socialmente catastróficas do sistema do padrão-ouro. O fluxo dos recursos exportados de uma colônia rica em recursos naturais poderia salvar a nação de uma crise devastadora, causada por uma súbita diminuição das reservas de ouro. Era melhor a exploração das populações colonizadas em lugar da intensificação das lutas de classes locais.
A pregação dos neoliberais adeptos do livre-mercado segue a tradição do padrão-ouro como mecanismo automático destinado a assegurar um mundo sem fronteiras de prosperidade crescente com base nas “livres forças do mercado”. Em lugar disso, as reações nacionalistas levam à defesa das fronteiras econômicas nacionais e expansão das imperiais.
A ideia de uma moeda global lastreada, inspirada no superado padrão-ouro, continua a infestar os corações e mentes neoliberais para exercer suas pressões disciplinares sobre as nações. A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa. O funcionamento da Libra do “feicebuque” poderá se ver minado pela ascensão de várias formas de protecionismo contra “guerra comercial”. As nações serão forçadas a escolher entre a proteção das taxas de câmbio e a proteção dos seus próprios cidadãos. Deste impasse, no passado, emergiu o fascismo.
Os neoliberais insistem em todas as nações confiarem na eficácia dos mercados autorregulados. Hoje, as taxas de câmbio e as moedas nacionais já não se definem pela referência fixa ao ouro, mas sim por regime de câmbio flexível. O valor das moedas flutua nos mercados de divisas estrangeiras, tendo como principal referência o padrão-dólar. Porém, permanece a crença no mito liberalizante: se os indivíduos e as empresas obtiverem o máximo de liberdade na busca do seu interesse econômico próprio, o livre mercado global será melhor para todos. Daí os esforços sistemáticos dos neoliberais para desmantelamento das restrições postas aos fluxos dos bens e dos capitais e redução da intervenção dos governos na organização da vida econômica.
O liberalismo de mercado impõe às populações exigências não suportáveis. A tendência de seguir tendências de altas nos preços com profecias auto confirmatórias até o descolamento total dos fundamentos de preços justos e a reversão súbita de expectativas (da euforia para o pânico) leva a booms e crashes periódicos. Os agentes alheios à especulação, como trabalhadores, agricultores, pequenos industriais e comerciantes, têm de se submeter às flutuações periódicas das condições econômicas com perda de todo o esforço acumulado anteriormente.
Para Polanyi, a utopia neoliberal de uma economia sem fronteiras requer das pessoas comuns em todo o mundo tolerar a cada ciclo de bolha especulativa um período de saneamento prolongado – o da crise mundial de 2018 já ultrapassa uma década –, durante o qual terão de sobreviver com padrão de vida muito inferior ao obtido anteriormente. Racional e emocionalmente, é inevitável essas pessoas se mobilizarem para se protegerem desses choques econômicos. Pior, pode ser sob forma de neofascismos, onde se juntam livre armamentismo de milicianos paramilitares, fundamentalismo religioso evangélico e neoliberalismo oportunista. Aliam-se à extrema-direita para cortar direitos trabalhistas previdenciários, privatizar patrimônio público e adotar pauta regressiva para costumes conservadores.
O programa social-desenvolvimentista propõe, em lugar da livre-competição e de capitalismo de compadrio, mercados competitivos com uma cooperação econômica planificada via integração às cadeias produtivas globais. Buscará a construção de vantagens comparativas apoiadas em programas de inovação tecnológica, sobretudo os articulados ao agronegócio, às novas fontes de energia, à infraestrutura e às grandes demandas sociais, como educação, saúde, mobilidade urbana, segurança. Bons exemplos recentes foram o apoio da Embrapa ao agronegócio brasileiro, a tecnologia da Petrobras na extração de petróleo em camadas do pré-sal, e a pesquisa e desenvolvimento em novas fontes de energia renovável.
O investimento público em infraestrutura, no curto-prazo, impulsiona a demanda agregada. O multiplicador fiscal (superior a um) provoca um efeito sobre a renda nacional e uma futura arrecadação fiscal superior ao gasto inicial. Estimulando o investimento privado, em período recessivo, o público provoca crowding in e não crowding out (“efeito-deslocamento” do setor privado pelo público), como em período de pleno emprego. O investimento público não concorre com o investimento privado, mas, ao contrário, serve como indutor ou o complementa. Ajuste fiscal se fará na futura expansão – e não durante uma recessão. Equilíbrio orçamentário permanente é coisa de contabilista, mas não de economista com pensamento na dinâmica econômica.
Lições do Padrão-Ouro para o Padrão-Libra do “Feicebuque” publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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