Lilia Moritz Schwarcz, no livro “Sobre o autoritarismo brasileiro”, narra: quem foi ao exterior e se definiu como brasileiro, ou quem conversou com estrangeiros em visita ao nosso país, com certeza já se deparou com uma série de versões alentadoras desta terra tropical. O suposto é que esta seria uma nação avessa a conflitos, pacífica na sua índole, democrática no que se refere à convivência de gêneros, raças e etnias, em suma: uma espécie de “paraíso da tolerância” em meio a um mundo inclemente.
Essas definições generalizantes não sobrevivem, porém, a um enfrentamento no campo, a uma batida da polícia nas cidades, a uma discussão entre políticos, a um assalto à mão armada, a uma briga no trânsito, a um censo étnico que revela a desigualdade estrutural que persiste por aqui.
Somos também um país de passado violento, cujo lema nunca foi a “inclusão” dos diferentes povos, mas sobretudo a sua “submissão”, mesmo que ao preço do apagamento de várias culturas. Tratados, cartas e outros documentos dos séculos XVI e XVII mostram a dureza da convivência colonial e de que maneira essa socialização condicionou o país: de um lado a tentativa de aniquilamento, de outro a justificativa do necessário domínio.
Se esse contencioso da nossa história não tem a capacidade de justificar totalmente o presente, ajuda, pelo menos, a iluminar a cena atual, quando preside a mesma lógica, porém agora devidamente invertida. Em lugar do “ritual da tolerância”, passamos a praticar o oposto; o confronto e a expressão aberta da polaridade que, como vimos mostrando, sempre existiu na nossa história, mas andava silenciada. Talvez por isso, hoje em dia muitos brasileiros não se preocupem mais em se definir como pacíficos; preferem desfilar sua intolerância.
Aliás, nesse aspecto, temos feito coro com uma orquestra mais ampla. Muitos movimentos autoritários emergentes da atualidade apoiam-se na criação de verdadeiras mitologias de Estado, pautadas na lógica da polaridade: do “eles” e do “nós”. Ou melhor, do “eles contra nós” e do “nós contra eles”. Essas são posturas que apostam na dicotomia e na rotina de diferenças fortuitas, produzindo novas realidades.
“Eles” seriam preguiçosos, corruptos, ladrões, ideólogos, pessoas sem escrúpulos, parasitas, enquanto um grande “nós” funciona apenas na base da contraposição, abraçando tudo que estaria do outro lado da polaridade. O suposto sigiloso é que basta determinar um “eles” para que se evidencie o que seria um “nós” apaziguador, pois correto, justo e “exemplar.
Essa crença em códigos binários tem a capacidade de dividir o mundo a partir de ladainhas que só funcionam à custa do exercício contínuo de narrativas, igualmente, binárias: honestos ou corruptos, o bem versus o mal, grupos familiares opostos a indivíduos degenerados, aqueles que se identificam com a religião contra os agnósticos e destituídos de crenças, o novo que contradiz o velho. O funcionamento dessas polaridades produz, por seu turno, uma lógica de ódios e afetos que contamina não só a compreensão e a avaliação das instituições públicas, mas também o dia a dia das relações pessoais.
A razão binária produz, ainda, um sentimento beligerante de contraposição, que gera desconfiança diante de tudo que não faça parte da própria comunidade moral: a imprensa, os intelectuais, a universidade, a ciência, as organizações não governamentais, as minorias e os novos agentes políticos. No seu lugar, vigoraria a simplicidade do homem comum, aquele que faz seu churrasco, frequenta a igreja aos domingos, conhece o barbeiro pelo nome, é próximo de sua família, que mais se parece com um clã unido, e tem um cotidiano assemelhado ao de seus eleitores. “É gente como a gente”, conforme exalta um refrão muito utilizado na campanha eleitoral de 2018.
O uso das redes sociais, em vez dos veículos tradicionais de comunicação, também se comporta como elemento capaz de aguçar a comunicação bipartida. No vale-tudo da internet, não há tempo para a confirmação dos fatos, documentos e fontes, tampouco para a autoria intelectual, ou para a análise menos passional em relação àquela feita no “calor da hora”. Ao contrário, as mensagens tomam a forma de propagandas. Elas tencionam a formação ainda mais exacerbada de polarizações. O sucesso delas será garantido quanto mais retomarem palavras de ordem conhecidas e disseminadas como medo, ódio, insegurança, ou, melhor, quanto mais se arriscarem a introduzir teorias conspiratórias e assim gerarem esse tipo de sentimento.
Por isso, e para tornar-se popular nesses espaços, é suficiente fomentar narrativas políticas críveis, distopias funcionais, caso empregarem uma linguagem simplificada, tão curta como direta. Também é de bom alvitre selecionar um bom inimigo, daqueles a quem é possível endereçar muita raiva e contraposição. Desautoriza seu discurso para legitimar o próprio.
É comum à estrutura de tais narrativas mostrar um verdadeiro desapego à realidade. Melhor criar uma, desde que ela se mantenha dividida entre o “nós” e o “eles”, e apegada emocionalmente a falsas certezas.
Intolerância publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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