terça-feira, 21 de julho de 2020

Resenha de “Capital e Ideologia”

Contraste entre o bairro da Gávea e a Rocinha, no Rio: as desigualdades não são produto natural da economia ou da tecnologia; resultam de construções políticas — Foto: Custodio Coimbra/O Globo

Philip Yang (Valor, 17/07/2020) resenhou o livro “Capital e Ideologia”, nova obra de Thomas Piketty, para o leitor pensar e de especular sobre como poderia ser uma sociedade menos desigual, mais justa. Mesmo o mais desinteressado pelo tema, o mais inflexível dos conservadores, ou o mais ortodoxo dos liberais, não deixará de apreciar a reflexão histórica, política e sociológica (e, sim, também econômica) contida neste livro admirável, que na edição brasileira ostenta 1.056 páginas. Desde logo alerto o leitor: nesta breve resenha, farei rasgados elogios à obra, construirei duas críticas e, a partir delas, ousarei apresentar um convite público ao autor.

O livro traz um argumento simples: as desigualdades – econômicas (de renda ou patrimônio), políticas (de poder em processos de decisão coletiva, públicos ou privados) ou sociais (de acesso a bens e serviços públicos como educação e saúde) – não são produto natural da economia ou da tecnologia; resultam de construções humanas, políticas. Na lógica do autor, para entendermos a desigualdade, devemos compreender antes de mais nada as ideologias, sistemas de ideias, que, através dos tempos, buscaram justificá-la.

Mas o título carrega ambição muito maior. Não se trata “apenas” de fazer uma descrição analítica do capitalismo e da desigualdade; trata-se sobretudo de propor uma prescrição para transcendê-los. Nas palavras de Piketty, o objetivo do livro é “convencer o leitor de que é possível se apoiar nas lições da história para definir uma norma de justiça e igualdade mais exigente em matéria de regulação e redistribuição da propriedade”. A frase que abre o milheiro de folhas dá o tom da jornada que vem pela frente: “Toda sociedade humana precisa justificar suas desigualdades: tem de encontrar motivos para a sua existência ou o edifício político e social como um todo corre o risco de desabar”.

Seu opus anterior, o campeão de vendas “O Capital no Século XXI”, destacava a dinâmica econômica desigualitária descrita pela hoje famosa inequação r > g, estampada nas camisetas de ativistas nas ruas e campi universitários mundo afora. Numa economia capitalista, onde o retorno do capital privado (r) é consistentemente maior do que a taxa de crescimento da economia (g), a concentração da riqueza é inexorável. A tese, eloquente e persuasiva pela sua simplicidade e robustez, alçou o tema da desigualdade para o centro do debate público e fez de Piketty uma celebridade mundial.

No novo livro, o ponto de partida são as sociedades medievais, compostas por três grupos sociais distintos: clero, nobreza e terceiro estado. Os clérigos estabelecem a direção espiritual e definem os valores da comunidade; dão sentido à sua história e ao seu devir. Os aristocratas compõem a classe guerreira, manejam armas e proveem segurança. O terceiro estado é a classe laboriosa: camponeses, artesãos e comerciantes que, com seu trabalho, permitem que o conjunto da comunidade funcione e se reproduza.

Pois bem: para Piketty, saímos dessa sociedade “ternária”, baseada em princípios fundamentalmente religiosos no Antigo Regime – onde clero e nobreza exercem a soberania sobre o povo – para uma sociedade em que o Estado laico sacraliza a propriedade privada. Essa transição estabelece, a partir do século XVIII, a emancipação da burguesia antes oprimida, gerando assim novo equilíbrio social. Nos séculos subsequentes, apesar de haver uma consciência crescente dos problemas gerados pela concentração excessiva de riqueza, o medo do desconhecido sempre emperrou uma necessária redefinição dos direitos de propriedade. No século XX, o colapso do modelo comunista – segue Piketty desenhando um grande arco que vem da Baixa Idade Média aos dias de hoje – agrava esse temor, em função dos traumas que o hiperestatismo soviético deixou na memória coletiva.

Essa grande narrativa sobre a construção das sociedades de proprietários envolve inicialmente as trajetórias europeias (Parte 1). Avança em seguida para as sociedades coloniais e escravocratas, abarcando também as sociedades ternárias fora da Europa (Parte 2). Nas Partes 3 e 4 estão as contribuições centrais, descritivas e prescritivas, as quais enumero livremente como “spoilers”, que, espero, sirvam de estímulo para a leitura do todo. São informações e insights inovadores, visíveis e inteligíveis em função de uma leitura em perspectiva, com assinatura “pikettyana”, de dados econômicos e ciclos políticos de longo curso.

Nas seções analítico-descritivas, destaco três argumentos:

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Entre 1932 e 1980, a alíquota do imposto sobre a faixa de renda mais alta atingiu a média de 81% nos EUA e 89% no Reino Unido. Esse meio século de progressividade tributária anglo-saxônica – que se estabeleceu em função da perda de legitimidade do sistema de propriedade privada e livre concorrência,

hegemônico no século XIX e inícios do século XX – só veio a ser interrompido pela chamada revolução conservadora de Reagan e Thatcher, que fizeram com que as alíquotas para as camadas mais afluentes baixassem para 30-40% nos EUA e 40- 45% no Reino Unido, que vigoram até os dias de hoje.

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Essa evolução é semelhante no voto do Labour Party no Reino Unido e das diversas correntes da social-democracia na Europa, o que tem como resultado a polarização do conflito político entre duas elites: de um lado, os de maior escolaridade se congregam em torno das coalizões mais progressistas, e, de outro, a elite de patrimônios elevados adere à agenda mais conservadora. Pessoas de baixa escolaridade, com patrimônio e renda reduzidos, sentem-se abandonadas – fenômeno que explica, ao menos em parte, a reemergência recente do populismo de direita.

Nas décadas de 1950 a 1970, a votação em favor de partidos com preocupações distributivas (democratas nos EUA e socialistas-comunistas na França) era composta por eleitores de menor escolaridade, renda e patrimônio. Nos anos 1980-2000, a estrutura desse voto progressista muda: passa a contar com uma participação crescente dos mais escolarizados, porém ainda menor entre as rendas mais altas. A transformação aponta para a mudança radical que ocorre nas eleições americanas de 2016, quando boa parte dos grandes patrimônios e rendas também migra para o voto democrata nos EUA (fato que – nota deste resenhista – fez com que o Partido Republicano se transformasse em partido dos trabalhadores, conforme registrou Steve Bannon).

O que virá depois desse grande ciclo? O que fazer depois que as sociais-democracias perderam a base da pirâmide, o experimento comunista ruiu e os identitarismos solapam as possibilidades de uma coalizão igualitária, universalista, capaz de enfrentar o aprofundamento da hiperconcentração de riqueza? As sugestões apontadas por Piketty podem não ser definitivas, mas paulatinamente passam a ser incorporadas em agendas, plataformas políticas e no imaginário da população. São elas:

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o aumento dos impostos sobre a renda e a herança das faixas superiores de renda para alíquotas de até 90% e constitucionalização do princípio da tributação progressiva;

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Seriam plausíveis essas recomendações políticas? Chego ao fim da leitura convencido de dois argumentos centrais: (a) dos perigos que temos face à nova ideologia neoproprietarista que legitimou o aumento desenfreado da concentração de renda e patrimônio destas últimas décadas e (b) do poder das ideologias no amoldamento das sociedades e respectivas realidades socioeconômicas, para o bem e para o mal.

Nesse contexto, as propostas de Piketty abrem a porta da imaginação para a construção do futuro e permitem a políticos (e aos eleitores) imaginarem outros futuros possíveis, rompendo a inércia dos temores maciçamente difundidos pelos robôs conservadores. Ao contrário, ampliam o universo cognitivo coletivo ao tornar

a criação de um imposto anual progressivo sobre a propriedade, cujas taxas variam de 0,1% para pequenos patrimônios (de até €100 mil) a 90% para grandes patrimônios (acima de €2 bilhões);

a instituição de uma “herança para todos”, mediante a qual todo cidadão, aos 25 anos, recebe €120 mil, o equivalente a 60% do patrimônio médio da França, financiados pelo imposto progressivo sobre a propriedade;

a gestão conjunta de empresas: funcionários recebem 50% dos assentos nos conselhos de administração e os direitos de voto dos maiores acionistas são limitados (por exemplo, a 10% nas grandes empresas), seguindo modelo em vigor na Alemanha e países nórdicos;

o reequilíbrio das despesas educacionais em favor de áreas desfavorecidas para maior justiça educacional;

a introdução de um imposto individual e progressivo sobre o carbono emitido;

o financiamento da vida política por meio de “vouchers de democracia” que os cidadãos recebem via bônus do Estado e usam para financiar os partidos de sua escolha;

a definição de objetivos fiscais e ecológicos quantificados e vinculantes em acordos comerciais e tratados internacionais;

o estabelecimento de cadastro financeiro internacional que permita às autoridades saber quem é o dono do quê.

acessível a políticos e públicos não especializados o entendimento de realidades inscritas em longos ciclos econômicos e políticos.

Diante de uma obra desta envergadura, não vou me ater a imprecisões aqui ou acolá, que em nada prejudicam a lógica e as proposições centrais. Como diz o adágio popular, quem só vê árvore não vê floresta. Por exemplo, ao ler os trechos específicos sobre o Brasil Colônia ou o Brasil de hoje, é possível identificar incorreções, superficialidades analíticas ou discordar da avaliação de processos políticos mais recentes. Nada disso coloca em risco a coerência da argumentação do todo.

Registraria, como crítica, duas ausências.

Dada ambição da obra, me pareceria interessante iniciar a narrativa do livro não pelas sociedades ternárias medievais, mas pela origem fundamental das desigualdades que acontecem no Neolítico. É nesse momento que, segundo a arqueologia e a antropologia, a separação entre a agricultura e o pastoreio determinava a primeira divisão social do trabalho. Teriam sido essas primeiras trocas de trigo por ovelhas, centeio por cabras, justas e simétricas? Estariam aqui os germes primários da desigualdade?

A divisão do trabalho entre pastores e lavradores, o surgimento dos mercadores e dos mercados, terão dado origem às cidades – palco central da desigualdade, que por sua vez dá origem a uma outra divisão do trabalho essencial na formação do processo desigualitário: entre aqueles que se especializam na produção e nas trocas (as forças de “mercado”) e, de outro lado, os grupos que se incumbem da proteção física da coletividade e passam então a receber tributos e a subserviência dos demais (as forças de “governo”). O surgimento do Mercado, Estado e Sociedade, como categorias ontológicas que antecedem a sociedade ternária, mereceria portanto uma reflexão conceitual específica numa parte de “Capital e Ideologia”.

Segunda crítica: na parte prescritiva, a obra avança “para cima”, para o âmbito transnacional, com sugestões de mudanças em mecanismos globais de tributação e de controle de capitais, mas não se dirige “para baixo”, para as esferas subnacionais. Dado que as desigualdades se materializam no território, e a organização espacial das cidades são expressões das mais concretas das desigualdades, seria desejável

que o livro pudesse devotar atenção a ferramentas de política local urbana voltadas para a redução das desigualdades.

Parte importante da riqueza – notadamente a terra e o patrimônio imobiliário – é objeto de políticas locais. No Brasil, políticas urbanas como a outorga onerosa, o IPTU, zoneamentos e outros instrumentos que atuam sobre o patrimônio imobiliário são poderosas e subutilizadas, tanto do ponto de vista da receita, quanto da perspectiva do investimento em bens e serviços urbanos capazes de mitigar os efeitos da desigualdade que afetam cruelmente o dia a dia da grande maioria da população brasileira – habitação, saneamento, transportes, infraestruturas digitais para a nova economia.

Fica aqui essa dupla crítica e o convite a Piketty (e sua legião de seguidores) para que devote(m) atenção a ambos os temas; quem sabe, no segundo tópico, usando São Paulo, uma das maiores metrópoles do Sul Global, como locus de investigação, reflexão – e ação!

Resenha de “Capital e Ideologia” publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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