Yuval Noah Harari, no livro “21 lições para o século 21” (São Paulo: Companhia das Letras; 2017), examina alguns dos problemas e desenvolvimentos mais importantes da era atual, desde o exagero midiático em torno da ameaça de terrorismo até a subapreciada ameaça de disrupção tecnológica. Se você ficou com a sensação perturbadora de que é demais, e se acha incapaz alguém processar tudo isso, você está absolutamente certo. Ninguém é.
Nos séculos recentes, o pensamento liberal depositou uma confiança imensa no indivíduo racional. Ele descrevia indivíduos humanos como agentes racionais independentes, e fez dessas criaturas míticas a base da sociedade moderna. A democracia fundamenta-se na ideia de:
- o eleitor sabe o que é melhor,
- o livre mercado capitalista acredita que o cliente tem sempre razão, e
- a educação liberal ensina os estudantes a pensarem por si mesmos.
No entanto, é um erro depositar tanta confiança no indivíduo racional. Pensadores pós-coloniais e feministas destacaram que esse “indivíduo racional” pode muito bem ser uma fantasia chauvinista ocidental, glorificando a autonomia e o poder de homens brancos de classe alta.
Como observado por Harari, anteriormente, economistas comportamentais [eu! eu! eu! ] e psicólogos evolucionistas demonstraram a maioria das decisões humanas ser baseada em reações emocionais e atalhos heurísticos e não em análise racional. Enquanto nossas emoções e nossa heurística talvez fossem adequadas para lidar com a vida na Idade da Pedra, são lamentavelmente inadequadas na Idade do Silício.
Não só a racionalidade, a individualidade também é um mito. Humanos raramente pensam por si mesmos. E sim, pensamos em grupos. Assim como é preciso uma tribo para criar uma criança, é preciso uma tribo para inventar uma ferramenta, resolver um conflito ou curar uma doença.
Nenhum indivíduo sabe tudo o que é preciso para construir uma catedral, uma bomba atômica ou uma aeronave. O que deu ao Homo sapiens uma vantagem em relação a todos os outros animais e nos tornou os senhores do planeta não foi nossa racionalidade individual, mas nossa incomparável capacidade de pensar juntos em grandes grupos.
[Fernando Nogueira da Costa: os pesquisadores de Física Social descobriram os grupos de pessoas, assim como comunidades, também possuem uma inteligência coletiva diferente – muitas vezes superior – da inteligência individual de cada membro do grupo. Os fatores, cuja maioria das pessoas geralmente considera como impulsionadores do desempenho do grupo, ou seja, coesão, motivação e satisfação, não são estatisticamente significativos. O maior fator na previsão da inteligência de grupo foi a igualdade de tomada de turnos conversacionais. Grupos onde algumas pessoas dominavam a conversa eram menos coletivamente inteligentes em comparação àqueles com uma distribuição mais igual de conversação.]
Indivíduos humanos, constrangedoramente, pouco sabem sobre o mundo. À medida que a história avançava, sabiam cada vez menos.
Nós pensamos que hoje sabemos muito mais, mas como indivíduos na verdade sabemos muito menos. Baseamo-nos na expertise de outros para quase todas as nossas necessidades.
A “ilusão do conhecimento” ocorre quando pensamos sabermos muito, mesmo quando individualmente sabemos muito pouco, porque tratamos o conhecimento dos outros como se fosse nosso. Isso não é necessariamente ruim.
Nossa confiança no pensamento de grupo nos fez senhores do mundo, e a ilusão do conhecimento nos permite atravessar a vida sem cairmos em um esforço impossível para compreender tudo por nós mesmos. De uma perspectiva evolutiva, confiar no conhecimento de outros funcionou extremamente bem para o Homo sapiens.
Mas, assim como outros traços humanos que faziam sentido em Eras passadas, mas causam problemas na Era moderna, a ilusão do conhecimento tem suas desvantagens. O mundo está ficando cada vez mais complexo, e as pessoas não se dão conta de quão ignorantes são.
Consequentemente, algumas que não sabem quase nada de meteorologia ou biologia propõem assim mesmo políticas concernentes à mudança climática e a plantas geneticamente modificadas, enquanto outras mantêm opiniões muito firmes quanto ao que deveria ser feito no Iraque ou na Ucrânia, sem serem capazes de localizar esses países no mapa.
Pessoas raramente contemplam sua ignorância, porque se fecham em uma câmara de eco com amigos do uotzap ou do feicebuque que pensam como eles e com feeds de notícias que se autoconfirmam – viés de auto validação ilusória –, fazendo com que suas crenças sejam constantemente reiteradas e raramente desafiadas.
É improvável simplesmente oferecer às pessoas mais informações melhore a situação. Cientistas esperam poder dissipar concepções equivocadas com educação científica. Especialistas esperam influir na opinião pública em questões mais complexas apresentando ao público fatos precisos e relatórios de especialistas.
Essas esperanças baseiam-se em uma compreensão equivocada de como os humanos efetivamente pensam. A maior parte de nossas opiniões é formada por pensamento comunitário e não em racionalidade individual. Adotamos essas opiniões por lealdade ao grupo.
Bombardear pessoas com fatos e expor sua ignorância individual provavelmente será um tiro pela culatra. A maioria das pessoas não gosta de dados demais, e certamente não gosta de se sentir idiota. Não esteja certo de que pode convencer os que apoiam o Tea Party de que o aquecimento global é um fato apresentando-lhes planilhas e estatísticas.
O poder do pensamento de grupo é tão penetrante que é difícil se livrar dele mesmo quando parece ser bastante arbitrário. Assim, conservadores de direita tendem a se incomodar muito menos do que progressistas de esquerda com coisas como poluição e espécies ameaçadas de extinção, motivo pelo qual um lugar atrasado em termos culturais (“provinciano ou barrista”) tem regulamentos ambientais muito menos rigorosos do que um lugar avançado em termos universitários e/ou científicos.
Estamos acostumados com essa situação, por isso a achamos natural, mas na realidade ela é bem surpreendente. Poderíamos pensar que os conservadores se importariam muito mais com a conservação da velha ordem ecológica e com a proteção de suas terras, florestas e rios ancestrais. Em contraste, poderíamos esperar que os progressistas estivessem muito mais abertos a mudanças radicais no campo, especialmente se elas visam a acelerar o progresso e melhorar o padrão da vida humana.
Contudo, como as posições políticas quanto a essas questões foram estabelecidas por vários acasos históricos, tornou-se uma segunda natureza dos conservadores ignorar preocupações ambientais, enquanto progressistas de esquerda tendem a temer qualquer ruptura da antiga ordem ecológica.
Nem mesmo os cientistas são imunes ao poder do pensamento de grupo. Assim, cientistas que acreditam que fatos podem mudar a opinião pública podem ser vítimas de pensamento de grupo científico. A comunidade científica se baseia na eficácia dos fatos, daí que os que são leais a essa comunidade creem que podem vencer debates públicos despejando dados, apesar de haver muita evidência empírica do contrário.
Da mesma forma, a crença na racionalidade individual pode ser produto de um pensamento de grupo.
Em um dos momentos climáticos do filme A vida de Brian, do Monty Python, uma enorme multidão de seguidores esperançosos e ingênuos confunde Brian com o Messias. Brian diz a seus discípulos que “vocês não precisam me seguir, vocês não precisam seguir ninguém! Vocês têm de pensar por si mesmos! Vocês são indivíduos! Todos vocês são diferentes!”. A multidão entusiasmada entoa em uníssono: “Sim! Somos todos diferentes!”. O Monty Python estava parodiando a contracultura ortodoxa da década de 1960, mas a questão ali pode ser a crença no individualismo racional. As democracias modernas estão cheias de multidões gritando em uníssono: “Sim, o eleitor sabe o que é melhor! Sim, o cliente tem sempre razão!”.
O problema do pensamento de grupo e da ignorância individual envolve não apenas eleitores e clientes comuns, mas também presidentes e CEOs. Eles podem ter a sua disposição agências de inteligência e muitos conselheiros, mas isso não faz necessariamente com que as coisas fiquem melhores.
É muito difícil descobrir a verdade quando você está governando o mundo. Você simplesmente está ocupado demais. A maioria dos líderes políticos e grandes empresários estão eternamente atarefados. Se você quiser se aprofundar em qualquer assunto, vai precisar de muito tempo e, principalmente, do privilégio de poder desperdiçar tempo.
Terá de experimentar caminhos improdutivos, explorar becos sem saída, abrir espaço para as dúvidas e o tédio e permitir que pequenas sementes de ideias cresçam lentamente e floresçam. Se você não pode se dar ao luxo de perder tempo, nunca encontrará a verdade.
Pior ainda, as grandes potências quase sempre distorcem a verdade. Poder diz respeito a mudar a realidade e não a enxergá-la como ela é. Quando você tem em mãos um martelo, tudo parece prego, e quando tem um grande poder nas mãos, tudo parece um convite para se intrometer. Mesmo que de algum modo você supere esse impulso, as pessoas a sua volta nunca se esquecerão do martelo gigante nas suas mãos.
Quem quer que fale com você terá sua própria agenda, e por isso você nunca poderá acreditar totalmente no que dizem. Nenhum sultão poderá jamais confiar que seus cortesãos e subalternos estão lhe dizendo a verdade.
[Fernando Nogueira da Costa: vi essa “mosca verde” picar gente próxima, quando estive no Poder Executivo, isto é, na vice-presidência de um banco público. Se a pessoa se rodeia de “puxa-sacos”, ela acaba se achando imune e impune. Quando pergunta aos assessores algo, eles só dizem: – “O senhor é quem sabe. Faça o que quiser”. Ninguém lhe diz: – “Não, não faça esta besteira que está pensando!”. Por isso, o culto à personalidade acompanhado da nomenclatura (nomeação de amigos) é um equívoco. Infelizmente, a esquerda tem dificuldade em reconhecer esses erros recorrentes.]
Assim, um grande poder atua como um buraco negro e deforma o próprio espaço a sua volta. Quanto mais próximo você estiver do centro do poder local, mais distorcido torna-se tudo. Cada palavra ganha um peso extra ao entrar em sua órbita. Cada pessoa tenta bajular, agradar ou obter alguma coisa de você. Elas sabem você não poder lhes conceder mais de um minuto ou dois, e temem dizer algo impróprio ou confuso, por isso acabam por se limitar a lemas vazios ou aos maiores clichês.
Os líderes ficam presos em um dilema. Se permanecerem no centro do poder, terão uma visão extremamente distorcida da vida. Se se aventurarem nas margens, desperdiçarão seu precioso tempo.
O problema só vai ficar pior. Nas próximas décadas o mundo será ainda mais complexo do que é hoje. Consequentemente, indivíduos humanos — sejam peões ou reis — saberão ainda menos sobre as engenhocas tecnológicas, as correntes econômicas e as dinâmicas políticas que dão forma ao mundo.
Como observou Sócrates há mais de 2 mil anos, o melhor que podemos fazer nessas condições é reconhecer nossa própria ignorância individual.
Mas e quanto à moralidade e à justiça? Se não somos capazes de compreender o mundo, como podemos esperar saber qual é a diferença entre o certo e o errado, entre a justiça e a injustiça?
Ignorância: você sabe menos de o que pensa que sabe publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário