Lilia Moritz Schwarcz, no livro “Sobre o autoritarismo brasileiro”, afirma, no Brasil, o sistema escravocrata ter se transformado em um modelo tão enraizado a ponto de acabar se convertendo em uma linguagem, com graves consequências.
Grassou por aqui, do século XVI ao XIX, uma escandalosa injustiça amparada pela artimanha da legalidade. Como não havia nada em nossa legislação algo vetando ou regulando tal sistema, ele se espraiou por todo o país, entrando firme nos “costumes da terra”. Imperou no nosso território uma grande bastardia jurídica, a total falta de direitos de alguns ante a imensa concentração de poderes nas mãos de outros.
Não se escapava da escravidão. Aliás, no caso brasileiro, de tão disseminada ela deixou de ser privilégio de senhores de engenho. Padres, militares, funcionários públicos, artesãos, taverneiros, comerciantes, pequenos lavradores, grandes proprietários, a população mais pobre e até libertos possuíam cativos. Sendo assim, a escravidão foi além de ser apenas um sistema econômico:
- moldou condutas,
- definiu desigualdades sociais,
- fez de raça e cor marcadores de diferença fundamentais,
- ordenou etiquetas de mando e obediência, e
- criou uma sociedade condicionada pelo paternalismo e por uma hierarquia muito estrita.
Além disso, e diferentemente do que se procurou difundir, não se confirma a noção de no país ter existido uma escravidão “mais branda”. Um sistema com a propriedade de uma pessoa por outra não tem nenhuma chance de ser benevolente. Ele pressupõe o uso intenso e extenso da mão de obra cativa, a vigilância constante, a falta de liberdade e o arbítrio. A expectativa de vida dos escravizados homens no campo era de 25 anos, ficava abaixo da dos Estados Unidos: 35 anos.
No caso das mulheres, o destino não era muito diferente. Submetidas à força à alcova do senhor escravista, elas experimentavam, no corpo, a violência do sistema. Davam de mamar aos pequenos senhores e senhoras, sendo muitas vezes obrigadas a abandonar seus próprios filhos na “roda dos expostos” ou “dos enjeitados” — um mecanismo empregado para abrir mão (“expor” ou “enjeitar” na linguagem da época) de recém-nascidos.
Eles ficavam aos cuidados de instituições de caridade. Sujeitavam-se a regimes árduos de trabalho, acumulando funções domésticas. Data também desse período a perversa representação da “mulata” como uma mulher mais “propensa” à sexualidade e à lascívia. Esses são estereótipos, construções históricas e sociais. Nada devem aos dados da realidade. Carregam, porém, a faculdade de construir realidades e criar grande prejuízo.
Já se delineava nesses primórdios brasileiros uma “cultura do estupro”, ainda hoje enraizada no país. Com a desproporção sexual entre africanos embarcados, a entrada muito maior de colonos homens, bem como a manutenção de hierarquias de mando, a prática implicou o estabelecimento de relações igualmente hierárquicas, e raramente consentidas. Fazia parte, portanto, das “atividades diárias” das escravizadas sujeitar-se aos desmandos dos senhores, o que acabou gerando uma representação oposta — como se fossem elas a se “oferecer”.
Entretanto, toda moeda carrega consigo seu outro lado. Por aqui — e contrariando a ladainha a descrever um sistema menos severo — escravizados e escravizadas reagiram mais, mataram seus senhores e feitores, se aquilombaram, suicidaram-se, abortaram, fugiram, promoveram insurreições de todo tipo e revoltas dos mais diferentes formatos. Também negociaram seu lugar e condição, lutando para conseguir horas de lazer, recriar seus costumes em terras estranhas, cultuar seus deuses e realizar suas práticas, cuidar de suas lavouras, e trataram de preservar suas famílias e filhos.
Por seu turno, senhores de escravos inventaram verdadeiras arqueologias de castigos, que iam da chibatada em praça pública até a palmatória, bem como informaram-se sobre as experiências e leis abolicionistas aplicadas em outras colônias escravocratas, muito especialmente na América espanhola. Por isso, adiaram, o quanto foi possível, o fim do regime, adotando um modelo gradual e lento de abolição.
Um sistema como esse só poderia originar uma sociedade violenta e consolidar uma desigualdade estrutural no país.
A curta Lei Áurea, de 13 de maio de 1888, representou uma solução de compromisso. A lei não ressarciu os senhores, embora esperassem receber indenização do Estado por suas “perdas”. No entanto, também não previu nenhuma forma de integração das populações recém-libertas, inaugurando um período chamado de pós-emancipação. Ele teve data precisa para começar, mas não para terminar.
Nesse contexto, teorias deterministas, também denominadas “darwinistas raciais”, pretenderam classificar a humanidade em raças, atribuindo-lhes distintas capacidades físicas, intelectuais e morais. Segundo tais modelos científicos, os homens brancos e ocidentais ocupariam o topo da pirâmide social, enquanto os demais seriam considerados inferiores e com potencialidades menores.
Pior sorte teriam as populações mestiças, tidas como “degeneradas” porque provenientes da mistura de raças essencialmente diversas. Esse “saber sobre as raças” visava justificar, com o aval das teorias da época, o domínio “natural” dos senhores brancos sobre as demais populações. Visava, ainda, substituir a desigualdade criada pela escravidão por outra, agora justificada pela biologia.
Se o racismo, faz tempo, deixou de ser aceito como uma teoria científica, ele continua plenamente atuante, enquanto ideologia social, na poderosa “teoria do senso comum”. Esta age, perversamente, no silêncio e na conivência do dia a dia. A escravidão nos legou uma sociedade autoritária, a qual tratamos de reproduzir em termos modernos. Uma sociedade acostumada com hierarquias de mando. Ela usa de uma determinada história mítica do passado para justificar o presente. Lida muito mal com a ideia da igualdade na divisão de deveres, mas dos direitos também. Não há ideologia do “coitadismo” no Brasil, ainda mais quando o tema remete à exclusão racial.”
Escravidão e Racismo publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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