Yuval Noah Harari, no livro “21 lições para o século 21” (São Paulo: Companhia das Letras; 2017), pergunta: o que significa ser secular?
O secularismo às vezes é definido como negação da religião, e as pessoas seculares são, portanto, caracterizadas por aquilo em que não acreditam e não fazem. De acordo com essa definição, as pessoas seculares não acreditam em deuses ou anjos, não frequentam igrejas e templos e não realizam ritos ou rituais. Como tal, o mundo secular parece oco, niilista e amoral — uma caixa vazia esperando ser preenchida por algo.
Poucas pessoas adotariam uma identidade negativa. Secularistas autoprofessados veem o secularismo de maneira muito diferente. Para eles, o secularismo é uma visão de mundo muito positiva e ativa, definida por um código de valores coerentes, e não pela oposição a esta ou aquela religião.
Realmente, muitos dos valores seculares são compartilhados por várias tradições religiosas. Salvo algumas seitas que insistem em que têm o monopólio de toda a sabedoria e toda a bondade, uma das principais características das pessoas seculares é que elas não reivindicam esse monopólio.
Não pensam que moralidade e sabedoria tenham descido do céu num lugar e tempo específicos. E sim que moralidade e sabedoria são o legado natural de todos os humanos. Daí, só se poderia esperar que ao menos alguns valores surgissem nas sociedades humanas por todo o mundo, e fossem comuns a muçulmanos, cristãos, hindus e ateus.
Líderes religiosos frequentemente defrontam seus seguidores com uma rigorosa escolha na forma “ou isso ou aquilo” — ou vocês são muçulmanos ou não são. Se são muçulmanos, devem rejeitar todas as outras doutrinas.
Em contraste, as pessoas seculares sentem-se confortáveis com múltiplas identidades híbridas. No que concerne ao secularismo, você pode continuar se dizendo muçulmano e continuar a rezar para Alá, comer alimentos halal e fazer o haj, a peregrinação a Meca — e ainda ser um bom membro da sociedade secular, contanto que adote o código ético secular.
Esse código — que na verdade é aceito por milhões de muçulmanos, cristãos e hindus assim como por ateus — cultua valores como liberdade, compaixão, igualdade, coragem e responsabilidade. Constitui o fundamento das modernas instituições científicas e democráticas.
Como todos os códigos éticos, o código secular é mais um ideal a se aspirar do que uma realidade social. Assim como sociedades e instituições cristãs desviam-se frequentemente do ideal cristão, também sociedades e instituições seculares ficam muito aquém do ideal secular.
A França medieval foi um autoproclamado reino cristão, mas incorreu em todo tipo “de atividades não muito cristãs (pergunte só a seu oprimido campesinato). A França moderna é um autoproclamado Estado secular, mas da época de Robespierre em diante ela tomou certas liberdades preocupantes com a própria definição de liberdade (pergunte só às mulheres).
Isso não quer dizer que às pessoas seculares — na França ou em outro lugar — falta uma bússola moral ou um comprometimento ético. Quer dizer apenas que não é fácil corresponder a um ideal.
O que é então o ideal secular? O compromisso secular mais importante é com a verdade. Ela se baseia em observação e evidência e não apenas na fé. Os seculares esforçam-se para não confundir verdade com crença.
Se você tem uma crença muito forte em uma narrativa, isso pode revelar muitas coisas interessantes sobre a sua psicologia, sua infância e sua estrutura cerebral — mas não prova que essa narrativa é verdadeira. Muitas vezes, crenças fortes são necessárias justamente porque a narrativa não é verdadeira.
Além disso, seculares não santificam nenhum grupo, nenhuma pessoa ou nenhum livro como se ele ou ela, e só ele ou ela, tivesse a custódia única da verdade. Em vez disso, santificam a verdade onde quer que ela possa se revelar — em antigos ossos fossilizados, em imagens de galáxias distantes, em quadros de dados estatísticos, ou nos escritos de várias tradições humanas.
O compromisso com a verdade fundamenta a ciência moderna. Ela da vida e compreender a história da própria humanidade.
O outro compromisso básico das pessoas seculares é com a compaixão. A ética secular baseia-se não em obedecer aos preceitos deste ou daquele deus, e sim em uma profunda apreciação do sofrimento.
Por exemplo, pessoas seculares abstêm-se de assassinar não porque algum livro antigo proíbe, mas porque o ato de matar inflige imenso sofrimento a seres sencientes. Existe algo profundamente perturbador e perigoso no que tange a pessoas que evitam matar só porque “Deus diz assim”. São pessoas motivadas mais por obediência do que por compaixão. O que farão elas se vierem a acreditar que seu deus lhes ordena que matem hereges, bruxas, adúlteros ou estrangeiros?
Quanto à crítica contumaz de evangélicos aos ateus ou seculares por supostamente serem incestuosos sem limites? A evolução modelou a psique do Sapiens de tal maneira que ligações românticas não se mesclam bem com ligações parentais. Portanto, você não precisa da Bíblia para se opor ao incesto — basta ler os estudos psicológicos relevantes.
Essa é a razão profunda de as pessoas seculares prezarem a verdade científica. Não para satisfazer sua curiosidade, mas para saber como reduzir o sofrimento no mundo. Sem a orientação dos estudos científicos, nossa compaixão muitas vezes é cega.
Esses compromissos gêmeos com a verdade e com a compaixão também resultam num compromisso com a igualdade. Embora opiniões difiram quanto a questões de igualdade econômica e política, pessoas seculares são fundamentalmente suspeitosas de todas as hierarquias anteriores.
Sofrimento é sofrimento, não importa quem o experimente; e conhecimento é conhecimento, não importa quem o descobre. Privilegiar as experiências ou as descobertas de uma determinada nação, classe ou gênero é como nos tornar insensíveis e ignorantes.
Pessoas seculares certamente se orgulham da singularidade de sua nação, de seu país e de sua cultura — mas elas não confundem “singularidade” com “superioridade”. Daí que apesar de as pessoas seculares terem consciência de seus deveres especiais para com sua nação e seu país, não acham que esses deveres são exclusivos, e, ao mesmo tempo, têm consciência de seus deveres para com a humanidade como um todo.
Não seremos capazes de buscar a verdade e uma saída para o sofrimento sem a liberdade de pensar, investigar e experimentar. Por isso as pessoas seculares acalentam a liberdade e evitam atribuir autoridade suprema a qualquer texto, instituição ou líder como juiz definitivo do que é verdade e do que é correto.
Humanos deveriam ter sempre a liberdade de duvidar, de verificar novamente, de ouvir uma segunda opinião, de tentar um caminho diferente. Pessoas seculares admiram Galileu Galilei, que ousou questionar se a Terra de fato está imóvel e no centro do universo; elas admiram as massas de pessoas comuns que atacaram a Bastilha em 1789 e derrubaram o regime despótico de Luís XVI; e admiram Rosa Parks, que teve a coragem de se sentar num lugar do ônibus reservado a passageiros brancos.
É preciso muita coragem para combater preconceitos e regimes opressivos, mas é preciso ainda mais coragem para admitir ignorância e se aventurar no desconhecido. A educação secular nos ensina que se não sabemos algo, não deveríamos ter medo de reconhecer nossa ignorância e de buscar nova evidência.
Mesmo se acharmos que sabemos alguma coisa, não deveríamos ter medo de duvidar de nossas opiniões e nos questionar. Muita gente tem medo do desconhecido, e quer uma resposta clara para cada pergunta. Medo do desconhecido pode nos paralisar mais que qualquer tirano.
Ao longo da história havia a preocupação de que, a menos que puséssemos nossa fé em algum conjunto de respostas absolutas, a sociedade humana ia desmoronar. Na verdade, a história moderna demonstrou que uma sociedade de pessoas corajosas dispostas a admitir sua ignorância e fazer perguntas difíceis geralmente não é apenas mais próspera como também mais pacífica do que sociedades nas quais todos têm de aceitar uma única resposta sem questionar.
Pessoas temerosas de perder sua verdade são propensas a ser mais violentas do que pessoas acostumadas a olhar para o mundo de diferentes pontos de vista. Perguntas às quais você não é capaz de responder são geralmente muito melhores para você do que respostas que você não é capaz de questionar.
Por fim, pessoas seculares prezam a responsabilidade. Não acreditam em nenhum poder superior que toma conta do mundo, pune os malvados, recompensa os justos e nos protege da fome, da peste ou da guerra.
Por isso nós, mortais de carne e osso, temos de assumir total responsabilidade por tudo o que fazemos — ou deixamos de fazer. Se o mundo está cheio de miséria, é nosso dever encontrar soluções.
Pessoas seculares orgulham-se das imensas conquistas das sociedades modernas, como curar epidemias, alimentar os famintos e trazer paz a grandes partes do mundo. Não precisamos creditar essas conquistas a nenhum protetor divino — elas resultaram de os humanos desenvolverem seu próprio conhecimento e sua compaixão.
Mas, exatamente pela mesma razão, precisamos assumir responsabilidade total pelos crimes e falhas da modernidade, do genocídio à degradação ecológica. Em vez de rezar por milagres, precisamos perguntar o que podemos fazer para ajudar.
Esses são os valores básicos do mundo secular. Como já observado, nenhum desses valores é exclusivamente secular. Judeus também dão valor à verdade, cristãos valorizam a compaixão, muçulmanos valorizam a igualdade, hindus dão valor à responsabilidade, e assim por diante.
Sociedades e instituições seculares ficam felizes de reconhecer essas conexões e de acolher religiosos judeus, cristãos, muçulmanos e hindus, contanto que quando o código secular colidir com a doutrina religiosa, esta deve abrir passagem. Por exemplo, para judeus ortodoxos serem aceitos na sociedade secular espera-se que tratem não judeus como iguais, cristãos deveriam evitar queimar hereges na estaca, muçulmanos teriam de respeitar a liberdade de expressão e hindus precisariam abolir a discriminação das castas.
Em contraste, não se espera que pessoas religiosas neguem a existência de Deus ou abandonem ritos e rituais tradicionais. O mundo secular julga as pessoas com base em seu comportamento, e não em suas roupas e cerimônias favoritas.
Uma pessoa pode seguir o mais bizarro código sectário de vestimenta e praticar as mais estranhas cerimônias religiosas e ainda assim agir de acordo com os valores centrais do secularismo. Há muitos cientistas judeus, ambientalistas cristãos, feministas muçulmanos e ativistas de direitos humanos hindus. Se forem leais à verdade científica, à compaixão, à igualdade e à liberdade, são membros integrais do mundo secular, e não há nenhum motivo para solicitar que tirem seus solidéus, suas cruzes, seus hijabs ou tilakas.
Da mesma maneira, educação secular não quer dizer uma doutrinação negativa, que ensina crianças a não acreditar em Deus e a não participar de quaisquer cerimônias religiosas. E sim, a educação secular ensina as crianças a:
- distinguir verdade de crença;
- desenvolver sua compaixão por todos os seres que sofrem;
- apreciar a sabedoria e as experiências de todos os habitantes da Terra; a pensar livremente sem temer o desconhecido;
- assumir responsabilidade por suas ações e pelo mundo como um todo.
Valores Básicos do Mundo Secular publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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