Rafael Gregorio (Valor, 11/02/2020) afirma: poucas coisas preocupam tanto um chefe de família quanto a necessidade de conversar com seus entes queridos sobre a divisão e a administração do patrimônio. Além do temor de deixar os filhos desamparados, não são raras restrições e preferências sobre como deve ser a sucessão e quem deve — ou não — administrar imóveis, aplicações financeiras e empresas.
Nesses casos, é essencial dialogar. Afinal, estão em jogo não só bens materiais, mas relações afetivas e expectativas. Uma vez frustradas, desencadeiam decepções e afastamentos dos familiares.
O que não funciona é não conversar. E esse costuma ser o caminho escolhido, porque é uma discussão difícil, na qual patriarca ou matriarca precisam abrir caso a divisão não vá ser igual, ou se um filho vai ter mais poder em relação a outro. Em caso de disputa, os processos judiciais levam até mais de uma década. Ainda se terminarem em acordo por exaustão, todo mundo perde. São anos de briga. Enquanto isso, empresas e investimentos ficam sem liderança, e há prejuízos.
Entre as preocupações mais frequentes costuma estar uma bastante comum. Há uma resistência das pessoas em tratar da sucessão delas mesmas; ninguém gosta de pensar na própria morte. Depois costuma vir a pretensão de deixar o patrimônio dentro da família imediata – pai, mãe, filhos — e evitar esposas e namorados terem direitos autônomos ou poderem interferir na gestão.
Nos relatos dos gestores se repetem alguns temores, como o namorado da filha. Esse é um clássico. Geralmente a preocupação do cliente nunca é consigo mesmo, embora seja casado pela quinta vez, ele costuma achar estar com um casamento seguro e o problema ser o genro.
Os especialistas também veem um aumento da complexidade com as mudanças no conceito de família. Essa evolução começou com a legalização do divórcio. No Brasil, isso se deu há quatro décadas. Depois, com a normalização dos novos casamentos, como as uniões homoafetivas, reconhecidas pelo Judiciário nos mesmos efeitos das uniões estáveis.
Como resultado, há mais hipóteses a contemplar. Quem entre os filhos de diversos casamentos deverá administrar o negócio versus quem só receberá dividendos? Com qual idade cada herdeiro vai acessar um fundo de previdência?
Também é frequente o receio com alguém ainda incapaz de se estabilizar em uma profissão. Traçam arranjos para, na sucessão, essa pessoa não ter acesso imediato aos recursos. Exemplos desse tipo de solução são fundos fechados. Eles permitam saques apenas uma vez ao ano e mediante consenso dos outros cotistas. Outros são planos de previdência com retiradas só a cada dez anos.
Em jogo não está só um cuidado com as relações, como evidenciam casos tal qual o recente imbróglio envolvendo o espólio do apresentador Antônio Augusto Moraes Liberato, o Gugu (1959-2019). Evitar conversas em vida, reiteram os especialistas, é o caminho para dilapidar empresas e investimentos e pôr em risco o bem-estar futuro dos familiares.
Quando chefes de família morrem, há uma descentralização do poder. Sem preparação, o patrimônio acaba dividido em direitos e deveres iguais. E, se não há alinhamento entre essas partes, se prejudica a gestão da empresa familiar — às vezes, a ponto de paralisá-la.
É quando sobrevêm as perdas. A empresa familiar passa a operar pior, os imóveis se deterioram, toda sorte de problemas acontece. Não são raros os casos onde o patrimônio construído a duras penas é destruído por herdeiros incapazes de se entenderem.
Um exemplo é o espólio de Henry Maksoud (1929-2014). Empresário de sucesso, construiu patrimônio a partir de uma empresa de engenharia. Nos anos 1970, fez obras como a da usina de Itaipu. Depois, investiu em outros setores, mas teve no hotel Maksoud Plaza, inaugurado em 1979, seu bem mais marcante. Após a morte dele, porém, sobreveio uma disputa entre os herdeiros: de um lado, os dois filhos, Claudio e Roberto, e, de outro, um neto – Henry Maksoud Neto, o Henrynho – e a segunda esposa do patriarca, Georgina Célia, além de uma filha dele fora do casamento.
A disputa se tornou belicosa, com direito a inquéritos policiais para averiguar suspeitas como a de a assinatura no testamento deixando parcela relevante para o neto ter sido falsificada. Em jogo, estava um patrimônio à época avaliado em R$ 500 milhões.
Para você ter uma ideia, hoje há o inventário, uma ação anulatória de testamento, outra ação anulatória de uma cessão de quinhão hereditário, reclamações trabalhistas e um processo tentando bloquear a venda da mansão onde ele morava.
As consequências foram severas: graças à dívida trabalhista, o hotel, símbolo paulistano, foi arrematado pelo preço mínimo de R$ 70 milhões. Há um processo pedindo a anulação desse leilão.
Zamariola, que representa o filho Claudio Maksoud, diz a situação ter causado tantas perdas a ponto de Claudio hoje procurar um investidor disposto a financiar os litígios para, ao menos, poder manter as ações na Justiça.
Em outro inventário, impostos não foram pagos enquanto se arrastavam processos entre os herdeiros. Resultado: uma família, embora seu patriarca tenha capitaneado a instalação da indústria petroquímica no país, corre o risco de perder tudo em tributos, multas e juros, porque faltou conversar.
Os riscos de a falta de diálogo sobre sucessão causar nos negócios são ainda maiores quando há uma recessão. Nesses momentos, é preciso tomar decisões rápidas, senão a companhia segue em direção errada. O mesmo vale para finais de crises: a empresa deve decidir entre se recolher ou crescer, e, se faltar consenso, acaba perdendo espaço para a concorrência e valendo menos.
Mas há casos de parentes com coragem e diplomacia para enfrentar o assunto. Ainda tendo passado por dificuldades, viram a situação se acomodar. Há outros onde a conversa foi além e serviu também para resolver divergências vocacionais. Afinal, cuidar do negócio da família nem sempre é o desejado por todo herdeiro.
Foi assim, por exemplo, com Alexandre Birman. Ele preferiu primeiro abrir seu negócio de design de sapatos de luxo para, depois, assumir a Arezzo, a rede de lojas de vestuário criada pelo pai.
Como nem sempre a família entende a necessidade de um consultor para a mediação, ele acaba sendo um pouco psicólogo. Mas seu papel é expor opções do ponto de vista técnico, sem emoção.
Um advogado também ressalta o aspecto tributário. A sucessão, afinal, é fato gerador de imposto. Claro, a família vai pagar tributo, mas é possível reduzir esse custo dos herdeiros-contribuintes.
Uma especialista em direito tributário com foco em gestão de patrimônios e mercado financeiro, dá um exemplo.
Um caso onde ela atuou dizia respeito ao imposto estadual sobre sucessões e doações. Em São Paulo, se chama ITCMD e tem alíquota de 4% sobre o patrimônio transmitido. Em 2015, quando vários Estados discutiram aumentos nas alíquotas desses impostos, conduziu um projeto de sucessão, mas acabou abortado pelo próprio patriarca. Ela remonta o episódio.
“Assessorei uma família controladora de uma companhia aberta. Ela tinha tudo pronto para a sucessão em vida por meio de doações e usufrutos. Mas, na última hora, o patriarca ficou reticente sobre perder o controle dos bens e resolveu não prosseguir. Ele morreu no ano seguinte, quando a alíquota no Estado onde morava tinha acabado de ser duplicada.”
O resultado? R$ 50 milhões de imposto a mais. Mesmo se aquele empresário entendesse a questão tributária, e embora a conversa tivesse sido boa e ele confiasse nos filhos, para ele era mais importante manter sua liberdade. Fazer o quê?!
É prudente e recomendável o processo de doação ser conduzido por um profissional de sua confiança, especializado em sucessão, seja ele advogado, tabelião, escrivão ou assessor patrimonial, participando do planejamento até a conclusão das doações, para o resultado ser a expressão da sua vontade.
O sistema legal brasileiro permite doar livremente até 50% do valor atual de seu patrimônio. A outra metade, denominada “legítima”, é reservada obrigatoriamente para os herdeiros necessários: os descendentes diretos, o cônjuge (não para você, como divorciada), filhos, netos e bisnetos (bisnetos só se tornam herdeiros se avós e pais forem falecidos; os netos, só se os pais tiverem morrido).
A “legítima” será distribuída na partilha da herança: os bens então existentes, quando o doador vier a falecer, comporão o inventário, judicial ou extrajudicial.
Os herdeiros necessários (citados acima) têm direito à parte da “legítima” na herança. Na falta deles, os ascendentes (pais, avós, bisavós); e na falta destes, os herdeiros colaterais (irmãos, sobrinhos e tios, até o quarto grau), nesta ordem sequencial.
Os herdeiros colaterais não são considerados herdeiros necessários, portanto, não têm direito à “legítima”. Se não houver herdeiros necessários (ascendentes, descendentes, cônjuge), o doador pode dispor de tudo possuído como e para quem quiser, mas suas intenções precisam estar documentadas no testamento.
A Constituição de 1988 (artigo 155) definiu os Estados criarem e cobrarem o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD). Eles definem as bases de cálculo e alíquotas incidentes até o limite permitido de 8%.
- O ITCMD nas doações de imóveis e seus direitos ocorre no Estado onde se localiza “o bem” (base de cálculo: valor venal de cada imóvel).
- Já nas doações de bens móveis, títulos e créditos, o imposto incide no Estado do doador.
É importante notar: o ITCMD é pago pelo donatário ou pelo doador:
- se o donatário morar em outro Estado, no caso de bens móveis e assemelhados, inclusive na doação de dinheiro em espécie; ou
- se o donatário não morar no Estado onde fica o imóvel.
Em São Paulo, 4% é o ITCMD máximo atual.
As doações anuais (ano civil), por donatário (CPF) individual têm:
a) isenção até 2,5 mil Unidades Fiscais do Estado de São Paulo UFESPs (equivalente a R$ 66 mil, em 2019);
b) alíquota de 2,5% sobre o valor integral doado, por CPF, acima de 2,5 mil UFESPs até 12 mil UFESPs; e
c) alíquota de 4% para valores acima de 12 mil UFESPs, por CPF.
São Paulo exige a declaração individual de ITCMD para cada doação e donatário, mesmo para a doação isenta. Ela deve ser feita sempre nas datas de cada doação, direto no site da Secretaria da Fazenda Estadual.
Lembre-se: as doações devem constar nas declarações de IRPF do doador e de cada donatário.
Se você morar em outro Estado, junto com o profissional especialista de sua confiança, entenda os procedimentos locais para calcular e pagar o ITCMD, antes de planejar e efetuar as doações.
É aconselhável compartilhar sua intenção de doar parte de seus bens com os netos, se maiores, e filhos.
Também é interessante todos os envolvidos serem orientados por um profissional de confiança, especialista em sucessão, para ajudá-los a visualizar o contexto, as circunstâncias, e ajudar na implementação da solução decidida, alinhando expectativas, explicitando premissas e auxiliando no cumprimento das formalidades, mesmo se houver mudança na legislação.
Leia mais: Manual ITCMD em Doação ou Transmissão Inter Vivos
Planejamento Sucessório: Doações e Heranças ou “Aquilo deixado pelos mortos para os vivos se matarem”… publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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