Niall Ferguson, no último capítulo do livro “A Praça e a Torre: Redes, Hierarquias e a Luta pelo Poder Global” (São Paulo: Planeta do Brasil; 2018. 608 p.), diz: às vezes, parece estarmos condenados a tentar entender nosso próprio tempo com arquiteturas conceituais com mais de meio século. Desde a crise financeira, por exemplo, muitos economistas se reduziram a reciclar as ideias de John Maynard Keynes. Ele morreu em 1946. [Fernando Nogueira da Costa: E a maioria dos grandes autores na História do Pensamento Econômico muito antes dele.]
Confrontados com o populismo, escritores sobre política norte-americana e europeia repetidamente confundem-no com o fascismo, como se a era das guerras mundiais fosse a única história que eles já estudaram. Os analistas de relações internacionais parecem estar presos a terminologias datadas mais ou menos do mesmo período: realismo ou idealismo, contenção ou apaziguamento, dissuasão ou desarmamento.
Mas tudo isso ocorreu setenta anos atrás. Nossa própria era é profundamente distinta dos meados do século XX. Os Estados quase autárquicos, impositivos e controladores, emergentes da Depressão, da Segunda Guerra Mundial e do início da Guerra Fria, existem hoje, se é que sobreviveram, apenas como pálidas sombras do que foram. As burocracias e as máquinas partidárias que os faziam funcionar estão mortas ou em decadência. O Estado administrativo é sua encarnação final.
Hoje, a combinação da inovação tecnológica com a integração econômica mundial criou formas inteiramente novas de rede – que vão desde o submundo do crime até o rarefeito “mundo superior” de Davos – que não foram nem sonhadas por nenhum pensador do passado.
Winston Churchill observou, em uma frase famosa: “Quanto mais se olha para trás, mais longe se consegue ver à frente”. Nós também devemos olhar para trás por mais tempo e perguntar:
- Será que nossa Era poderá repetir a experiência do período depois de 1500, quando a revolução da imprensa liberou onda após onda de revolução?
- Será que as novas redes vão nos libertar dos grilhões do Estado administrativo assim como as redes revolucionárias dos séculos XVI, XVII e XVIII libertaram nossos ancestrais dos grilhões da hierarquia espiritual e temporal?
- Ou as hierarquias estabelecidas de nosso tempo terão êxito em cooptar as redes mais rapidamente que seus predecessores imperiais e recrutá-las para o seu antigo vício da guerra?
Uma utopia libertária de netizens livres e iguais – todos interconectados, compartilhando toda a informação possível com a máxima transparência e o mínimo de configurações de privacidade – tem um certo apelo, especialmente entre os jovens. É romântico imaginar tais netizens como os trabalhadores no filme Metrópolis de Lang, espontaneamente se sublevando contra as elites corruptas do mundo, para liberar o poder da inteligência artificial e libertar-se da dureza do trabalho também.
Aqueles que tentam olhar para a frente sem se voltar para trás muito facilmente caem na armadilha de tal desejo. Desde meados da década de 1990, cientistas da computação e outros têm fantasiado a possibilidade de um “cérebro global” – um “superorganismo planetário” auto-organizante.
“Ademais, uma suspeita não pode ser ignorada: a de que, a despeito de toda a celebração utópica, forças menos benignas já tenham aprendido a usar e abusar da “cognisfera” em proveito próprio. Na prática, a internet depende para sua operação de cabos submarinos, fios de fibra óptica, links de satélites e enormes galpões cheios de servidores. Não há nada utópico na propriedade da infraestrutura, nem nos arranjos oligopolistas que tornam a propriedade de grandes plataformas da rede tão lucrativa.
Vastas novas redes foram tornadas possíveis, mas, como as redes do passado, elas são hierárquicas em estrutura, com um pequeno número de polos superconectados, erguendo-se sobre uma massa de nódulos esparsamente conectados. E não se trata mais da mera possibilidade de que tal rede possa ser instrumentalizada por oligarcas corruptos ou fanáticos religiosos para fazer um novo e imprevisível tipo de guerra no ciberespaço.
Essa guerra já começou. Índices de risco geopolítico levam a crer que a guerra convencional ou mesmo a nuclear podem não estar longe. Nem se pode descartar que um “superorganismo planetário” criado pelo Dr. Fantástico da inteligência artificial possa um dia sair dos trilhos – calculando, não incorretamente, a raça humana ser de longe a maior ameaça de longo prazo ao planeta – e nos extermine.
“Eu pensava que, quando todos pudessem falar livremente e compartilhar informação e ideias, o mundo automaticamente seria um lugar melhor”, disse Evan Williams, um dos cofundadores do Twitter, em maio de 2017. “Eu estava errado.”
A lição da história é confiar em redes, para elas fazerem o mundo funcionar, é uma receita para a anarquia: em seu melhor, o poder acaba nas mãos dos iluminares, isto é, os sábios-cientistas da tecnologia das informações, mas o mais provável é acabar nas mãos dos jacobinos. Alguns hoje estão tentados a dar pelo menos “dois vivas para o anarquismo”.
Quem viveu as guerras das décadas de 1790 e 1800 aprendeu uma importante lição, a qual deveríamos reaprender: a não ser que se queira colher um furacão revolucionário atrás do outro, é melhor impor ao mundo algum tipo de ordem hierárquica e dar a ela alguma legitimidade.
No Congresso de Viena, as cinco grandes potências concordaram em estabelecer tal ordem, e a pentarquia formada deu notável estabilidade para a maior parte do século que se seguiu. Meros duzentos anos depois, nos vemos confrontados com a mesma escolha enfrentaram.
Aqueles que preferem um mundo operado por redes acabarão não interconectados com a utopia de seus sonhos, mas com o mundo dividido entre FANG e BAT, tendendo a todas as patologias descritas no livro, onde as sub-redes malignas exploram as oportunidades da World Wide Web para espalhar memes e hipocrisias virais.
A alternativa é: uma outra pentarquia de grandes potências reconheça seus interesses comuns em resistir ao jihadismo, a criminalidade e o cibervandalismo, para não falar das mudanças climáticas.
Até o governo russo deve ter entendido: nenhum Estado pode querer dominar a Cyberia por muito tempo. Por exemplo, o vírus de rede chamado EternalBlue, desenvolvido pela NSA norte-americana como uma arma cibernética, foi roubado e vazado para um grupo autointitulado Shadow Brokers. Coube a um pesquisador britânico achar o “botão desliga”, mas só depois de centenas de milhares de computadores terem sido infectados, entre eles máquinas norte-americanas, britânicas, chinesas, francesas e russas.
O que poderia ilustrar melhor o interesse comum das grandes potências em combater a anarquia da internet? Convenientemente, os arquitetos da ordem pós-1945 criaram a base institucional para uma nova pentarquia na forma dos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU. Esta é uma instituição com o muito importante ingrediente da legitimidade. Se essas cinco potências podem ou não constituir uma causa comum novamente, como fizeram seus antecessores no século XIX, é a grande pergunta geopolítica de nosso tempo.
Finalmente, “para explicar por que este livro se chama A praça e a torre, o leitor deve vir comigo a Siena. Caminhe através da Piazza del Campo, em forma de concha, até o Palazzo Pubblico, passando sob a sombra do campanário, a majestosa Torre del Mangia.
Em nenhum lugar do mundo você verá tão elegantemente justapostas as duas formas de organização humana retratadas neste livro: a seu redor, um espaço público desenhado para atender todos os tipos de interações humanas mais ou menos informais; acima de você, uma torre imponente que quer simbolizar e projetar o poder secular.
O tema central deste livro é a tensão entre redes distribuídas e ordens hierárquicas é tão antiga quanto a própria humanidade. Ela existe a despeito do estado da tecnologia, embora a tecnologia possa afetar qual das duas está por cima.
Siena exemplifica esse ponto, pois a arquitetura de sua praça e de sua torre pré-data o advento da imprensa na Europa. A Torre del Mangia foi erigida no século XIV ao lado do Palazzo Pubblico. Este, por sua vez, foi terminado em 1312. A piazza pavimentada de tijolos também data do Trecento.
Muitas pessoas hoje cometem o erro de julgar ter sido a internet quem fundamentalmente mudou o mundo. Mas, como uma sentença majoritária da Suprema Corte americana notou, a internet é apenas “a praça pública moderna”, nas palavras do Juiz Anthony Kennedy.
Os problemas recentes não são tão inéditos como se possa imaginar. A predileção do presidente pelo autoritarismo é um presságio do fim da República? A divisão social e política pode escalar para fricção social? O desafio colocado por uma potência emergente à potência hegemônica vai levar à guerra?
Tais questões não teriam soado estranhas aos homens que erigiram a Torre del Mangia. Se você duvida, entre no Palazzo Pubblico e suba ao segundo pavimento. Ali, nas paredes da Sala dei Nove (Sala dos Nove), você encontrará evidência surpreendente de a dicotomia entre a rede e a hierarquia ser uma ideia antiga.
“Considerando a sua época, a obra-prima de Lorenzetti era surpreendentemente simpática à Cidade-Estado autogovernada e hostil tanto à Monarquia quanto ao Império. Seria demais afirmar o artista ter sido um profeta da Era das Redes que emergiriam um século e meio depois. Mas, certamente, ele estava à frente de seu tempo ao ligar tão explicitamente o governo baseado no império da lei à prosperidade econômica e à coesão social.
É preciso lembrar: não apenas a Europa, mas quase toda a Eurásia da época, era dominada por uma variedade de governos despóticos. A Era de Ouro de Siena estendeu-se de cerca de 1260 até 1348, coincidindo com a ascensão e queda do Império Mongol.
Foi o tempo em que os mercadores de Siena viajavam até lugares tão distantes como Tabriz para comprar sedas da Ásia Central, um tempo em que o papa recebia emissários do imperador Yuan Toghon Temur. Ainda que há muito perdida, a outra contribuição de Lorenzetti à decoração do Palazzo foi um Mappamondo rotacional, de 4,88 m de diâmetro. Mostra Siena no centro de uma rede comercial se estendendo pela Eurásia.
A tragédia foi precisamente essa rede de comércio ter constituído mais tarde o vetor ao longo do qual a peste bubônica foi transmitida. A chamada “peste negra” atingiu Siena em 1348, menos de uma década depois da execução de A paz e A Guerra, e provavelmente incluiu Lorenzetti entre suas vítimas. Foi o fim da bonança.
Mas os afrescos da Sala dei Nove vêm sobrevivendo por quase setecentos anos, oferecendo-nos uma notável lembrança de os problemas da guerra e da paz — e da boa ou má governança — não são novos. As tecnologias vêm e vão. O mundo permanece um mundo de praças e torres.”
A Praça e a Torre Redux publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário