Yuval Noah Harari, no livro “21 lições para o século 21” (São Paulo: Companhia das Letras; 2017), pergunta: se não pudermos deixar algo tangível — como um gene ou um poema —, quem sabe seria suficiente apenas tornar o mundo um pouco melhor?
Você pode ajudar alguém, e essa pessoa poderá ajudar outra, e você terá contribuído, portanto, para a melhora geral do mundo, e acrescentar uma pequena conexão na grande corrente da bondade. Quem sabe você sirva como tutor de uma criança difícil mas brilhante, que ainda será um médico que salva centenas de pessoas? E se ajudar uma senhora idosa a atravessar a rua e alegrar uma hora de sua vida?
Embora tenha seus méritos, a grande corrente da bondade está longe de ser claro de onde vem seu sentido. Perguntaram a um homem idoso e sábio o que tinha aprendido sobre o sentido da vida. “Bem”, ele respondeu, “aprendi que estou aqui na Terra para ajudar outras pessoas. O que ainda não descobri é por que as outras pessoas estão aqui.”
Para os que não confiam em grandes correntes, legados futuros ou epopeias coletivas, talvez a narrativa mais segura e parcimoniosa para qual podem se voltar é o romance. Ele não busca ir além do aqui e agora. Inúmeros poemas de amor atestam que quando você está amando, o universo inteiro se reduz ao lóbulo, o cílio ou o mamilo da pessoa amada. Ao se conectar com um único corpo aqui e agora, você se sente conectado com todo o cosmos.
Na verdade, a pessoa que você ama é apenas outro humano, não diferente em essência das multidões que você ignora todo dia. Mas, para você, ele ou ela parece infinito, e você está feliz em se perder nesse infinito.
Poetas místicos de todas as tradições frequentemente confundem amor romântico com união cósmica, escrevendo sobre Deus como um amante. Poetas românticos retribuem o cumprimento escrevendo sobre suas pessoas amadas como se fossem deuses. Se você está realmente apaixonado por uma pessoa, não se preocupa com o sentido da vida.
E se não estiver apaixonado? Bem, se você acredita na narrativa romântica, mas não está apaixonado, pelo menos sabe qual é o objetivo de sua vida: encontrar o verdadeiro amor.
Você viu isso em inúmeros filmes e leu sobre isso em inúmeros livros. Sabe que um dia vai conhecer esse alguém especial, verá o infinito em dois olhos brilhantes, sua vida inteira subitamente fará sentido, e todas as perguntas que sempre fez serão respondidas ao repetir um nome mais e mais uma vez.
Ainda que uma boa narrativa tenha de atribuir a mim um papel, e se estender além de meu horizonte, ela não precisa ser verdadeira. Uma história pode ser pura ficção e ainda assim prover-me de uma identidade e fazer-me sentir que minha vida tem sentido.
De fato, até onde vai nosso melhor entendimento científico, nenhuma dos milhares de narrativas que diferentes culturas, religiões e tribos inventaram ao longo da história é verdadeira. São todas apenas invenções humanas.
Se você perguntar qual é o verdadeiro sentido da vida e obter como resposta uma narrativa, saiba que esta é a resposta errada. Os detalhes precisos não têm importância. Toda história está errada, simplesmente por ser uma história. O universo não funciona como uma história.
Assim, por que pessoas acreditam nessas ficções? Um motivo é que sua identidade está construída com base em uma narrativa.
As pessoas são ensinadas a acreditar nessa narrativa desde a mais tenra infância. Elas a ouvem de seus pais, seus professores, seus vizinhos e da cultura geral antes de terem desenvolvido a independência intelectual e emocional necessária para questionar e verificar essas narrativas.
Quando seu intelecto amadurece, estão tão pesadamente imbuídas da narrativa que é muito mais provável usarem seu intelecto para racionalizá-la do que para duvidar dela. A maioria das pessoas que vão em busca de uma identidade são como crianças em uma caça ao tesouro. Só descobrem o que seus pais esconderam.
Segundo, não somente nossas identidades pessoais como também nossas instituições coletivas estão embutidas na narrativa. Consequentemente, é muito assustador duvidar dela.
Em muitas sociedades, quem tenta fazer isso é banido ou perseguido. Mesmo se não, é preciso ter nervos fortes para questionar a própria tessitura da sociedade. Porque se realmente a história for falsa, então todo o mundo, como o conhecemos, não faz sentido. Leis do Estado, normas sociais, instituições econômicas — tudo pode desmoronar.
A maior parte das narrativas é mantida junta pelo peso de seu telhado e não pela solidez de suas fundações. Considere a narrativa cristã. Tem a mais frágil das fundações. Que evidência temos de que o filho do Criador de todo o universo nasceu na forma de uma vida à base de carbono, em algum lugar da Via Láctea cerca de 2 mil anos atrás? Que evidência temos de que isso aconteceu na Galileia, e que Sua mãe era virgem?
No entanto, instituições enormes foram construídas sobre essa narrativa, e seu peso pressiona com tamanha força que elas mantêm essa história no lugar. Guerras inteiras foram travadas pela mudança de uma única palavra na narrativa. O cisma de mil anos entre os cristãos ocidentais e os cristãos ortodoxos do leste, que se manifestou recentemente na carnificina mútua de croatas por sérvios e de sérvios por croatas, começou devido a uma única palavra, filioque (“e do filho” em latim). Os cristãos do Ocidente queriam introduzir essa palavra na profissão de fé cristã, enquanto os cristãos do Oriente se opunham veementemente. (As implicações teológicas do acréscimo dessa palavra são tão enigmáticas que seria impossível explicá-las aqui de algum modo significativo. Se está curioso, pergunte ao Google.)
Quando identidades pessoais e sistemas sociais são construídos sobre uma narrativa, torna-se impensável duvidar dela, não devido a uma evidência que a sustenta, mas porque seu colapso desencadearia um cataclismo pessoal e social. Na história, o telhado é às vezes mais importante que as fundações.
Mito: Deixar como Herança uma Marca Pessoal no Mundo publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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