terça-feira, 28 de maio de 2019

Cyberia

Niall Ferguson, no 57º capítulo do livro “A Praça e a Torre: Redes, Hierarquias e a Luta pelo Poder Global” (São Paulo: Planeta do Brasil; 2018. 608 p.), pergunta: quem ganha no fim, a hierarquia ou a rede?

A pergunta se refere ao clássico filme mudo de Fritz Lang, Metrópolis, de 1927. Ele retrata a queda de uma ordem hierárquica pelas mãos de uma rede insurgente. Metrópolis é uma cidade de altos arranha-céus. No topo, em coberturas palacianas, vive uma elite rica liderada pelo autocrata Joh Fredersen. Embaixo, nas fábricas subterrâneas, trabalha o proletariado.

A maior ameaça à ordem social hierárquica da cidade é colocada não pela inundação subterrânea, mas pela conspiração clandestina entre os trabalhadores. Nada enfurece Fredersen mais além da percepção de tal conspiração ter sido realizada nas catacumbas da cidade sem seu conhecimento.

Em termos atuais, a hierarquia não é uma única cidade, mas o próprio Estado-nação. Essa superorganização política, verticalmente estruturada, evoluiu das Repúblicas e Monarquias da Europa no início da Era Moderna.

Embora não sejam a nação mais populosa do mundo, os Estados Unidos certamente são o país mais poderoso do mundo, apesar das extravagâncias de seu sistema político-eleitoral. Seu rival mais próximo, a República Popular da China, é normalmente vista como um tipo profundamente diferente de Estado, pois, enquanto os Estados Unidos têm dois grandes partidos, a República Popular tem um, e apenas um.

O governo dos Estados Unidos está fundado na separação dos poderes, especialmente a independência de seu Poder Judiciário. Já a China subordina todas as outras instituições, inclusive os tribunais, aos ditames do Partido Comunista.

Mas ambos os Estados são Repúblicas, com estruturas de administração verticais comparáveis e concentrações de poder não inteiramente diferentes nas mãos de um governo central relativo ao Estado e às autoridades locais. Economicamente, os dois sistemas certamente estão convergindo, com a China cada vez mais considerando mecanismos de mercado. Ao mesmo tempo, o governo federal dos EUA em anos recentes tem progressivamente aumentado o poder estatutário e regulatório de agências públicas sobre produtores e consumidores.

Em uma extensão perturbadora de libertários, tanto da direita, quanto da esquerda, o governo norte-americano exerce controle e pratica a vigilância sobre seus cidadãos de maneira funcionalmente mais próximas da China em lugar da América dos Pais Fundadores.

Nesses quesitos, Chimérica – sigla criada por Niall Ferguson em seu livro “Ascensão do Dinheiro” – não é uma quimera. Antes, estas economias pareciam opostas, com uma delas exportando, a outra importando, uma poupando, a outra consumindo. Desde a crise financeira de 2008, porém, tem havido certa convergência.

Hoje, a bolha imobiliária, o alavancamento excessivo, os bancos suspeitos – sem mencionar os “unicórnios” tecnológicos – podem provavelmente ser encontrados tanto na China quanto nos EUA. Na Chimérica 1.0, os opostos se atraem. Na Chimérica 2.0, o estranho casal se tornara curiosamente parecido, como muitas vezes acontece em um casamento.

Colocadas ao lado dos Estados Unidos da América e da República Popular da China na hierarquia dos Estados-nação estão a República Francesa, a Federação Russa e o Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte. Esses são os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança e, assim, estão acima de todos os outros 188 membros das Nações Unidas – uma instituição onde todas as nações são iguais, mas algumas são mais iguais do que outras.

Mas claramente isso não é suficiente para descrever a ordem mundial. Em termos de capacidade, há uma outra elite um pouco maior, das potências nucleares, à qual, além do “P5”, adicionam-se a Índia, Israel, Paquistão e Coreia do Norte. O Irã aspira juntar-se a elas.

Em termos de poder econômico, a hierarquia é de novo diferente: os países do Grupo dos Sete (Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão, Reino Unido e Estados Unidos) já foram considerados as economias dominantes do mundo, mas hoje o clube é relativamente menos dominante como resultado da emergência dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), os maiores dos chamados “mercados emergentes”.

O Grupo dos 20 foi formado em 1999 para reunir as maiores economias do mundo, mas com super-representação dos europeus. A própria UE faz parte dele, mas os maiores Estados europeus também são membros do grupo individualmente.

Mas pensar o mundo em tais termos é ignorar sua profunda transformação pela proliferação de redes informais nos últimos quarenta anos. Visualize, em vez disso, um gráfico de rede baseado na complexidade econômica e na interdependência. Ele delineia a relativa sofisticação de todas as economias do mundo em termos de avanços tecnológicos e também suas conexões através de comércio e investimento que atravessa fronteiras.

Tal gráfico mostraria uma arquitetura fortemente hierárquica, por causa da distribuição de recursos e capacidades econômicas no mundo, segundo uma Lei de Poder, e a significativa variação na abertura econômica entre países. Mas seria também sem dúvida uma rede, com a maioria dos nódulos conectada ao resto do mundo por mais de uma ou duas arestas.

A pergunta-chave é: quanto esta rede de complexidade econômica agora ameaça a ordem mundial hierárquica dos Estados-nação? É comparável à ameaça colocadas recentemente pelas redes de complexidade política a hierarquias políticas domésticas estabelecidas – notadamente em 2011 no Oriente Médio, em 2014 na Ucrânia, em 2015 no Brasil e em 2016 na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Para colocar a questão de maneira mais simples: pode uma rede mundial ter ordem? Como vimos, alguns dizem que é possível. À luz da experiência histórica, Niall Ferguson duvida muito.

Cyberia publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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