Yuval Noah Harari, no livro “21 lições para o século 21” (São Paulo: Companhia das Letras; 2017), comenta: ao contemplar a quantidade de narrativas capazes de definir minha verdadeira identidade e dar sentido a minhas ações, é impressionante constatar sua escala ter pouca importância. Algumas narrativas, como a do Ciclo da Vida, parecem estender-se até a eternidade. É somente contra o pano de fundo do universo inteiro está a possibilidade de saber quem sou. Outras narrativas, como a maioria dos mitos nacionalistas e tribais, são minúsculas, em comparação.
O sionismo consagra as aventuras de cerca de 0,2% do gênero humano em 0,005% da superfície da Terra, durante uma pequeníssima fração da duração do tempo. A narrativa científica informa: eternidade quer dizer no mínimo 13,8 bilhões de anos — a idade atual do universo. O planeta Terra foi formado há cerca de 4,5 bilhões de anos. Os humanos existem há pelo menos 2 milhões de anos. Em contraste, a cidade de Jerusalém só foi estabelecida 5 mil anos atrás, e o povo judeu tem no máximo 3 mil anos de existência. Isso dificilmente se qualifica como “eternidade”.
Quanto ao futuro, a Física nos sugere: o planeta Terra será absorvido por um Sol em expansão dentro de cerca de 7,5 bilhões de anos. Nosso universo continuará a existir por pelo menos mais 13 bilhões de anos. Sendo essa narrativa verdadeira, alguém acredita seriamente na possibilidade de algum povo humano, o Estado ou uma cidade ainda existir dentro de 13 mil anos? E o que dizer daqui a 13 bilhões de anos?
Olhando para o futuro – e levando em conta o passado –, qualquer nacionalismo tem um horizonte que não passa de alguns séculos, mas é suficiente para exaurir a imaginação da maioria dos nacionalistas e de algum modo ser qualificado como “eternidade”.
É igualmente improvável haver os mesmos povos dentro de 200 milhões de anos. Na verdade, provavelmente tampouco haverá qualquer mamífero. Quaisquer movimentos nacionais têm a mesma estreiteza de mente e visão. O nacionalismo pouco se importa com os eventos na era jurássica, enquanto alguns nacionalistas acreditam um pequeno território é a única parte do cosmos realmente importante no grande esquema das coisas.
É claro ninguém — com toda a sua devoção ao perene Ciclo da Vida — contempla o fato de o animal humano não ser realmente eternos. Não leva em conta o que era o universo antes da evolução dos mamíferos, nem qual será o destino de sua amada pátria ou território, depois que os humanos matarem toda a natureza e cobrir tudo com asfalto e concreto. Isso tornará a vida totalmente sem significado?
Toda narrativa é incompleta. Assim, para poder construir uma identidade viável para mim mesmo e emprestar sentido a minha vida, na realidade eu não preciso de uma narrativa completa desprovida de pontos cegos e contradições internas. Para dar sentido a minha vida, uma narrativa precisa satisfazer apenas duas condições: primeiro, tem de dar a mim algum papel a desempenhar. Não é provável um membro de um povo acreditar no nacionalismo, se a narrativa não tem nada a ver consigo. Assim como estrelas do cinema, os humanos só gostam dos roteiros que reservam papéis importantes para eles.
Segundo, uma boa narrativa, embora não precise se estender até o infinito, tem de se estender além de meus horizontes. A narrativa me provê de uma identidade e dá sentido a minha vida ao me incorporar a algo maior do que eu mesmo.
Mas sempre existe um perigo de que eu comece a me perguntar o que dá sentido a esse “algo maior”. Se o sentido de minha vida for ajudar o proletariado ou a nação, o que exatamente dá significado ao proletariado ou à nação?
A maioria das histórias bem-sucedidas não se fecha. Nunca precisam explicar de onde afinal vem o sentido, por serem tão boas em captar a atenção das pessoas e mantê-las em uma zona de segurança. Assim, ao explicar qualquer mito, você deve antecipar-se a quaisquer perguntas mais difíceis, descrevendo com grande detalhe o imaginário social em torno. Se você tecer uma narrativa boa o bastante, não ocorrerá a ninguém perguntar sobre o que, de fato, a história se apoia.
Da mesma forma, o nacionalismo encanta-nos com histórias de heroísmo, nos leva às lágrimas relatando catástrofes do passado e desencadeia nossa fúria detendo-se nas injustiças que nossa nação sofreu. Ficamos tão absorvidos nessa epopeia nacional que começamos a avaliar tudo o que acontece no mundo pelo impacto que causa em nossa nação, e dificilmente nos ocorre perguntar o que faz nossa nação ser tão importante, para começar.
Quando você acredita em uma determinada história, você se interessa por seus mínimos detalhes, ficando cego a tudo o que esteja fora desse escopo. Comunistas devotados podem passar incontáveis horas debatendo se é permitido fazer uma aliança com socialdemocratas nos estágios iniciais de uma revolução, mas raramente param para pensar sobre o lugar do proletariado na evolução da vida mamífera no planeta Terra, ou na disseminação de vida orgânica pelo cosmos. Uma conversa fiada dessas é considerada desperdício de fôlego revolucionário.
Embora algumas narrativas se deem ao trabalho de abranger a todo o espaço e o tempo, a capacidade de controlar a atenção permite que muitas outras narrativas de sucesso se mantenham em um escopo muito mais modesto. Uma lei crucial da arte de contar histórias é, contanto que a ela consiga estender-se além do horizonte de sua audiência, seu escopo total importa pouco.
As pessoas podem manifestar o mesmo fanatismo mortífero por uma nação de mil anos que manifestam por um deus de 1 bilhão de anos. As pessoas não são boas com números grandes. Na maioria dos casos, é preciso muito pouco para exaurir nossa imaginação.
Considerando tudo o que sabemos sobre o universo, parece impossível a qualquer pessoa mentalmente sã acreditar a verdade definitiva sobre o universo e a existência humana ser a narrativa do nacionalismo de algum povo — na verdade, do nacionalismo em geral. Uma narrativa que ignora quase a totalidade do tempo e do espaço, o Big Bang, a física quântica e a evolução da vida é no máximo uma minúscula parte da verdade. Mas as pessoas de algum modo conseguem não enxergar além disso.
Na verdade, bilhões de pessoas ao longo da história acreditaram: para suas vidas terem sentido elas nem mesmo precisam estar absorvidas em uma nação ou em um grande movimento ideológico. Basta dizer: “deixem alguma coisa após sua passagem”, assegurando-se com isso suas histórias pessoais continuarem após a morte.
Essa “alguma coisa” – uma marca no mundo – eu deixo após minha passagem. Ela é minha alma ou minha essência pessoal. Se eu vou renascer em um novo corpo após a morte de meu corpo atual, então a morte não é o fim. É meramente o espaço entre dois capítulos, e o enredo que começa em um capítulo vai continuar no próximo.
Muitas pessoas têm ao menos uma vaga fé nessa teoria, mesmo que não a baseiem em alguma teologia específica. Elas não precisam de um dogma elaborado — só precisam de um sentimento reconfortante de que sua narrativa continua além do horizonte da morte.
Essa teoria da vida como uma epopeia sem fim é extremamente atraente e comum, mas padece de dois problemas principais.
Primeiro, ao estender minha história pessoal eu não estou tornando-a de fato mais significativa, apenas mais longa. Na verdade, as duas grandes religiões que adotam a ideia do ciclo interminável de nascimento e morte — o hinduísmo e o budismo — compartilham o horror pela futilidade de tudo no cotidiano. Não é de admirar os sábios hindus e budistas terem concentrado grande parte de seus esforços em encontrar um meio de se livrar de um carrossel eterno – e não de perpetuá-lo.
O segundo problema com essa narrativa é a pobreza de evidência comprobatória. Que prova tenho de que na vida pregressa fui um tiranossauro rex ou uma ameba (se realmente vivi milhões de vidas, devo ter sido um dinossauro e uma ameba a certa altura, pois os humanos só existem nos últimos 2,5 milhões de anos)? Quem garante que no futuro vou renascer como um ciborgue, um explorador galáctico ou até mesmo um sapo? Não podemos basear nossa vida nessa promessa.
As pessoas com dúvida a respeito de algum tipo de alma ou espírito realmente sobreviver a sua morte, esforçam-se, por isso, para deixar alguma coisa um pouco mais tangível. Essa “coisa tangível” poderia tomar uma de duas formas: cultural ou biológica.
Posso deixar um poema, digamos, ou alguns de meus preciosos genes. Minha vida tem sentido porque as pessoas ainda vão ler meu poema daqui a cem anos, ou porque meus filhos e netos estarão por aí. E qual é o sentido da vida deles? Bem, isso é problema deles, não meu.
O sentido da vida é assim um pouco como brincar com uma granada. Uma vez a tendo passado para outra pessoa, você está seguro.
Infelizmente, essa modesta esperança de apenas “deixar alguma coisa” raramente se realiza. A maior parte dos organismos que já existiram se extingue sem deixar nenhuma herança genética. Tentativas de deixar algum legado cultural raramente são mais exitosas.
Identidade Pessoal ou Nacional publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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