sábado, 4 de julho de 2020

Programa de Renda Básica focalizado nas Crianças

Anaïs Fernandes (Valor, 22/06/2020) avalia ser consenso entre especialistas a sociedade brasileira vai sair da pandemia mais desigual que entrou em muitos aspectos, seja no mercado de trabalho, seja na renda, seja na educação. Um deles, porém, preocupa particularmente o economista Naercio Menezes Filho, professor do Insper: o aumento da desigualdade no desenvolvimento infantil, difícil de ser revertido posteriormente e capaz de gerar implicações ao longo de toda a vida do indivíduo.

Por isso, Naercio, também integrante do Núcleo Ciência pela Infância (NCPI), defende um programa de renda básica focalizado nas crianças. Mas, enquanto durar o isolamento social no país, o programa de auxílio emergencial precisa continuar, mesmo com problemas, diz ele.

Simulações feitas por Naercio no âmbito do Centro de Políticas Públicas do Insper indicam que o auxílio seria suficiente para atenuar o aumento da pobreza. “Sem o programa, teríamos uma tragédia, milhões de famílias perderiam renda. Ele também alivia impactos recessivos da crise, porque essas famílias mantêm os pequenos negócios girando”, diz o especialista.

Como o programa precisou ser implementado rapidamente, porém, há falhas de execução e controle que abrem espaço para fraudes. “Acho que ele deve continuar por alguns meses até o fim do período de isolamento, mas não tem como manter para sempre, porque é muito caro e tem problemas de focalização.” O governo estuda estender o pagamento, de R$ 600 por pessoa feito por três meses até julho, por mais dois meses, mas com valor menor, talvez de R$ 300, montante considerado adequado pelo professor do Insper.

Passada essa fase transitória, o governo deveria adotar um programa sistemático de transferência de renda para famílias com crianças, diz. Pela proposta de Naercio, integrantes do Bolsa Família receberiam um adicional de cerca de R$ 800 por criança de zero a seis anos (a chamada primeira infância). Cerca de 25% das crianças nessa faixa etária no país vivem em domicílios pobres, levando em consideração a Pnad Contínua de 2019 e as diferenças regionais de custo de vida. “Mas aí tem que melhorar a focalização do Bolsa Família, não tanto em termos de quem não deveria receber – que existem, mas são poucos -, mas de colocar para dentro todo mundo que precisa, os ‘invisíveis’, os informais que não estavam no cadastro.”

A pandemia deu novo fôlego às discussões sobre a criação de uma renda básica no Brasil. Alguns economistas sugerem – e o próprio governo diz estudar – a unificação de mecanismos de proteção social já existentes, como Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada (BPC) e abono salarial. No modelo de Naercio, o Bolsa Família é mantido. “Acho que assim é bem focalizado e reduz bastante a pobreza entre as crianças, que é onde você tem que agir com mais força, pelos problemas de desenvolvimento infantil.”

Na primeira infância, existem “janelas de oportunidade” para o desenvolvimento de certas habilidades emocionais e cognitivas, que, se perdidas, tornam mais difícil esse processo, explica Naercio. O pesquisador cita estudos que mostram que, se a mulher passa por um estresse muito grande na gravidez, como a perda de uma pessoa próxima, aumentam as chances de o bebê nascer prematuro e ter problemas de desenvolvimento posteriormente – o que pode afetar, por exemplo, seu desempenho em provas.

“Se a mãe está passando por um estresse terrível agora, de ficar em casa, perder renda, perder emprego, com medo de ser contagiada pela doença, podemos imaginar efeitos similares”, diz.

Sobre crianças um pouco mais velhas, ele menciona outros estudos apontando que situações extremas de negligência podem prejudicar o desenvolvimento cerebral. “Acho que não chega a tanto aqui, mas, se você pensar em seis, sete pessoas morando em dois cômodos, com violência doméstica, problemas de renda, de trabalho, podemos imaginar que as crianças se desenvolvendo nesse ambiente – sem apoio do Estratégia de Saúde da Família [programa do SUS], sem aulas e merenda escolar – estariam sujeitas a reflexos em termos de desenvolvimento cerebral. E não é só isso, a própria curiosidade por objetos, o desenvolvimento motor, se tem muita gente na casa, em um ambiente que não é saudável, pode prejudicar questões básicas, da fala, do andar”, diz.

Essa “geração coronavírus”, como ele chama, tenderá a ter mais problemas ao longo da vida e, como as dificuldades citadas afetam mais as famílias mais pobres, as desigualdades se aprofundariam. “Essas diferenças que aparecem dificilmente são revertidas. Essa desigualdade que está surgindo agora, não tanto de renda e pobreza, mas de aprendizado e de desenvolvimento infantil, tende a prosseguir e se ampliar ao longo da vida”, afirma.

Ele não se diz favorável a uma renda básica universal “porque sairia muito caro e teria que transferir pouco dinheiro por família”, dificultando o combate à pobreza real. Naercio estima que o novo programa exigiria R$ 80 bilhões por ano – praticamente o valor que o governo já desembolsou com quase três meses de auxílio emergencial. “Não é uma coisa inalcançável para diminuir muito a pobreza entre as crianças. Se você quiser elevar para 12 anos também é recomendável, mas vai custar mais. É essencial manter a responsabilidade fiscal. Tudo o que gastar você tem de ter uma fonte de recursos.”

Na proposta de Naercio, os novos gastos seriam cobertos por mudanças tributárias, como o fim dos descontos no Imposto de Renda da pessoa física para despesas de saúde e educação, por exemplo. Além disso, ele defende a criação de uma nova alíquota, de 35%, para os mais ricos e também que todas as rendas das pessoas sejam tributadas pela alíquota da respectiva faixa, inclusive lucros, dividendos, heranças, receita de empresa do Simples etc. “Essa é a maneira mais justa. Aumenta arrecadação, é progressivo e ajuda a financiar o programa.”

O “problema de focalização” – isto é, atingir o público visado – de programas do tipo seria enfrentado unindo tecnologia à experiência de órgãos do governo. Naercio diz que o próprio aplicativo do auxílio emergencial poderia ser adaptado. No lugar do Cadastro Único, as família entrariam no aplicativo e fariam uma declaração mensal de renda, emprego e ativos, de forma similar ao IR anual. “Você teria uma base de dados de acompanhamento mensal de todas as pessoas mais vulneráveis e, assim que elas entrassem na pobreza, receberiam os benefícios automaticamente. Se ela sair da pobreza, aí teria um período de transição, em que, aos poucos, você vai diminuindo o valor.”

Na concepção de Naercio, o aplicativo usaria, por exemplo, biometria. “A pessoa abre com a digital, são checadas as informações como CPF, bate com as bases do governo, com sistema bancário e a pessoa vai autodeclarando. A princípio, você confia nela, e aí depois o governo promove checagens, como a Receita Federal já faz. Quando o isolamento acabar, você pode sortear famílias (uma amostra pequena) e visitar, usar os CRAS [Centro de Referência de Assistência Social] e ir descobrindo os problemas. Vai ser difícil no começo, é um processo lento, como foi o próprio Cadastro Único”, ele lembra.

Naercio se preocupa também com os jovens. Os seus trabalhos apontam que, quando o jovem chega ao mercado de trabalho na crise, a chance de ele ter salários baixos ou ficar desempregado aumenta durante toda a vida. “Estudos em outros países mostram, inclusive, aumento na probabilidade de ele entrar para o crime.”

Para quem concluiu o ensino médio, ou até o fundamental, e está entrando no mercado de trabalho em meio à pandemia, a situação é crítica. “A única oportunidade é com entregas domiciliares, esse é o emprego disponível para jovens pobres. Isso restringe a possibilidade de ele adquirir experiência e decidir o que gosta de fazer, onde a sua produtividade é maior”, afirma, reforçando que a leitura não é determinista.

Sem experiência, mas ainda precisando trabalhar, porém, a tendência é que o jovem continue em uma trajetória de baixa qualificação. “É uma geração que pode ter perdas permanentes de renda e aumentos de desigualdade, porque não afeta os jovens das famílias ricas tanto quanto os das mais pobres”, diz. Ele observa que jovens com melhores condições financeiras e de formação têm mais chance de manter uma educação ou trabalho a distância.

Em termos de políticas públicas, Naercio diz que, infelizmente, há pouco a se fazer. “Avaliações bem feitas mostram que cursos de qualificação profissional têm impacto muito reduzido sobre emprego e remuneração e os recursos seriam mais bem aplicados se gastos na primeira infância. Somente uma recuperação econômica com geração de empregos poderá atenuar um pouco essa perda de renda.”

Programa de Renda Básica focalizado nas Crianças publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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