Yuval Noah Harari, no livro “21 lições para o século 21” (São Paulo: Companhia das Letras; 2017), começa analisar os desafios globais contemporâneos com a nêmese íntima do gênero humano: a guerra nuclear.
Especialistas e leigos temiam o gênero humano não ter a sabedoria para evitar a destruição. Era apenas questão de tempo para a Guerra Fria ferver. Na verdade, o gênero humano provou-se à altura do desafio nuclear. Americanos, soviéticos, europeus e chineses mudaram o modo com que a geopolítica fora conduzida durante milênios.
Assim, a Guerra Fria terminou com pouco derramamento de sangue. Uma nova ordem mundial internacionalista fomentou uma era de paz sem precedente. Não só se evitou a guerra nuclear, como diminuíram as guerras de todos os tipos.
Desde 1945, surpreendentemente, poucas fronteiras foram redesenhadas mediante agressão direta, e a maior parte dos países cessou de usar a guerra como instrumento político padrão. Em 2016, apesar da guerra na Síria, na Ucrânia e vários outros focos de tensão, menos pessoas morreram devido à violência humana do que a obesidade, acidentes de carro ou suicídio. Essa talvez seja a maior realização política e moral de nossos de nossos tempos.
Infelizmente, estamos tão acostumados a essa conquista que a tomamos como certa e garantida. É por isso, em parte, que há quem se permita brincar com fogo. A Rússia e os Estados Unidos embarcaram recentemente em uma nova corrida nuclear, desenvolvendo novas máquinas do juízo final que ameaçam desfazer tudo o que se ganhou a duras penas nas últimas décadas e nos levar de volta à beira da aniquilação nuclear. Enquanto isso o público aprendeu a parar de se preocupar e de amar a bomba (como sugeriu o dr. Fantástico), ou simplesmente esqueceu que ela existia.
Assim, o debate do Brexit na Inglaterra — uma importante potência nuclear — girou principalmente em torno de questões de economia e imigração, enquanto a contribuição vital da União Europeia para a paz europeia e global foi amplamente ignorada. Após séculos de terríveis carnificinas, franceses, alemães, italianos e britânicos finalmente construíram um mecanismo capaz de garantir a harmonia continental — até pouco mais da metade do público inglês sabotar essa máquina milagrosa.
Foi extremamente difícil construir o regime internacional que impediu uma guerra nuclear e salvaguardou a paz no mundo. Não há dúvida de que precisamos adaptar esse regime às novas condições globais, por exemplo, apoiando-nos menos “nos Estados Unidos e atribuindo um papel maior a potências não ocidentais, como China e Índia.
No entanto, abandonar totalmente esse regime e reverter para uma política nacionalista de poder seria uma aposta irresponsável. No século XIX, os países jogaram o jogo nacionalista sem destruir a civilização humana. Mas isso foi na era pré-Hiroshima. Desde então, as armas nucleares elevaram as apostas e mudaram a natureza fundamental da guerra e da política.
Enquanto os humanos souberem como enriquecer urânio e plutônio, sua sobrevivência depende de saberem dar preferência à prevenção de uma guerra nuclear em detrimento dos interesses de qualquer nação em particular. Nacionalistas fervorosos que gritam “Nosso país em primeiro lugar!” deveriam se perguntar se seu país é capaz de sozinho, sem um robusto sistema de cooperação internacional, proteger o mundo — ou a si mesmo — da destruição nuclear.
Além da guerra nuclear, nas próximas décadas o gênero humano vai enfrentar uma nova ameaça existencial: o colapso ecológico. Os humanos estão desestabilizando a biosfera global em múltiplas frentes. Estamos extraindo cada vez mais recursos do meio ambiente, e despejando nele quantidades enormes de lixo e veneno, mudando a composição do solo, da água e da atmosfera.
Não temos sequer ideia das dezenas de milhares de maneiras com que rompemos o delicado equilíbrio ecológico configurado ao longo de milhões de anos. A ameaça maior é a mudança climática.
Os humanos existem há centenas de milhares de anos, e sobreviveram a inúmeras idades do gelo e ondas de calor. No entanto, a agricultura, as cidades e as sociedades complexas existem há menos de 10 mil anos. Durante esse período, conhecido como Holoceno, o clima da Terra tem sido relativamente estável. Qualquer desvio dos padrões do Holoceno apresentará às sociedades humanas desafios enormes com os quais nunca se depararam.
Ao contrário de uma guerra nuclear — que é um futuro potencial —, a mudança climática é uma realidade presente. Existe um consenso científico de que atividades humanas, particularmente a emissão de gases de efeito estufa como o dióxido de carbono, estão fazendo o clima da terra mudar num ritmo assustador.
Ninguém sabe exatamente quanto dióxido de carbono podemos continuar lançando na atmosfera sem desencadear um cataclismo irreversível. Mas nossas melhores estimativas científicas indicam que a menos que cortemos dramaticamente a emissão de gases de efeito estufa nos próximos vinte anos, a temperatura média global se elevará em 2oC.
Essa elevação da temperatura resultará na expansão de desertos, no desaparecimento de calotas de gelo, na elevação dos oceanos e em maior recorrência de eventos climáticos extremos, como furacões e tufões. Essas mudanças, por sua vez, vão desmantelar a produção agrícola, inundar cidades, tornar grande parte do mundo inabitável e despachar centenas de milhões de refugiados em busca de novos lares.
Além disso, estamos nos aproximando rapidamente de um certo número de pontos de inflexão além dos quais mesmo uma queda dramática na emissão de gases de efeito estufa não será suficiente para reverter essa tendência e evitar uma tragédia de abrangência mundial.
Onde se encaixa o nacionalismo neste quadro alarmante? Haverá uma resposta nacionalista à ameaça ecológica? Alguma nação, mesmo que poderosa, será capaz de sozinha fazer parar o aquecimento global?
Países podem, individualmente, adotar uma variedade de políticas ambientais, muitas das quais fazem sentido econômico e ambiental. Governos podem taxar emissões de carbono, adicionar custos de externalidades ao preço do petróleo e do gás, adotar regulamentos ambientais mais rigorosos, cortar subsídios de indústrias poluentes e incentivar a mudança para energia renovável.
Podem também investir mais dinheiro na pesquisa e no desenvolvimento de tecnologias revolucionárias ecologicamente corretas. Deve-se ao motor de combustão interna muito dos avanços dos últimos 150 anos, mas, se quisermos manter um meio ambiente física e economicamente estável, ele tem de ser aposentado e substituído por novas tecnologias que não dependem da queima de combustíveis fósseis.10
“O isolacionismo nacionalista talvez seja mais perigoso no contexto de mudança climática do que no contexto de uma guerra nuclear. Uma guerra nuclear em escala mundial ameaçaria destruir todas a nações, e assim todas as nações têm interesse em evitá-la. O aquecimento global, em contraste, provavelmente terá impacto diferente em diferentes nações.”
Não é coincidência o ceticismo quanto à mudança climática tender a ser exclusivo da direita nacionalista. Raramente veem-se socialistas ou a esquerda proclamar que “a mudança climática é um embuste chinês”. Como não existe uma resposta nacional ao problema do aquecimento global, alguns políticos nacionalistas preferem acreditar que o problema não existe.
É provável que a mesma dinâmica estrague qualquer antídoto nacionalista à terceira ameaça existencial do século XXI: a disrupção tecnológica. A fusão da tecnologia da informação com a biotecnologia abre a porta para uma cornucópia de cenários apocalípticos. Eles vão desde ditaduras digitais até a criação de uma classe global de inúteis. Qual é a resposta nacionalista a essas ameaças?
Não existe uma resposta nacionalista. Como no caso da mudança climática, também no da disrupção tecnológica o Estado-nação é simplesmente o contexto errado para enfrentar a ameaça.
Uma vez que pesquisa e desenvolvimento não são monopólio de nenhum país, nem mesmo uma superpotência como os Estados Unidos pode restringi-los a si mesma. Se o governo dos Estados Unidos proibir que se faça engenharia genética em embriões humanos, isso não impedirá que cientistas chineses a façam. E se os desenvolvimentos daí resultantes conferirem à China alguma vantagem econômica ou militar importante, os Estados Unidos ficarão tentados a abolir sua própria proibição.
Especialmente em um mundo xenofóbico onde um devora o outro, se um único país optar por seguir um caminho tecnológico de alto ganho e alto risco, outros países serão obrigados a fazer o mesmo, porque ninguém pode se dar ao luxo de ficar para trás. Para evitar uma corrida ao fundo do poço, o gênero humano provavelmente vai precisar de algum tipo de identidade e lealdade global.
Além disso, enquanto a guerra nuclear e a mudança climática ameaçam apenas a sobrevivência física do gênero humano, tecnologias disruptivas podem mudar a própria natureza da humanidade. Elas estão entrelaçadas com as mais profundas crenças éticas e religiosas humanas.
Enquanto todos concordam que devíamos evitar a guerra nuclear e o colapso ecológico, as pessoas têm opiniões muito diferentes quanto ao uso da bioengenharia e da IA para aprimorar os humanos e criar novas formas de vida. Se o gênero humano não conseguir conceber e administrar diretrizes éticas globalmente aceitas, estará aberta a temporada para algo incontrolável.
Quando se trata de formular essas diretrizes éticas, acima de tudo é o nacionalismo que sofre de um fracasso da imaginação. O nacionalismo pensa em termos de conflitos territoriais que duram séculos, enquanto as revoluções tecnológicas do século XXI deveriam ser compreendidas em termos cósmicos.
Depois de 4 bilhões de anos de vida orgânica evoluindo por seleção natural, a ciência está nos levando à era da vida inorgânica configurada por design inteligente. Neste processo, o Homo sapiens provavelmente desaparecerá.
Ainda somos macacos da família dos hominídeos. Ainda compartilhamos com neandertais e chimpanzés a maior parte de nossas estruturas corporais, habilidades físicas e faculdades mentais. Não só nossas mãos, olhos e cérebro são distintamente hominídeos como também nosso amor, nossa paixão, nossa raiva e nossos vínculos sociais.
Dentro de um ou dois séculos, a combinação de biotecnologia e IA poderá resultar em traços corporais, físicos e mentais que se libertem completamente do molde hominídeo. A consciência poderia até mesmo ser dissociada de toda estrutura orgânica, e surfar pelo ciberespaço livre de todas as restrições biológicas e físicas.
Poderíamos testemunhar a total dissociação de inteligência e consciência. O desenvolvimento da IA poderia resultar em um mundo dominado por entidades superinteligentes, mas totalmente não conscientes.
O que tem o nacionalismo israelense, russo ou francês a dizer sobre isso? Para poder fazer escolhas sensatas quanto ao futuro da vida, precisamos ir bem além do ponto de vista nacionalista e olhar para as coisas de uma perspectiva global, ou até mesmo cósmica.
Cada um desses três problemas — guerra nuclear, colapso ecológico e disrupção tecnológica — é suficiente para ameaçar o futuro da civilização. Mas, tomados em conjunto, eles se somam a uma crise existencial sem precedente, em especial porque provavelmente irão se reforçar e recompor mutuamente.
Se a crise ecológica ameaçar a sobrevivência da civilização humana como a conhecemos, é improvável ela deter o desenvolvimento da IA e da bioengenharia. Se você está contando com a elevação dos oceanos, a constante diminuição no suprimento de alimentos e as migrações em massa para desviar nossa atenção dos algoritmos e dos genes, pense novamente. Enquanto a crise ecológica se aprofunda, o desenvolvimento de tecnologias de alto risco e alto ganho provavelmente só vai acelerar.
Desafios Globais exigem Soluções Globais publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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