quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Ouro, Droga e Madeira: Conquista da Amazônia com Estado Mínimo

Marcos de Moura e Souza (Valor, 06/09/19) informa: contratos de ouro na bolsa brasileira (B3) têm alta de 28,32% do início do ano até o dia 5 de setembro de 2019. É o segundo investimento mais rentável entre as aplicações financeiras em 2019, atrás apenas do índice imobiliário (Imob), com alta de 31,89%. Em 12 meses, os contratos subiram 28,32%.

O grama do ouro fechou nessa última data em R$ 203,00. Os contratos negociados são equivalentes a 250 gramas. Segundo a B3, de janeiro a agosto foram negociados R$ 324 milhões em contratos de ouro.

Na B3 não ocorre negociação de ouro em barras, apenas de ouro ativo financeiro, em formato de certificados. Esses certificados são lastreados em lingotes em posse da única instituição credenciada na B3 como depositária de ouro: o Banco do Brasil. Este não se pronunciou quando questionado sobre a origem do metal.

A B3 disse: “a identificação da origem do ouro mercadoria [usado como lastro] faz parte de etapa anterior à sua transformação em ativo financeiro e à custódia dos certificados de ouro na B3, ficando a cargo das empresas fundidoras esta função”.

A fundidora Marsam faz barras no padrão de mercado. Diz, em seu site, estar comprometida em assegurar que não processa ouro de zonas de conflitos, de onde haja abusos de direitos humanos ou de áreas com restrições ambientais. A empresa presta serviço a quem compra ouro em garimpos ou minas. Outra fundidora, a Umicore, diz não prestar serviços ao mercado de ouro financeiro no Brasil.

Entre as empresas vendedoras ouro em barras, a Parmetal diz seguir normas para prevenção à lavagem de dinheiro, ao financiamento do terrorismo e risco socioambiental e que busca não incorrer em aquisições de ouro ilegal. A Ourominas diz pautar-se pela lei e por isso a responsabilidade dos dados sobre a procedência do ouro é do garimpeiro. Rompeu contrato com um franqueado acusado de irregularidades no Pará e intensificou políticas de compliance. 🙂

Considerado um investimento seguro e de grande liquidez, o ouro negociado como ativo financeiro no Brasil tem sua origem questionada por integrantes da Polícia Federal, do Ministério Público e da Agência Nacional de Mineração.

O problema, segundo eles, são regras frouxas e dificuldade de fiscalização. Isso deixa o caminho aberto para o ouro extraído em garimpos ilegais, principalmente na Amazônia, ser empregado na produção de barras usadas no mercado financeiro.

Bancos comerciais e de investimentos, corretoras e distribuidoras de títulos
são as empresas autorizados a vender barras de ouro no país. O Banco Central diz, no entanto, não ter competência legal ou instrumentos para averiguar a origem desse ouro.

A procedência do metal comercializado como investimento não é a única preocupação das autoridades incapazes de rastrear a cadeia do ouro brasileiro. Zonas garimpeiras, que movimentam toneladas de ouro por ano, são vistas também como um campo fértil para lavagem de dinheiro, abrigando até operações feitas pelo narcotráfico.

Décimo segundo maior produtor de ouro em minas e dono da sétima maior reserva mundial, o Brasil é palco de duas realidades muito distintas.

A primeira é a das mineradoras, responsáveis pela maior parte da produção nacional de ouro. Em 2017, essas empresas produziram 92,2 toneladas de ouro no país, segundo os dados mais recentes da Agência Nacional de Mineração (ANM). A produção estimada de 2018 foi de 97 toneladas, segundo o Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), órgão que reúne as mineradoras. Entre as que exploram ouro estão multinacionais como AngloGold Ashanti, Kinross, Yamana e Great Panther. A maior parte das operações está em Minas Gerais e Goiás.

As mineradoras exportam quase toda sua produção. Parte do ouro retirado de garimpos legalizados também é exportado. O ouro é o segundo item da pauta de exportação mineral do Brasil, atrás do minério de ferro. Em 2018, foram exportadas 95 toneladas de ouro (US$ 2,8 bilhões) e neste ano, até julho, 51 toneladas (US$ 1,9 bilhão), segundo dados reunidos pelo Ibram.

A outra realidade é a dos garimpos – a zona cinzenta do negócio. Garimpos legais e ilegais movimentam de 20 a 30 toneladas de ouro por ano no país, segundo estimativas citadas pela Agência Nacional de Mineração (ANM) e pela Associação Nacional do Ouro (Anoro). Não há dados seguros sobre o que é legal e o que é ilegal.

Algumas das regiões tradicionais, com muitos garimpos legalizados, são a bacia do Tapajós, no sudoeste do Pará, numa região que tem como referência o município de Itaituba; o norte do Mato Grosso, na região do município de Peixoto de Azevedo; áreas próximas a Porto Velho, em Rondônia; e em Calçoene, Amapá, local do velho garimpo do Lourenço, iniciado no século XIX.

Parte desses garimpos funciona em áreas onde a lavra é legalizada por meio das Permissões de Lavras Garimpeiras (PLGs). Das cerca de 1,8 mil PLGs outorgas pela ANM, em torno de 1,2 mil são para ouro. Quem explora essas áreas, muitas vezes, investe valores entre R$ 1 milhão e R$ 1,5 milhão em escavadeiras, acampamentos, mão de obra e combustível.

A PLG é um documento concedido pela União desde 1989. Cooperativas, empresas e pessoas físicas atuam nesse ambiente, de forma legal.

Mas há um contingente de garimpeiros de ouro que trabalha em regiões vedadas a essa prática, como áreas de conservação ambiental e terras indígenas. A alegação, em geral, é que a burocracia e a lentidão do Estado em conceder PLGs acabam empurrando uma massa de garimpeiros para a ilegalidade.

Garimpos operando fora da lei pululam pela Amazônia, com uso descontrolado de mercúrio e degradação ambiental. Estão, por exemplo, no sudoeste do Pará, na terra indígena dos caiapós, no Norte do Mato Grosso; e nas terras dos ianomâmis, entre Amazonas e Roraima, onde neste ano houve aumento expressivo no número de garimpeiros.

No ano passado, um estudo da Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada (Raisg), que reúne organizações da sociedade civil em seis países da região amazônica, apontou 2.312 pontos e 245 áreas de garimpo ou extração mineral ilegais de ouro e diamantes na região. Só na Amazônia brasileira são 132 áreas, principalmente na região do Rio Tapajós.

“Não vamos ser ingênuos: o ouro de terras indígenas vai ser ‘esquentado’ em algum lugar”, diz o geólogo Ricardo Parahyba, funcionário da Agência Nacional de Mineração, onde assessora a diretoria-geral. A forma de “esquentar”, ou seja, legalizar o metal, é conhecida das autoridades.

Parte do ouro dos garimpos é enviada ao exterior, sem recolhimento de imposto, por meio de empresas comerciais espalhadas pela Amazônia, diz Paulo de Tarso Moreira Oliveira, procurador do Ministério Público Federal do Pará. O transporte, em geral, é feito em pequenos aviões a países vizinhos.

Outra parte fica no Brasil para ser usada como ativo financeiro ou instrumento cambial. Nesse caso, a primeira aquisição desse ouro saído dos garimpos deve ser feita apenas por empresas autorizadas pelo Banco Central. O BC autoriza bancos comerciais, bancos de investimento, sociedades corretoras de títulos e valores mobiliários e bancos múltiplos e também as distribuidoras de títulos e valores mobiliários (DTVMs) a fazer essa primeira compra.

As DTVMs costumam ser mais frequentes nos garimpos. Segundo o último balanço do BC, de julho deste ano, há 93 delas no país. Essas empresas têm permissão para comprar ouro de mineradoras e de garimpos. “O problema é que o mercado do ouro nos garimpos é extremamente fraudável”, diz o procurador do Ministério Público Federal em Santarém (Pará), Camões Boaventura.

O ponto fraco é justamente a falta de controle nessa primeira aquisição. As empresas autorizadas pelo BC mantêm postos de compra ou representantes próximos às áreas de garimpo. E só podem comprar ouro oriundo de áreas com permissões de lavras garimpeiras. Mas elas não têm como confirmar se, de fato, aquele ouro que chega a seu balcão – geralmente no formato de “bolachas” queimadas com maçarico ou barras artesanais preparadas em fornos improvisados – vem de uma área legal na vastidão amazônica.

A legislação não exige que ninguém confirme nada, observam especialistas. O artigo 39 da lei 12.844/2013 diz que “é de responsabilidade do vendedor a veracidade das informações” sobre a origem legal do ouro. O mesmo artigo diz que “presumem-se a legalidade do ouro adquirido e a boa-fé” da empresa compradora, contanto que ela registre dados de quem vendeu a ela aquele ouro.

Entre a presunção e a boa-fé existe o mundo real.

“Para lavar ouro não precisa de muita coisa. Basta ter uma PLG. O sujeito retira ouro de terra indígena ou de outra área proibida, vai a uma DTVM e diz que ouro veio de uma área com permissão de lavra garimpeira”, diz Boaventura.

Às vezes, não é preciso nem isso. Um posto de compra em Santarém de uma das grandes DTVMs do país, a Ourominas, foi alvo de uma longa investigação que apontou que durante 2015 e 2018 houve fraudes na compra de 610 kg de ouro, causando prejuízo de R$ 70 milhões à União. O posto de compra, segundo a acusação, não exigia dados de PLGs. Bastava que os vendedores do ouro dos garimpos apresentassem RG e CPF. A investigação atrelou o ouro negociado a garimpos ilegais, em uma área adjacente às terras do índios Zo’é. A empresa disse que não tinha responsabilidade pela conduta de seus representantes de Santarém.

Veterano em negócios com ouro, o empresário Dirceu Frederico Sobrinho, dono de garimpo de ouro no Pará e também de uma DTVM, reconhece que há uma perigosa fragilidade quando se faz a primeira aquisição. “Nós lutamos para comprar da melhor forma possível e também estamos nos expondo a um risco que não é confortável para ninguém”, diz ele, que é presidente da Anoro, entidade que reúne DTVMs, refinadoras de ouro e outras empresas do setor.

“Tenho um preposto que compra o ouro dos garimpos, que cadastra os vendedores, mas se alguém que for vender declarar falsamente a origem do ouro, a responsabilidade acaba caindo sobre nós”, diz o empresário.

Na mesma linha, Écio Morais, diretor do Instituto Brasileiro de Gemas e Metais Preciosos (IBGM), afirma que “a fragilidade está entre a produção e a primeira aquisição de ouro dos garimpos, feita pelas DTVMs”. E acrescenta: “Já passou da hora de o Brasil tratar desse segmento da produção primária de ouro proveniente dos garimpos da Amazônia.”

A forma de registro da primeira aquisição é outro ponto fraco: segundo o MPF no Pará, as notas fiscais nos postos de compra são preenchidas manualmente. E mesmo que tudo estivesse informatizado, quem monitoraria esses dados?

“A ideia era que as DTVMs nos repassassem essas informações, só que nunca conseguimos desenvolver um sistema para isso”, diz o geólogo Ricardo Parahyba, da ANM. Segundo ele, um amplo sistema está sendo desenvolvido atualmente para controlar essas operações.

Uma vez comprado pelas DTVMs ou outras instituições autorizadas pelo Banco Central, o ouro é purificado em empresas de refino, que fazem as barras no padrão usado como ativo no mercado financeiro, geralmente de 250 gramas.

“A partir do momento que o ouro é comprado pelas DTVMs, ele passa a ser rastreado. A grande pergunta é qual a sua origem até chegar ao balcão das DTVMs. Pode ser legal ou ilegal”, diz Gustavo Geiser, perito criminal da Polícia Federal em Santarém.

Parece ser consenso entre autoridades: é fácil comprar ouro nas vilas de garimpeiros (com dinheiro lícito ou não) e mais fácil ainda transformar esse ouro em dinheiro (lícito).

E isso faz com que o negócio dos garimpos de ouro pelo Brasil interesse não apenas a garimpeiros que se aventuram pelas matas e rios e a empresários que fazem investimentos de grande porte em suas lavras. Os garimpos de ouro também atraem o narcotráfico.

“Isso está no nosso horizonte e é muitíssimo provável. O garimpo ilegal de ouro e o narcotráfico são duas atividades ilícitas muito próximas, tanto geograficamente quanto em termos de elementos que participam de uma e de outra atividade”, diz o delegado-superintendente da Polícia Federal no Amazonas, Alexandre Silva Saraiva.

“Organizações criminosas vão onde tem dinheiro fácil e a gente observa que existe um círculo na região: ouro, droga e madeira; ouro, droga e madeira“, diz Saraiva. “O capital ilegal flutua aqui nessas três pontas. É como um investidor lícito que diversifica seus investimentos. Só que nesse caso é no mercado ilegal.”

O governo miliciano defende regularizar mineração em terra indígena e facilitar a regularização de garimpos. O MPF e a PF pedem uma série de ações a começar por controles informatizados sobre as transações de compra nos garimpos feitas pelas DTVMs.

Há três cenários para lidar com a extração ilegal de ouro:

  1. O primeiro, regulamentar áreas de garimpo hoje clandestinos e, com isso, criar uma série de medidas.
  2. O segundo, proibir e criar condições para que o Estado possa tomar conta das reservas.
  3. O terceiro cenário é deixar como está. É proibido, mas está acontecendo.

Ouro, Droga e Madeira: Conquista da Amazônia com Estado Mínimo publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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