terça-feira, 19 de março de 2019

Subdesenvolvimento da Cidadania Financeira

Luigi Zingales e Raghuram G Rajan, coautores do livro “Saving Capitalism From the Capitalists: Unleashing the Power of Financial Markets to Create Wealth and Spread Opportunity” (NYC-Índia: Collins Business, 2014), argumentam: para os fundamentos políticos do livre mercado se tornarem mais fortes, a sociedade precisa tornar-se mais consciente do quanto deve a eles.

O primeiro passo para montar uma defesa de mercados é criar consciência sobre seus verdadeiros benefícios e suas limitações. Como o sistema de livre mercado é muito fraco politicamente, as formas de capitalismo experimentadas em muitos países estão muito longe do ideal. Eles são uma versão corrompida, na qual interesses poderosos impedem a concorrência desempenhar seu papel natural e saudável.

Para defender os mercados livres contra seus críticos, portanto, temos de mostrar não só quanto de nossas vidas abundantes devemos a eles, mas também porque as paródias sombrias do capitalismo em boa parte da história recente ainda não são verdadeiramente representativas do empreendimento de livre mercado.

Além disso, tentaremos convencer o leitor de não sermos confrontados hoje com a escolha entre um socialismo corrupto ou um capitalismo corrupto, como foi o caso em grande parte da história do século XX. Existe um caminho melhor e está em grande parte ao nosso alcance.

Um grupo de mercados, os mercados financeiros, atraem ainda mais opróbrio do que outros. Poucos economistas treinados no mundo desenvolvido hoje seriam contra o livre mercado de bens e serviços, mas um número considerável ainda pode ser encontrado que se oporia aos mercados financeiros livres.

Não apenas os mercados financeiros são mais incompreendidos em relação aos outros mercados, eles também são mais importantes porque, como os coautores argumentam mais adiante, “os mercados financeiros livres são o elixir alimentador do processo de destruição criativa, rejuvenescendo continuamente o sistema capitalista. Como tal, eles também são o principal alvo dos poderosos interesses temerosos de mudança”. Em grande parte desse livro, portanto, eles se concentram nos mercados financeiros como o exemplo representativo.

Para montar uma defesa, no entanto, precisam saber “contra o que devemos nos defender. Então, vamos agora examinar o que o público acredita que os mercados financeiros e os financiadores fazem. Uma crença amplamente aceita é Wall Street ser um parasita sobrevivente à custa da Main Street”.

Por que as finanças são tão limitadas em uma economia sem infraestrutura financeira? Financiamento é a troca de uma soma de dinheiro hoje por uma promessa de devolver mais dinheiro no futuro. Não surpreendentemente, tal troca pode ser problemática.

Primeiro, mesmo o devedor mais honesto pode ser incapaz de cumprir sua promessa, devido à incerteza intrínseca em qualquer investimento. Assim, os financistas têm que assumir algum risco. Quando o risco envolvido é substancial e concentrado, torna-se difícil encontrar pessoas dispostas a suportá-lo.

Em segundo lugar, as promessas são difíceis de avaliar. As pessoas sem pretensão de mantê-las estão mais dispostas a prometer muito. Assim, a própria natureza da troca tende a favorecer os desonestos.

Finalmente, mesmo indivíduos com as melhores intenções podem ser tentados a se comportar de maneira oportunista quando têm dinheiro. Em uma economia sem a infraestrutura para mitigar esses problemas, o financiamento fica restrito aos poucos com conexões ou riquezas necessárias para tranquilizar os financiadores.

O financista pode prosperar simplesmente agindo como um porteiro. Como os coautores explicamos neste capítulo, o acesso limitado ao financiamento reduz severamente as escolhas dos cidadãos na determinação de como trabalham e vivem.

No próximo capítulo, explicam porque isso não precisa acontecer. Com a infraestrutura apropriada, os problemas intrínsecos descritos podem ser superados, de modo que o financiador possa ampliar o acesso a fundos e aumentar a liberdade econômica. E isso não é apenas pensamento utópico.

Como descrevem os coautores, “a revolução ocorrida nos mercados financeiros dos Estados Unidos nos últimos vinte anos já melhorou muito a liberdade econômica, colocando o ser humano, em vez do capital, no centro da atividade econômica. Tudo isso sugere quem deseja se opor ao livre acesso ao financiamento e às liberdades proporcionadas por ele, precisam se concentrar apenas em conter a infraestrutura institucional necessária para um mercado financeiro moderno. Os problemas intrínsecos ao financiamento farão o resto restringindo o acesso. Quando entendermos isso, estaremos prontos para embarcar no restante do livro”.

Acaso, ignorância ou malandragem – no jargão de economistas: incerteza, seleção adversa ou risco moral – podem intervir para impedir o financiamento ser pago. Os autores explicam rapidamente o porquê.

Poucos investimentos são perfeitamente seguros, normalmente há alguma incerteza sobre o sucesso deles. Para atrair fundos para empreendimentos arriscados, os indivíduos ou empresas os assumem prometendo a seus investidores um prêmio de risco em relação ao obtido em investimentos seguros.

Em um sistema financeiro desenvolvido, os financistas reduzem o prêmio exigido de um tomador de empréstimo, espalhando o risco amplamente sobre uma variedade de investidores ou alocando-o para aqueles investidores capazes de suportá-lo melhor. Como os financiadores de um sistema financeiro subdesenvolvido não têm a capacidade de distribuir o risco adequadamente, o prêmio de risco exigido por seus investidores é alto e o financiamento se torna extremamente custoso.

Os problemas causados ​​pela incerteza são exacerbados porque nem todas as pessoas são intrinsecamente honestas. Sem informações abrangentes sobre o histórico de crédito de um mutuário, é difícil para um financista saber a verdade a respeito do devedor desonesto. Mesmo se houver um padrão, não é fácil separar a má sorte da trapaça. Quando os desonestos são difíceis de identificar e punir, os financistas com informações limitadas novamente precisam recorrer à cobrança de taxas elevadas.

Há um limite, no entanto, para as taxas possíveis de um financista cobrar. Um problema enfrentado pelo financista é denominado seleção adversa. Os tomadores honestos com pretensão de pagar são muito sensíveis à taxa de juros. Eles esperam arcar com todo o ônus de pagar a alta taxa. Quanto mais alta a taxa, mais honestos os tomadores de empréstimo abandonarão o grupo de candidatos, percebendo o crédito não valer a pena pelos reembolsos elevados.

Em contrapartida, os mutuários sem a intenção de pagar se candidatarão ao crédito e permanecerão no grupo de candidatos, independentemente de quão alto seja a taxa. Em suma, quanto mais alta a taxa for aumentada, mais o pool de candidatos será “adversamente selecionado” para ser principalmente tomadores ruins.

Mas quanto maior a concentração de tomadores ruins, maior a taxa de juros deve cobrar  um financiador para se equilibrar à luz da maior taxa esperada de inadimplência. Este é um círculo vicioso. Quanto mais ele aumentar a taxa, mais o financeiro precisará aumentá-la, até o ponto quando todos os bons clientes são desencorajados a tomar empréstimos. Nesse ponto, o financista certamente não quer emprestar porque sabe os únicos clientes dispostos a tomar empréstimos são aqueles potenciais não pagadores!

Em suma, pode não haver taxa de juros possível de permitir os empréstimos serem lucrativos. Sendo assim, o financiador simplesmente nega crédito a candidatos sem um histórico de crédito sólido. Em um sistema subdesenvolvido, isso deixa uma grande fração da população sem qualquer acesso ao crédito.

Incerteza e desonestidade não são os únicos problemas enfrentados por um financista. Até um mutuário intrinsecamente honesto pode tomar medidas contrárias aos interesses do financiador – um fenômeno conhecido como risco moral – quando os termos do pagamento são mal estruturados.

Por exemplo, se os pagamentos se tornarem muito onerosos, o mutuário poderá ver a única maneira pela qual ele pode até mesmo esperar pagar o empréstimo ser assumir um risco maior. Esse “jogo pela ressurreição” pode ser contra os interesses do financiador, porque os projetos arriscados assumidos pelo mutuário podem ser desastrosos durante a maior parte do tempo.

“Em um sistema financeiro desenvolvido, o financiador tem a informação para saber quando os termos de financiamento do mutuário começam a criar incentivos perversos para o mutuário. Ele tem as habilidades para escrever o tipo certo de novos contratos e pode confiar em um sistema legal eficiente para ajudar a reestruturar os contratos antigos (uma tarefa não trivial quando um mutuário tem muitos financiadores) e fazer cumprir os novos. Em um sistema no qual as técnicas de projeto de contrato, renegociação de contratos e execução de contratos são subdesenvolvidas, é difícil fornecer aos tomadores os incentivos corretos durante todo o prazo do projeto, de modo tal os financiadores relutarem novamente em emprestar”.

Os financistas são acusados ​​de serem parasitas inúteis, mas temem porque têm muito poder. Neste capítulo, Luigi Zingales e Raghuram G Rajan tentaram explicar não haver contradição nessas crenças.

Na economia moderna, o acesso ao financiamento é vital. Quando o sistema financeiro está subdesenvolvido, um pequeno grupo de financistas pode controlar qualquer acesso limitado a crédito.

Ironicamente, quanto menos os financiadores fazem para ampliar o acesso, maior é o seu poder individual. Eles, portanto, fazem pouco mais além de “guardar os portões do templo” (seus bancos), impedindo todos cidadãos, exceto os ricos e os bem-relacionados, terem acesso.

Eles são realmente poderosos, mas o poder maior é o poder de negar, não conceder crédito. Assim, eles “relaxam e controlam e destroem a liberdade econômica genuína.”

Muitos dos males do capitalismo – a tirania do capital sobre o trabalho, a excessiva concentração de riqueza e/ou a desigual distribuição de renda em favor dos proprietários de capital, a relativa falta de oportunidade para os pobres – pode ser atribuída, em alguma medida, se não substancial, ao subdesenvolvimento das finanças.

Dito isto, os financiadores individuais em tal sistema não são pessoas particularmente desagradáveis. Eles só fazem o que é naturalmente demandado a eles, dadas as restrições impostas pelo sistema. Mesmo o desagradável Shylock (da peça teatral de Shakespeare, “Mercador de Veneza”), em busca de garantias (o colateral em um quilo de carne do devedor próximo ao coração), está apenas levando o contrato ao seu fim natural. Se os tribunais colocassem obstáculos em seu caminho, o crédito se tornaria ainda mais escasso.

Dada a infraestrutura institucional e judiciária certa, no entanto, os financiadores podem superar a tirania exigente de garantias e conexões – e tornar o crédito disponível até para os pobres. Eles se tornam um poder para o bem ao invés dos guardiões do status quo.

Subdesenvolvimento da Cidadania Financeira publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



Nenhum comentário:

Postar um comentário