domingo, 19 de julho de 2020

Armadilha da Liquidez e Crédito Dirigido pela Demanda: Be-a-Bá Keynesiano

Alex Ribeiro e Adriana Cotias (Valor, 17/07/2020) informa: a queda dos juros básicos da economia, de 14,25% em setembro de 2016 para 2,25% anuais agora, já está provocando uma forte movimentação no sistema financeiro, com resgates de recursos de fundos de renda fixa, ampliação das captações líquidas na caderneta de poupança e saída de investimentos para o exterior.

O Banco Central está monitorando esse rearranjo nas carteiras dos investidores, pelos seus potenciais efeitos negativos sobre a estabilidade financeira – que podem representar um limite para quedas mais pronunciadas da taxa Selic, caso seja necessário ampliar ainda mais o grau de estímulo à economia.

O diretor de política econômica do BC, Fabio Kanczuk, disse recentemente que, por enquanto, não há um desequilíbrio preocupante. Mas ele alertou que a migração de recursos de fundos de renda fixa para a caderneta pode criar desafios à estabilidade financeira. “A gente não está vendo absolutamente nenhum problema na indústria de fundos, mas é algo que deve ser monitorado e deve ser feito com cautela”, disse Kanczuk.

Os fundos de renda fixa registraram resgate líquido de R$ 95 bilhões no primeiro semestre, ou 1,72% do seu patrimônio. A queda de juros tornou esse tipo de investimento menos atraente, considerando que seus rendimentos estão sujeitos ao desconto de imposto de renda e há cobrança de taxa de administração por gestores de recursos. Muitos investidores migraram para ativos de maior risco, como ações, em busca de maiores retornos

Paralelamente, os depósitos em caderneta superaram os saques em R$ 84,4 bilhões no primeiro semestre, até por conta da queda de juros, que colocou a poupança no radar novamente, do aumento da reserva de segurança em função da crise do coronavírus e do incremento de renda provocado pelo pagamento de renda emergencial pelo governo.

O diretor de política monetária do BC, Bruno Serra Fernandes, disse que o aumento de captação na caderneta de poupança veio na contramão do esperado – a expectativa era de uma fuga de recursos. O perigo era o desequilíbrio no balanço dos bancos, que captam na caderneta no curto prazo para fazer financiamentos habitacionais de longo prazo. Embora tenha ocorrido o oposto do esperado, o quadro também representa desafios à estabilidade financeira.

“Uma questão é que vamos ter um enorme aumento do endividamento público e os juros pagos são muito baixos”, afirma o ex-diretor do BC e economista-chefe do UBS Brasil, Tony Volpon. “Quem vai financiar essa dívida, se muita está gente fugindo da renda fixa?”

A queda dos juros também tem mexido com os fluxos de investimento dentro e fora do país. Os investimentos em carteira feitos por brasileiros no exterior somaram US$ 4,07 bilhões de janeiro a maio, enquanto que os estrangeiros retiraram do Brasil US$ 31,448 bilhões em investimentos em carteira.

Até maio, o BC estava muito atento à movimentação dos capitais estrangeiros, que pressiona a taxa de câmbio e poderia afetar o balanço de empresas com dívidas em dólares. Depois que a cotação da moeda americana atingiu picos perto de R$ 6,00 e recuou a valores mais baixos sem causar distúrbio, essa preocupação se arrefeceu.

Segundo Kanczuk, diante de todos esses riscos, o BC tem pesado dois objetivos ao decidir por baixas de juros – de um lado, cumprir as metas de inflação e, de outro, manter a estabilidade financeira. Isso, na prática, pode levar o BC a dar menos estímulos do que o necessário para cumprir as metas de inflação, devido aos riscos de desequilíbrio financeiro mais severo.

“O BC pode resolver o problema usando instrumentos diferentes para objetivos diferentes”, diz Volpon. “Medidas macroprudenciais podem lidar com a questão da estabilidade financeira.”

Um exemplo de política macroprudencial seria a fixação de percentuais mínimos que os fundos devem direcionar de seu patrimônio para determinados ativos, como títulos públicos. Também pode ser a flexibilização dos requerimentos de investir 65% dos recursos captados em poupança em habitação.

O economista Marcelo Ferman, da Parcitas Investimentos, argumenta que o Banco Central não deveria estar muito preocupado com a migração de recursos entre modalidades de investimento, já que isso faz parte da transmissão da política monetária. Ele vê aspectos positivos na pressão que ocorre sobre a indústria de fundos. “Os bancos vão ter que baixar as taxas de administração para permanecer competitivos em relação à poupança”, afirma. “Isso é bom.”

Ferman não considera um aprofundamento da migração de recursos das aplicações, com juros mais baixos, como um problema. “Os BCs baixam os juros justamente para forçar as pessoas a tomarem riscos, esse é um dos canais de transmissão da política monetária”, argumenta. “Quem estava sentado em cima de títulos públicos tem que tomar mais riscos para ser remunerado, em ações, imóveis, venture capital. Isso faz parte a solução, não do problema.”

Gilberto Kfouri, responsável por renda fixa e multimercados da BNP Asset Management, entende que a política de corte de juros é uma condição necessária, ainda que insuficiente para reativar o crescimento. Mas ele não acha que haja um limite que favoreça a saída de capitais – uma das preocupações -, pois há outros fatores pesando na fuga de recursos do Brasil, como os ruídos políticos e a desgastada imagem do país aos olhos do investidor estrangeiro.

“Para o investidor local, tirar recursos do Brasil é uma forma de melhorar a rentabilidade, mas não vejo o brasileiro médio mandando dinheiro para fora como se vê em outros países, como na Argentina ou Venezuela”, diz. “O câmbio pode disparar por questão fiscal, se o país sair do trilho.”

Nos próximos 18 meses, nas alocações de curto prazo, o investidor vai ter mesmo juros negativos. A saída, diz Kfouri, é alongar a carteira pesando riscos, diversificar em classes alternativas. E parte do dinheiro reservado para investimentos pode ir para o consumo e parte para ativos reais, como imóveis.

Para um economista de uma gestora ligada a um grande banco, o BC não deveria se preocupar em manter dinheiro nos fundos de renda fixa que seja maior do que o novo equilíbrio exigido por taxas de juros mais baixas. “É natural que o investidor queira buscar maior rentabilidade em bolsa, fundos multimercado ou investimentos alternativos.” Para evitar o desequilíbrio na caderneta de poupança, afirma, o governo poderia permitir que os bancos dirijam os recursos captados para os mesmos ativos em que investem os fundos de renda fixa.

Há, contudo, quem veja riscos em uma política de juro ainda mais baixo. Não há um piso, pode-se colocar os juros em zero, mas causar crescimento econômico são outros quinhentos.

A Selic em 2,25%, e com chance de cair mais, é reflexo de uma atividade sem tração. E uma das razões para isso é que, além do risco de inadimplência pela debilidade econômica, os bancos não têm estímulos para emprestar. Para compensar as perdas com essa linha de receita, o que os bancos fazem é privilegiar operações de mercado de capitais, para ganhar comissões. Ajudam, dessa forma, a inflacionar os preços de ativos, fomentando bolhas, sem que isso converse com a economia real.

O fato de o Brasil ter voltado aos preços de ativos observados antes da pandemia, num cenário de atividade contracionista, é uma característica típica de bolha. “Não estamos falando ‘não entre’. Entre, mas entenda que não tem motivo econômico para isso.”

Fernando Nogueira da Costa: “crédito é dirigido pela demanda – e sem projeto nacional de investimentos não há demanda efetiva sustentável em longo prazo”.

Hugo Passarelli (Valor, 17/07/2020) informa: a queda da taxa Selic, hoje em 2,25% ao ano, para sucessivas mínimas históricas nos últimos meses ainda não é suficiente para alavancar o investimento no Brasil, opinam economistas. Apesar de, em tese, o custo do dinheiro ter barateado, o financiamento de longo prazo segue como um desafio para o setor produtivo. Também pesam as incertezas sobre a retomada da economia após a pandemia do novo coronavírus e os ruídos do governo na área ambiental e no setor externo, que afastam o investidor estrangeiro.

“Continuamos a não ter no país financiamento de longo prazo, acima de dez anos. Ainda dependemos fundamentalmente do BNDES”, afirma Claudio Frischtak, presidente da consultoria Inter.B. Ele lembra que o próprio governo enfrenta dificuldades no perfil do endividamento público. “A dívida pública passa por um enorme encurtamento em sua estrutura. Quando o próprio Tesouro tem enorme dificuldade em emitir títulos longos, não há tomador [no mercado] de títulos longos”, explica.

A retórica contundente do governo também é um fator que contribui para certa desconfiança do capital externo, que poderia ajudar a alavancar projetos de infraestrutura. “No fundo, temos um certo extremismo que coloca o nosso país no isolamento que não é só econômico, é político”, diz Frischtak.

O tema ambiental, repleto de controvérsias desde o início do governo Bolsonaro, é um dos que entraram na pauta dos investidores de fora. Resistente às críticas em torno da questão, o governo, a partir do vice-presidente Hamilton Mourão, tem tentado dirimir as incertezas quanto à preservação da Amazônia mais recentemente. Para Mourão, no entanto, a polêmica deve-se mais a uma falha de comunicação do governo do que pela piora dos índices de queimada e desmatamento na Amazônia.

As condições macroeconômicas também são desfavoráveis para elevar o investimento, opina Armando Castelar, coordenador de economia aplicada do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV). “O pico do investimento foi em 2013 e, antes da crise da covid-19, ainda estava 25% abaixo desse nível, refletindo a elevada capacidade ociosa e as incertezas à frente. Esses fatores já vinham segurando o investimento antes e se tornaram ainda mais intensos”, afirma.

Além da conjuntura atual, o histórico do Brasil no aspecto regulatório pesa sobre a capacidade de atrair capital, afirma Simão Silber, professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP (FEA-USP). “Não pode chegar no meio da valsa e dizer ‘vamos dançar tango’. O Brasil esvaziou muito nos últimos 15 anos as agências reguladoras e rasgamos muito contrato, particularmente na época da Dilma [Rousseff, presidente até 2016]”, afirma.

A recuperação da economia pelo consumo, o que poderia influenciar indiretamente os investimentos, também é improvável, diz o professor da FEA. “A renda per capita antes da crise de 2020 ainda era menor do que a de 2014. Temos de sair de um buraco, ficamos mais pobres e o poder aquisitivo já vinha encolhendo. Com tudo isso, é difícil imaginar um milagre”, afirma Silber.

A soma de fatores estruturais e conjunturais é o que explica a pouca tração que se espera para os investimentos neste ano e no próximo, pelo menos. “Tem a incerteza da pandemia, a da economia mundial e as nossas incertezas históricas. Qual o resultado líquido disso? Os investimentos estão muito retraídos apesar dos juros baixos”, afirma Frischtak.

Alex Ribeiro (Valor, 17/07/2020) entrevista o economista Mario Torós, da Ibiuna Investimentos, diz que a migração de recursos entre diferentes modalidades de investimento – que causa uma inflação de ativos – é um dos elos da corrente usada por bancos centrais ao redor do mundo para estimular as suas economias.

“Um pedaço da poupança vai se mexer. No Brasil, está tudo tão concentrado em títulos públicos”, diz Torós, que era diretor do Banco Central na crise de 2008. “O efeito do juro baixo é isso mesmo, reforçar a economia. O problema de financiamento da dívida pública pode surgir se continuar com o fiscal absolutamente descontrolado”

Para o executivo, do ponto de vista do financiamento da dívida pública, não há motivos de preocupação com a saída de recursos dos fundos de renda fixa.

Valor: Qual será o impacto do juro baixo nos ativos do mercado?

Mario Torós: O objetivo dos bancos centrais, não só do Brasil, mas de outros, é criar uma reflação. Essa reflação, em geral, começa com ativos, depois se transfere para o lado da economia real e, em algum momento, atinge a inflação de bens. Esse último elo da corrente está muito tênue ultimamente. Na crise de 2008, tivemos a transmissão da inflação para ativos, e depois para a atividade econômica, e ela não se transmitiu para a inflação. Houve uma certa japonização do mundo. Agora tivemos um novo choque deflacionário importante. A atuação dos BCs foi de nova anestesia monetária que, com a ação fiscal, de fato permitiu recomeçar os elos dessa corrente. A inflação de ativos está ocorrendo e se transfere para a atividade, ainda que não de forma completa. As quedas da atividade estão sendo menos pronunciadas que o esperado, os dados em todas economias são melhores que o esperado. A terceira fase, que é a passagem disso para a inflação de bens, é que permanece um grande ponto de interrogação, apesar de que já se vê alguma coisa, segurando uma queda muito grande.

Valor: Mas no Brasil?

Torós: O efeito não é diferente. Obviamente, o Brasil está mais atrás, é a pior moeda do mundo, porque a situação fiscal já era desastrosa. Mas está conseguindo, de alguma forma, um movimento semelhante ao que está acontecendo no resto do mundo. Ocorre uma certa reflação de ativos, a atividade econômica parece que está caindo menos do que se imaginava, principalmente pela política fiscal. Mas a sustentabilidade disso se dá por uma inflação de ativos. A inflação de ativos é você ir para a bolsa, talvez em algum momento chegar aos imóveis, tem uma parte de crédito, que primeiro piorou, mas já melhorou um tanto. Tem toda uma fuga de recursos para ativos de risco. Os efeitos da política monetária estão sendo sentidos na medida em que foram feitos. Ao mesmo tempo, contrabalançando isso, tem vários aspectos, como o aumento da poupança precaucional. Esse é um movimento que já vinha ocorrendo com a queda de juro para 4,5% ou 5% ao ano e agora segue, porque os juros caíram para perto de 2% ao ano. O efeito do juro baixo é isso mesmo, reforçar a economia.

Valor: Então a migração de dinheiro entre diferentes investimentos é esperada, não tem nada de errado?

Torós: Um pedaço da poupança vai se mexer. No Brasil, está tudo tão concentrado em títulos públicos.

Valor: Então a política monetária tem que mover esses recursos para cumprir o seu papel?

Torós: É a função dela.
Valor: Não tem o risco de criar instabilidade financeira? A captação de poupança, por

exemplo, subiu muito.

Torós: Se você, de fato, conseguir manter uma taxa real de 2% ou 3%, de 5% a 8% nominal, será capaz, ao longo do tempo, de desmontar toda essa parafernália criada ao longo de décadas, que nada mais é do que o entulho inflacionário. Não precisa do direcionamento imobiliário, de BNDES, a não ser para determinadas coisas, para a parte social, para algumas coisas no financiamento de longo prazo. Mas isso apenas se a taxa de juros for mesmo sustentável, porque há uma dúvida sobre isso, principalmente pela questão fiscal.

Valor: A saída de dinheiro da renda fixa não causa problema no financiamento da dívida publica?

Torós: Acho que não, não vejo nenhum problema. De fato, as pessoas estão saindo do money market. Teve fundo de money market neste ano com cota negativa. Teve gente que, para pagar a taxa de administração, aplicou em crédito privado. Não tem nada a ver com não financiar a dívida pública. O dinheiro está saindo para outros instrumentos e, do ponto de vista macroeconômico, a informação disponível é que o Tesouro está conseguindo se financiar muito bem. Só que ele tem uma necessidade de financiamento brutal, em função dos gastos que ele está tendo. Aí, de fato, pode não conseguir financiar no mercado, vai ter que usar dinheiro do BC. O gasto que está tendo em abril, maio e junho é astronômico. Mas zero de preocupação com financiamento da dívida, com o dinheiro saindo do money market. Vai sair do money market e entrar em multimercado, que vai aplicar em fundo de cinco anos. Teve gente que colocou dinheiro no CDB. Outra parte procurou ativos de risco.

Valor: Mas será que os problemas vão aparecer na hipótese de o juro chegar mais próximo de zero?

Torós: Não acho que o problema apareça pela parte monetária se for feito com consistência. O monetário, o BC está fazendo direito. Está baixando os juros, mas sendo cauteloso. O problema de financiamento da dívida pública pode surgir se continuar com o fiscal absolutamente descontrolado. Ou seja, se tiver, além do orçamento de guerra deste ano, um orçamento de pós-guerra do ano que vem. Surpreendentemente, o mercado não ficou preocupado, talvez porque haja um aumento no gasto fiscal no mundo todo. Mas, que tem um risco, tem.

Armadilha da Liquidez e Crédito Dirigido pela Demanda: Be-a-Bá Keynesiano publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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