Gabriel Vasconcelos (Valor, 26/06/2020) informa: a distribuição de renda promovida pelo Bolsa Família se aperfeiçoou continuamente entre 2012 e 2019, inclusive no primeiro ano do governo paramilitar. Análise do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra: entre 2012 e 2018, o percentual de beneficiários que fazem parte dos 10% mais pobres da população avançou 6,3 pontos percentuais (p.p.), alcançando 38,9% dos contemplados. Em 2019, essa participação dos mais pobres no programa subiu para 40,0%, segundo atualização do dado feita pelos pesquisadores. Eles utilizaram os dados completos de rendimento fornecidos pelo IBGE.
Entretanto, os valores médios recebidos pelas famílias, de R$ 117 a R$ 200 ao mês, são considerados módicos ante as necessidades brasileiras. Segundo especialistas, o impacto do auxílio emergencial sobre as estatísticas da pobreza no país “escancarou” a modéstia dos valores do Bolsa Família. Em maio, na média, o auxílio emergencial pagou R$ 846,50 por domicílio contemplado, informou o IBGE.
Quanto ao desempenho do Bolsa Família em 2019, sob o governo populista de extrema-direita, o economista do Ipea Luis Henrique Paiva afirma que cerca de 408 mil brasileiros do decil mais pobre da população passaram a receber o benefício. Mas, segundo a análise, o avanço não se deve a esforço do atual governo e sim a melhorias promovidas por prefeituras e aprimoramento das ferramentas de checagem do programa – aperfeiçoadas desde 2005, quando começou o cruzamento dos dados declarados com as bases do governo e, depois, foi firmado contrato com a Dataprev, que desenvolveu inteligência própria.
O fato negativo em 2019, diz Paiva, foi o retorno da fila de pedidos pelo benefício, eliminada no governo Michel Temer. “Fechamos o ano com o menor número de famílias beneficiadas em muito tempo, cerca de 13,3 milhões. Mas, logo no início da pandemia, o governo admitiu 1 milhão delas e o número se estabilizou.”
Os pesquisadores do Ipea destacam que, como contemplados de menor renda tem benefício maior, a participação do decil mais pobre da população é ainda mais expressiva quando considerado o montante de recursos aplicado no programa. Esse grupo ficava com 36,1% dos recursos em 2012 e passou a tocar 45% do dinheiro aplicado no Bolsa Família, R$ 30 bilhões em 2019.
“O avanço [de 8,9 pontos percentuais] é alto para um programa que já era dos mais progressivos da América Latina em 2011″, diz Paiva. Hoje, o Bolsa Família é o terceiro com melhor focalização na região, só atrás de programas de Panamá e Peru. Estes, embora tenham performance melhor, atendem público e território bem menores que o brasileiro.
Os beneficiários do Bolsa Família dos dois decis de renda mais baixa subiram de 58% em 2012 para 65,7% do total em 2019. Essa faixa percebeu 70,1% do valor no ano passado, ante 61,5% em 2012. O avanço fez a participação de faixas com maior renda cair: pessoas entre os 10% mais ricos do país eram 6,3% dos beneficiários há oito anos e foram 4,2% no ano passado.
Medidor mais acurado de progressividade por considerar a renda domiciliar per capita já com o benefício, o coeficiente de concentração dos recursos do Bolsa Família também melhorou, caindo 6,0 p.p., para -0,64 2018. O indicador varia de -1 a +1, situação em que todo o dinheiro vai para o mais rico.
Ponto negativo é a taxa de exclusão do programa: 18,9% dos brasileiros entre os 10% mais pobres não estão no programa. Se o Brasil quer avançar ainda mais contra a pobreza, diz ele, deve incluí-los e aumentar os valores individuais dos benefícios. Depois, afirma o economista, o segundo passo é ampliar a focalização nas crianças. “Metade das crianças que não recebem nenhuma transferência de renda estão no terço mais pobre da população”, diz ao criticar, or exemplo, as deduções de imposto à pessoa física para dependentes, que privilegia os filhos das camadas ricas.
Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre/FGV), Daniel Duque concorda. “O Bolsa Família corresponde a 0,4% do PIB e há consenso de que é pouco. Além disso, pouco se fala que ele hoje tem valor real menor do que tinha em 2014, porque no ano seguinte houve inflação de 10,67% sem reajuste para o programa”, diz.
Para Duque, aumentar o valor do benefício do Bolsa Família é sim boa ideia após ajuste das contas públicas via reformas. Mas, para além disso, seria importante aumentar sua eligibilidade. “Existe grande número de famílias que transita na pobreza, muitos informais, que não conseguem entrar no programa porque tem renda acima da elegível em boa parte do ano mas a perdem em algum momento. Isso seria resolvido se a inclusão se desse de forma automática ou se o teto de renda elegível fosse ampliado”, sugere.
Ambos afirmam que o auxílio emergencial, com repasses até dez vezes maiores que os do Bolsa Família, jogou luz sobre as suas limitações. A partir dos microdados da Pnad Contínua Covid-19, do IBGE, Duque afirma que o auxílio emergencial fez o percentual da população abaixo da linha da pobreza cair de 24,8% para 22,2% somente entre a primeira e a última semana de maio. A pobreza extrema, diz ele, caiu de 5% para 3,5% no mesmo intervalo de tempo. No cenário em que a cobertura dos repasses (38,7% dos domicílios) ainda aumenta, seus efeitos tendem a crescer, diz o especialista.
Paiva lembra que o auxílio praticamente cobriu três folhas do Bolsa Família, uma vez que 19 a cada 20 famílias que o recebem migraram temporariamente de programa. Como o excedente é de difícil remanejamento por exigir aprovação do Congresso, o governo poderia usar os recursos para turbinar mensalidades ou admitir mais contemplados nó pós-crise. “São R$ 7 bilhões que vão sobrar no programa”, diz, considerando remota a possibilidade de mais um aumento em 2021 devido ao teto de gastos.
Os economistas Sérgio Firpo, do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), e Pedro Olinto, do Banco Mundial, desenvolveram uma proposta própria de novo programa social. Ele mira não só o arcabouço social, mas o estímulo à geração de empregos formais.
A dupla propõe renda mínima universal que, a exemplo de outras propostas e da própria ideia da equipe econômica, seria viabilizada pelo remanejamento de gastos com programas já existentes e deduções tributárias à pessoa física.
O projeto prevê auxílio de valor variável, capaz de inteirar a renda familiar até um mínimo fixado. “Temos uma população marcada pela informalidade e que sofre muito com oscilação de renda, mesmo fora da pandemia. Por isso, esse programa funcionaria como uma espécie de seguro, para encerrar o flerte dessas pessoas com a extrema pobreza, ao mesmo tempo que estimula o emprego formal”, diz Firpo.
No caso dos empregados formais de baixa renda, o programa funcionária como subsídio ao empregador para desonerar a folha de pagamentos e estimular o emprego. A segunda linha da proposta vai em linha com o desejo de Guedes em reduzir custos ao empregador. “A ideia é que as empresas passem a cogitar a contratação de mão obra pouco especializada que lhes parece muito cara hoje”, afirma o economista do Insper.
Para o novo programa, Firpo e Olinto sugerem redirecionar os montantes dispensados com salário família, abono salarial, seguro defeso e descontos ligados a saúde e educação no Imposto de Renda. Além desses orçamentos, ainda seria necessária aplicação de dinheiro novo. Na conta dos especialistas, o gasto adicional ficaria em torno de 1% do PIB, ou cerca de R$ 73 bilhões, para um piso do benefício em R$ 100 reais per capita.
O montante sugerido é pouco menor que o vislumbrado pelo economista Naercio Menezes, também do Insper. Custaria mais R$ 80 bilhões por ano, e maior que os R$ 52 bilhões calculados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em sua proposta. O documento do Ipea só trabalha com remanejamento de verbas mediante o encerramento de programas existentes. Os pesquisadores do Ipea fizeram simulações mais ambiciosas, mas recuaram para algo próximo do consenso da equipe econômica, avessa ao aumento de gastos.
Proposta bem mais cara aos cofres públicos vem do economista Daniel Duque, do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre/FGV). Ele também propõe renda universal, unificando benefícios mas na ordem de 4,0% do PIB. O projeto permitiria repasse per capita de R$ 220 aos mais pobres, enquanto este valor hoje, via Bolsa Família, é de apenas R$ 70.
As propostas do Ipea, Naercio e Duque focam a infância, enquanto a de Firpo e Olinto olham para o trabalhador adulto.
Para tocar os valores, diz o especialista, mesmo os beneficiários que trabalham na informalidade teriam, obrigatoriamente, de estar bancarizados e contribuir com o mínimo para a Previdência Social.
Firpo elogia o esforço do governo em promover o auxílio emergencial de R$ 600 pago a trabalhadores informais e os repasses que aliviam a folha de pagamento das empresas no caso de contratos reduzidos ou suspensos. Mas lembra que é consenso, dentro e fora do governo, que esse nível de gasto não se sustenta.
Em seus cálculos, o governo gasta entre R$ 700 e R$ 800 percapita para um público potencial de 80 milhões de pessoas (70 milhões de informais e 10 milhões de empregados formais). “Prorrogado indefinidamente, isso passa 10% do PIB ao ano. Precisa ser reduzido e o que propomos é um programa de repercussão mais ampla, que estimule a formalização e, tão logo, a arrecadação”, diz Firpo.
A ideia populista de direita de criar um novo programa de transferência de renda a partir da unificação de benefícios é boa oportunidade para diminuir as incoerências do sistema de proteção social brasileiro e melhorar o gasto social, dizem especialistas. Eles questionam, porém, se a real intenção do governo não seria cortar gastos e dar rótulo próprio aos programas com foco em eleições.
Batizado de Renda Brasil, o programa de renda mínima uniria Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada (BPC), abono salarial e outros programas federais de distribuição de renda, como o seguro-defeso, pago a pescadores, e o farmácia popular. A ideia é que o programa venha na sequência do auxílio emergencial de R$ 600, o “coronavoucher”, cuja extensão por até três meses é discutida em Brasília
Os pesquisadores Vinicius Botelho, do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre/FGV), e Rafael Osório, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), dizem que os programas existentes se sobrepõem ou nem sempre miram os mais necessitados. Criados décadas atrás, alguns teriam deixado de fazer sentido. Um deles é o abono salarial, surgido na ditadura e que paga até um salário mínimo por ano para trabalhadores que recebem até dois salários mínimos.
Criou-se benefícios para empregados formais porque era o melhor instrumento que se tinha para atingir os trabalhadores de baixa renda. Hoje há o Cadastro Único e o Bolsa Família, mais eficazes. Com informações fragmentadas sobre o Renda Brasil, é difícil avaliar a proposta. A discussão, opina, aponta para o fortalecimento do Bolsa Família. Nessa proposta informal, a ideia era o Bolsa Família incorporar outros programas e se fortalecer.
Para o economista e sociólogo Marcelo Medeiros, professor visitante na Universidade de Princeton (EUA), a discussão do Renda Brasil passa por desmontar benefícios existentes para criar outros. “No limite, é uma discussão sobre tirar [benefícios] dos trabalhadores formais de baixa renda e dar aos mais pobres. É, antes de tudo, uma decisão política”. Para Medeiros, a proposta levantada por Guedes em reunião com líderes de partidos no início do mês, seria “cortina de fumaça” para esconder o mau desempenho em Saúde e Educação.
“Ao governo faltam projeto e liderança. A reforma da previdência, quem liderou foi o presidente da Câmara, o Rodrigo Maia. A tributária, Guedes prometeu para ‘semana que vem’ meses atrás e não cumpriu”, diz Medeiros. Nesse cenário, acrescenta, o Congresso parece mais disposto a sair na frente com propostas concretas de complementação ao Bolsa Família.
Pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole da Universidade de São Paulo (CEM/USP), Rogério Barbosa também vê o Renda Brasil como “blefe” do governo. Ele acredita: a iniciativa mira as próximas eleições, mas tem como alvo o compromisso do governo paramilitar com o ajuste fiscal e não com a proteção social. Um dos alvos contumazes do governo é o BPC, que paga salário mínimo a idosos e deficientes em situação de pobreza, e cujo valor e alcance o Congresso vem tentando ampliar, apesar dos vetos presidenciais e reveses no Supremo Tribunal Federal (STF).
O governo tem na gaveta proposta do Ipea, de setembro de 2019, que unifica quatro benefícios (Bolsa Família, Abono Salarial, Salário Família e o desconto por dependente no IR) orientando recursos para um benefício universal infantil.
Osório, que assina o trabalho, diz que sua maior contribuição não é o modelo, mas a demonstração de que é possível unificar e racionalizar o que já existe. “É olhar para o conjunto e, o que for menos distributivo, remanejar primeiro.”
Em sua opinião, os primeiros alvos do governo teriam de ser os descontos de IR por dependente e o abono salarial. “Meu filho recebe mais do que uma criança do Bolsa Família e isso é um absurdo”, afirma. Outra vantagem de um programa único, segundo o especialista, é proteger o sistema de impulsos políticos que beneficiem grupos mais afinados com o determinado governo.
Bolsa-Família X Renda Brasil publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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