sexta-feira, 10 de maio de 2019

Mitologia Liberal em Costumes versus Mitologia Neoliberal em Economia

Yuval Noah Harari, no livro “21 lições para o século 21” (São Paulo: Companhia das Letras; 2017), demonstra:  a modernidade não rejeita a pletora de narrativas herdada do passado. E sim, abre um mercado para elas. O humano moderno está livre para experimentá-las todas, escolhendo e combinando a seu gosto.

Algumas pessoas não aguentam tanta liberdade e incerteza. Os movimentos totalitários modernos, como o fascismo, reagiram violentamente contra o mercado de “ideias duvidosas”. Superaram até mesmo religiões tradicionais na exigência de fé absoluta em uma única narrativa.

A maioria das pessoas modernas, no entanto, começou a gostar do mercado livre de crenças. O que você faz quando não sabe qual o sentido da vida nem em qual narrativa acreditar? Você santifica a própria capacidade para escolher. Você está para sempre no papel de consumidor nesse mercado religioso, com a liberdade de escolher o que quiser, examinando os produtos que tem diante de si, e… os adquirindo ao bel prazer.

Segundo a mitologia liberal, se você ficar por bastante tempo nesse grande mercado livre, cedo ou tarde vai vivenciar a epifania liberal e se dará conta do verdadeiro significado da vida.

Todas as histórias disponíveis em oferta no mercado livre são falsas. O significado da vida não é um produto já pronto para uso. Não há um roteiro divino, e nada fora de mim pode emprestar significado a minha vida. Sou eu quem imbuo significado em tudo mediante minhas livres escolhas e meus próprios sentimentos.

Assim, como todas as outras narrativas cósmicas, a narrativa liberal também começa com uma narrativa de criação. Ela diz a criação ocorrer a todo momento, porque eu sou o criador. Qual é então o objetivo de minha vida? Criar sentido sentindo, pensando, desejando e inventando. Qualquer coisa capaz de limitar a liberdade humana de sentir, pensar, desejar e inventar está limitando o sentido do universo. Por isso, a libertação dessas limitações é o ideal supremo.

Em teoria, isto soa excitante e profundo. Infelizmente, a liberdade e a criatividade humanas não são o imaginado pela narrativa liberal. Até onde vai nosso entendimento científico, não existe mágica por trás de nossas escolhas e criações. Elas são produto de bilhões de neurônios. Eles trocam entre si sinais bioquímicos. Assim, mesmo você liberando humanos do jugo da Igreja católica e da União Soviética, suas escolhas ainda serão ditadas por algoritmos bioquímicos tão implacáveis quanto a Inquisição e a KGB.

A narrativa liberal me instrui a buscar a liberdade de me expressar e me realizar. Mas tanto o “eu” quanto a liberdade são quimeras mitológicas tomadas dos contos dos tempos antigos.

O liberalismo tem uma noção particularmente confusa do “livre-arbítrio”. Humanos, obviamente, têm um arbítrio, têm vontades, e às vezes estão livres para realizar seus desejos. Se por “livre-arbítrio” você entende a liberdade de fazer o que desejar — então, sim, humanos têm livre-arbítrio. Mas se por “livre-arbítrio” você entende a liberdade de escolher o que desejar — então não, humanos não têm livre-arbítrio.

Se Yuval Harari sente atração sexual por homens, pode estar livre para realizar suas fantasias, mas não está livre para sentir atração por mulheres. Em alguns casos, pode decidir reprimir meus desejos sexuais ou até mesmo tentar uma terapia de “conversão sexual”, mas o desejo mesmo de mudar sua orientação sexual é algo forçado nele por seus neurônios, talvez instigados por meus vieses culturais e religiosos.

Por que uma pessoa se sentiria envergonhada de sua sexualidade e se esforçaria por alterá-la, enquanto outra pessoa celebra os mesmos desejos sexuais sem nenhum sinal de culpa? Você poderia dizer que o primeiro talvez tenha sentimentos religiosos mais fortes do que o segundo. Mas as pessoas escolhem livremente ter sentimentos religiosos fortes ou fracos?

Da mesma forma, uma pessoa pode decidir ir à igreja todo domingo, em um esforço consciente para fortalecer seus fracos sentimentos religiosos — mas por que uma aspira a ser mais religiosa, enquanto outra está perfeitamente satisfeita por permanecer ateia? Isso pode resultar de quaisquer disposições culturais e genéticas, mas nunca é resultado de um “livre-arbítrio”.

O que vale para o desejo sexual, vale para todos os desejos, na verdade para todos os sentimentos e pensamentos. Considere o próximo pensamento a surgir em sua mente. De onde ele vem? Você escolheu livremente pensar isso, e só depois pensou? Certamente não.

O processo de autoexploração começa com coisas simples, e torna-se mais difícil.

  1. Primeiro, constatamos não controlarmos o mundo exterior. Eu não decido quando chove.
  2. Depois, constatamos não controlarmos o que está acontecendo dentro de nosso próprio corpo. Eu não controlo minha pressão arterial.
  3. Depois, compreendemos não controlarmos nem mesmo nosso cérebro. Eu não disparo meus neurônios.
  4. Por fim, nos damos conta de não controlarmos nossos desejos, ou mesmo nossas reações a esses desejos.

Constatar isso pode nos ajudar a ser menos obsessivos quanto a nossas opiniões, sentimentos e desejos. Não temos livre-arbítrio, mas podemos ficar um pouco mais livres da tirania de nossa vontade. Humanos normalmente dão tanta importância a seus desejos a ponto de tentar controlar e moldar o mundo inteiro de acordo com esses desejos.

Em busca da realização desses desejos, humanos travam guerras mundiais e desestabilizam o ecossistema. Se entendermos nossos desejos não serem manifestações mágicas de livre escolha, e sim o produto de processos bioquímicos (influenciados por fatores culturais também fora de nosso controle), poderemos nos preocupar menos com eles. É melhor compreender a nós mesmos, nossa mente e nossos desejos em vez de realizar qualquer fantasia surgida em nossa cabeça.

Mitologia Liberal em Costumes versus Mitologia Neoliberal em Economia publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



Nenhum comentário:

Postar um comentário