Yuval Noah Harari, no livro “21 lições para o século 21” (São Paulo: Companhia das Letras; 2017), afirma: até agora, ideologias modernas, cientistas e governos nacionais não conseguiram criar uma visão viável para o futuro da humanidade.
Será essa visão possível de ser obtida nos profundos poços das tradições religiosas? Talvez a resposta esteja esperando por nós desde sempre nas páginas da Bíblia, do Corão ou dos Vedas.
As pessoas seculares provavelmente reagirão a essa ideia com ironia ou apreensão. As escrituras sagradas podem ter sido relevantes na Idade Média, mas como poderão nos guiar na era da inteligência artificial, da bioengenharia, do aquecimento global e da guerra cibernética?
Mas as pessoas seculares são minoria. Bilhões de humanos ainda professam maior fé no Corão e na Bíblia do que na teoria da evolução; movimentos religiosos moldam as políticas de países tão diversos como a Índia, a Turquia e os Estados Unidos; e animosidades religiosas alimentam conflitos da Nigéria às Filipinas.
Então, quão relevantes são religiões como o cristianismo, o islamismo e o hinduísmo? Serão capazes de nos ajudar a resolver os problemas que enfrentamos? Para entender o papel de religiões tradicionais no mundo do século XXI, precisamos distinguir três tipos de problemas:
- Problemas técnicos. Por exemplo, como agricultores em países áridos lidarão com secas severas causadas pelo aquecimento global?
- Problemas políticos. Por exemplo, quais as primeiras medidas que os governos deveriam adotar para impedir o aquecimento global?
- Problemas identitários. Por exemplo, deveria eu me preocupar com os problemas de agricultores no outro lado do mundo, ou só devo me preocupar com os problemas de pessoas de minha própria tribo e meu próprio país?
Como Harari mostra em seu livro “21 lições para o século 21”, as religiões tradicionais são em grande parte irrelevantes para problemas técnicos e políticos. Em contraste, são extremamente relevantes para problemas identitários — mas na maioria dos casos são parte principal do problema, e não uma possível solução.
Deus existe? Isso depende de que Deus se tem em mente. O mistério cósmico ou o legislador do mundo?
Às vezes, quando as pessoas falam de Deus, elas estão falando de um enigma espantoso, sobre o qual não sabemos absolutamente nada. Invocamos esse Deus misterioso para explicar as mais profundas charadas do cosmos. Por que existe algo, em vez de nada? O que moldou as leis fundamentais da física? O que é a consciência, e de onde ela vem?
Não temos resposta para essas perguntas. Damos à nossa ignorância o grandioso nome de Deus.
Sua característica mais fundamental é que não somos capazes de dizer algo concreto sobre Ele. Esse é o Deus dos filósofos; o Deus que mencionamos quando estamos sentados em torno de uma fogueira tarde da noite tentando compreender o sentido da vida.
O mistério cósmico não nos ajuda em nada na preservação da ordem social. As pessoas muitas vezes alegam: temos de acreditar em um deus de modo a dar aos humanos algumas leis muito concretas, se não a moralidade vai desaparecer e a sociedade desmoronar em um caos.
Certamente, a crença em deuses foi vital para várias ordens sociais. Às vezes teve consequências positivas. De fato, a mesma religião que inspira ódio e intolerância em algumas pessoas inspira amor e compaixão em outras.
Embora deuses possam nos inspirar a agir com compaixão, a fé religiosa não é condição necessária para o comportamento moral. A ideia de que precisamos de um ser sobrenatural que nos faça agir moralmente pressupõe que existe algo sobrenatural na moralidade. Mas por quê?
A moralidade, de qualquer tipo, é natural. Todos os mamíferos sociais, de chimpanzés a ratos, têm códigos éticos que limitam coisas como roubo e assassinato. Entre humanos, a moralidade está presente em todas as sociedades, apesar de nem todas acreditarem no mesmo deus, ou em qualquer deus.
Os cristãos agem com caridade mesmo sem acreditar no panteão hindu. Os muçulmanos dão valor à honestidade apesar de rejeitar a divindade de Cristo, e países seculares como a Dinamarca e a República Tcheca não são mais violentas do que países devotos como o Irã e o Paquistão.
Moralidade não quer dizer “cumprir os mandamentos divinos”. Quer dizer “diminuir o sofrimento”. Daí que, para agir moralmente, não é preciso acreditar em nenhum mito ou narrativa. Só é necessário desenvolver uma profunda noção do que é sofrimento.
Se você souber que uma ação causa um sofrimento desnecessário a você e a outros, você naturalmente se absterá de empreendê-la. Assim mesmo, pessoas assassinam, estupram e roubam porque só têm uma noção superficial da infelicidade que isso causa. Estão obcecadas em satisfazer sua paixão ou ganância imediatas, sem se preocupar com o impacto sobre os outros — ou mesmo o impacto sobre elas mesmas a longo prazo.
Até mesmo inquisidores ou torturadores, que deliberadamente infligem o máximo de sofrimento possível em sua vítima, usam técnicas variadas de dessensibilização e desumanização para se distanciarem daquilo que estão fazendo.
Poder-se-ia objetar que todo humano naturalmente busca evitar sentir-se um miserável, mas por que deveria um humano importar-se com a miséria dos outros, a menos que algum deus exija isso? Uma resposta óbvia é que os humanos são animais sociais, e daí que sua felicidade depende em grande medida de seus relacionamentos com outros.
Sem amor, amizade e comunidade, quem poderia ser feliz? Se você vive uma vida solitária e centrada em você mesmo, é quase certo que se sentirá um miserável. Assim, no mínimo, para ser feliz você precisa se importar com sua família, seus amigos e os membros de sua comunidade.
E quanto, então, a quem é totalmente estranho? Por que não os assassinar e tomar suas posses para enriquecer a mim e a minha tribo?
Muitos pensadores construíram complexas teorias sociais, explicando por que no longo prazo esse comportamento é contraproducente. Você não gostaria de viver em uma sociedade onde estranhos são rotineiramente roubados e assassinados. Não só porque você estaria em perigo como porque perderia o benefício de coisas como comércio, que depende de haver confiança entre estranhos.
Comerciantes normalmente não frequentam antros de ladrões. É por isso que teóricos seculares da antiga China à moderna Europa têm justificado a regra de ouro que diz “não faça aos outros o que não quer que façam a você”.
Mas na verdade não precisamos dessas teorias todas para encontrar um fundamento natural para a compaixão. Esqueça o comércio por um momento. Em um nível muito mais imediato, ferir os outros fere a mim também.
Todo ato violento no mundo começa com um desejo violento de alguém, o que perturba a paz e a felicidade da própria pessoa antes de perturbar a paz e a felicidade de qualquer outra. Assim, raramente alguém rouba a menos que tenha primeiro desenvolvido muita ganância e inveja.
Pessoas normalmente não assassinam, a menos que primeiro tenham alimentado raiva e ódio. Emoções como ganância, inveja, raiva e ódio são muito desagradáveis. Não se pode ter alegria e harmonia quando se está espumando de raiva ou inveja. Daí que antes que você assassine alguém, sua raiva já matou sua própria paz de espírito.
“Não frequentar templos e não acreditar em nenhum deus também é uma opção viável. Como provaram os séculos recentes, não precisamos invocar o nome de Deus para viver uma vida de moralidade. O secularismo pode nos prover de todos os valores dos quais precisamos.”
Religião: Deus agora serve à Nação publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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