sábado, 23 de março de 2019

Chris Anderson entrevista Yuval Noah Harari

Chris Anderson: Bem, estamos em Nova York para o primeiro de uma série de Diálogos TED, com Yuval Harari. Há um público no Facebook Live assistindo. Vamos iniciar as suas perguntas e as das pessoas no auditório em apenas alguns minutos, então continuem a enviá-las.

Se você argumentar “precisamos passar pelo nacionalismo por causa da vinda do perigo tecnológico”, devido a muito do que está acontecendo, temos de ter uma conversa global sobre isso. É difícil conseguir as pessoas realmente acreditarem a IA (Inteligência Artificial) ser mesmo uma ameaça iminente. Pelo menos algumas pessoas se importam muito mais agora com a mudança climática e outras questões como os refugiados, as armas nucleares, e assim por diante. De alguma forma, essas questões precisam ser tratadas? Você falou sobre a mudança climática, mas Trump disse não acreditar nisso. Então, de certa forma, seu argumento mais poderoso, não pode ser usado neste caso.

Yuval Noah Harari: A mudança climática, à primeira vista, é bastante surpreendente haver uma correlação muito estreita entre nacionalismo e mudanças climáticas. Quase sempre, quem nega mudanças climáticas é nacionalista. À primeira vista, você pensa: Por quê? Qual é a conexão? Por que não temos socialistas negando mudanças climáticas? Mas quando pensamos nisso, fica óbvio: porque o nacionalismo não tem uma solução para as mudanças climáticas.

Se você quer ser um nacionalista, no século 21, você nega o problema. Se aceitar a realidade do problema, então você deve aceitar, sim, ainda há espaço no mundo para o patriotismo, ainda há espaço no mundo para lealdades especiais e obrigações para com seu próprio povo, e para com seu próprio país. Ninguém realmente está pensando em abolir isso. Mas, para enfrentar a mudança climática, precisamos de lealdades e compromissos adicionais em um nível além da Nação. Isso não deve ser impossível, porque as pessoas podem ter várias camadas de lealdade. Você pode ser leal à sua família, à sua comunidade, e ao seu país, então, por que você não pode também ser leal à humanidade como um todo? É claro, há ocasiões quando fica difícil o que colocar em primeiro lugar, mas a vida é difícil. Lide com isso. (Risos)

Howard Morgan: Uma das coisas faz obviamente uma enorme diferença neste país, e em outros, é a desigualdade na distribuição de renda. Houve uma mudança dramática na distribuição de renda nos EUA em relação há 50 anos, e em todo o mundo. Há algo a fazer para mudar isso? Porque disso derivam muitos problemas.

YNH: Até agora não ouvi uma boa ideia sobre o que fazer sobre isso, novamente, em parte porque a maioria das ideias permanecem no nível nacional, e o problema é global. Uma ideia ouvida muito hoje é a renda básica universal. Mas este é um problema. É um bom começo de debate, mas é uma ideia problemática porque não está claro o que é “universal” e não está claro o que é “básico”. A maioria das pessoas, quando fala sobre renda básica universal, pensa em renda básica nacional. Mas o problema é global.

Vamos dizer que IA e impressoras 3D estão tirando milhões de postos de trabalho em Bangladesh, de todas as pessoas produtoras de minhas camisas e meus sapatos. O que vai acontecer? O governo dos EUA vai cobrar impostos do Google e da Apple na Califórnia, e usá-los para pagar uma renda básica aos bengaleses desempregados? Se você acredita nisso, pode muito bem acreditar que Papai Noel vai chegar e resolver o problema.

A menos que tenhamos renda básica realmente universal e não nacional, os problemas difíceis não vão desaparecer. E também não está claro o que básico significa, pois quais são as necessidades humanas básicas?

Mil anos atrás, alimento e abrigo eram suficientes. Mas hoje, as pessoas dirão que educação é uma necessidade humana básica, e deve ser parte do pacote. Mas quanto? Seis anos? Doze anos? PhD?

Da mesma forma, com assistência médica, vamos dizer que em 20, 30, 40 anos, você terá tratamentos caros que podem estender a vida humana para 120 anos, eu não sei. Será que isto vai fazer parte da cesta da renda básica ou não?

É um problema muito difícil, porque em um mundo onde as pessoas perdem sua empregabilidade, a única coisa a recorrer é a essa renda básica. Então, o que compõe essa cesta é uma questão ética muito difícil. Temos muitas perguntas sobre como o mundo pode bancá-la e, também, quem paga.

CA: Há uma pergunta aqui da Lisa Larson no Facebook: “Como é que o nacionalismo nos EUA hoje se compara àquele existente entre a Primeira e Segunda Guerra Mundiais?”

YNH: Bem, a boa notícia, no que diz respeito aos perigos do nacionalismo, é estarmos em uma posição muito melhor face há um século. Há um século, em 1917, os europeus estavam se matando aos milhões. Em 2016, com o Brexit, até onde me lembro, uma única pessoa morreu, um membro do parlamento assassinado por um extremista. Apenas uma única pessoa. Ou seja, se o Brexit era sobre a independência britânica, esta é a guerra de independência mais pacífica na história da humanidade.

Se agora a Escócia vá optar por deixar o Reino Unido, após o Brexit, assim como no século 18, quando os escoceses quiseram várias vezes, romper com o controle de Londres. Antes, a reação do governo em Londres era enviar um exército para o norte para queimar Edimburgo e massacrar as tribos das montanhas. Meu palpite é, se em 2018 os escoceses votarem pela independência, o governo de Londres não irá enviar um exército para o norte para queimar Edimburgo. Poucas pessoas estão agora dispostas a matar ou serem mortas pela independência escocesa ou britânica.

Então, para toda conversa sobre a ascensão do nacionalismo e volta à década de 1930, ao século 19, pelo menos no Ocidente, o poder dos sentimentos nacionalistas é hoje muito menor do que era há um século.

CA: Embora hoje algumas pessoas estejam mostrando preocupação de que isso possa estar mudando. Talvez possam realmente haver surtos de violência nos EUA dependendo de como as coisas ficarem. Deveríamos nos preocupar com isso, ou acha mesmo essas coisas terem mudado?

YNH: Devemos nos preocupar; devemos estar cientes de duas coisas. Antes de mais nada, não fique histérico. Ainda não voltamos à Primeira Guerra Mundial. Mas, por outro lado, não seja complacente. Vivemos de 1917 a 2017, não por algum milagre divino, mas simplesmente por decisões humanas, e se nós agora começarmos a tomar as decisões erradas, poderemos voltar a uma situação análoga a 1917 em poucos anos.

Uma das coisas que sei como historiador é: nunca devemos subestimar a estupidez humana. (Risos) É uma das forças mais poderosas na história, estupidez e violência humana. Os humanos fazem coisas muito malucas, sem nenhuma razão aparente, mas mais uma vez, ao mesmo tempo, outra força muito poderosa na história da humanidade é a sabedoria humana. Temos ambas.

CA: Temos aqui conosco o psicólogo moral Jonathan Haidt. Ele tem uma pergunta.

Jonathan Haidt: Obrigado, Yuval. Você parece ser fã da governança global, mas quando você olha para o mapa do mundo da Transparência Internacional, avaliando o nível de corrupção das instituições políticas, vê um vasto mar vermelho com pequenos pedaços amarelos aqui e ali para aqueles com boas instituições. Então, se pudéssemos ter algum tipo de governança global, o que o faz pensar o mundo ser mais parecido com a Dinamarca ao invés da Rússia ou Honduras? Não existem alternativas, tal como fizemos com as SECs? Há maneiras de resolver problemas globais com governos nacionais. Como seria um governo mundial, e por que ele funcionaria?

YNH: Bem, eu não sei como seria. Ninguém tem ainda um modelo para isso. A principal razão hoje é a demanda social: precisamos dele é porque em muitas destas questões todos perdem. Quando há uma situação como no comércio, em que todos ganham, ambos os lados podem se beneficiar de um acordo de comércio, então isso é algo a funcionar sem algum tipo de governo global, cada governo nacional tem seu interesse em fazê-lo. Mas quando há uma situação em que todos perdem, como a mudança climática, é muito mais difícil sem alguma autoridade abrangente, autoridade real.

Agora, como chegar lá e como seria esse governo, eu não sei. E, certamente, não há nenhuma razão óbvia para pensar: o mundo seria tal como a Dinamarca, ou seria uma socialdemocracia. O mais provável é não ser. Não temos modelos democráticos viáveis para um governo global. Então, talvez ele parecesse mais com a China antiga em lugar da Dinamarca moderna. Mas ainda assim, face aos perigos enfrentados, a urgência de termos algum tipo de capacidade real de impor decisões difíceis em um nível global é mais importante em vez de quase qualquer outra coisa.

CA: Há uma questão de Kat Hebron no Facebook, enviando de Vail: “Como as nações desenvolvidas cuidariam dos milhões de refugiados climáticos?”

YNH: Eu não sei.

CA: Essa é a sua resposta, Kat.

YNH: E não acho que eles saibam também. Eles só vão negar o problema, talvez.

CA: Mas imigração, em geral, é outro exemplo de um problema muito difícil de ser resolvido por um país individualmente. Uma nação pode fechar suas fronteiras, mas talvez isso traga problemas para o futuro.

YNH: Sim, é um outro caso muito bom, especialmente porque é muito mais fácil migrar hoje se comparado à Idade Média ou aos tempos antigos.

CA: Yuval, há uma crença entre muitos tecnólogos, certamente, de as preocupações políticas estarem meio exageradas. Na verdade, os líderes políticos não têm tanta influência no mundo. Neste momento, a determinação real da humanidade é pela ciência, pelas invenções, pelas empresas, por muitas outras coisas além de líderes políticos. Na verdade, é muito difícil para os líderes fazerem muito, então, estamos realmente nos preocupando com nada aqui.

YNH: Em primeiro lugar, deve-se enfatizar: a capacidade dos líderes políticos de fazer o bem ser muito limitada, mas a sua capacidade de causar danos é ilimitada. Há um desequilíbrio básico aqui. Você ainda pode pressionar o botão e explodir todo mundo. Você tem esse tipo de capacidade. Mas se quiser, por exemplo, reduzir a desigualdade, isso é muito difícil. Mas, para começar uma guerra, você ainda pode fazê-lo muito facilmente.

Portanto, há um desequilíbrio embutido no sistema político hoje muito frustrante. Há um limite para fazer coisas boas, mas ainda dá para causar muitos danos. O sistema político ainda é uma preocupação muito grande.

CA: Então, ao olhar para o que acontece hoje, usando seu “chapéu de historiador”, você identifica momentos na história quando estava tudo indo bem e um líder individual realmente fez o mundo ou seu país regredir?

YNH: Na verdade, há vários exemplos, mas devo salientar: nunca foi um líder individual. Quero dizer, alguém o colocou lá, e alguém permitiu ele continuar lá. Por isso, nunca é realmente apenas a culpa de um único indivíduo. Há muitas pessoas por trás de cada um desses indivíduos.

CA: Podemos dar o microfone aqui, por favor, para o Andrew?

Andrew Solomon: Você falou muito sobre o global versus o nacional, mas me parece, cada vez mais, a situação do mundo estar nas mãos de grupos individuais. Vemos pessoas de dentro dos EUA recrutados pelo ISIS. Outros grupos se formaram, estão além dos limites nacionais, mas ainda representam poderes importantes. Como eles poderão ser integrados no sistema e como um conjunto diverso de identidades se tornará coerente sob uma liderança nacional ou global?

YNH: Bem, o problema de tais identidades diversas é um problema do nacionalismo também. O nacionalismo acredita em uma identidade única, monolítica, e versões exclusivas ou, pelo menos, mais extremas de nacionalismo acreditam em uma lealdade exclusiva para uma única identidade. Portanto, o nacionalismo tem tido uma série de problemas com as pessoas com ambição de dividir suas identidades entre os vários grupos. Portanto, não é apenas um problema, digamos, para uma visão global.

Mais uma vez, a história mostra não devermos necessariamente pensar em termos tão exclusivos. Se há apenas uma única identidade para uma pessoa, “Eu sou apenas X. Eu não posso ser várias coisas, posso ser apenas isso”, esse é o início do problema. Temos religiões e nações teológicas às vezes exigentes de uma lealdade exclusiva, mas não é a única opção. Há muitas religiões e muitas nações permissivas de se ter diversas identidades ao mesmo tempo.

CA: Mas, no ano passado, um grupo de pessoas criticou as elites liberais de esquerda, por falta de um termo melhor, obcecada por muitas e muitas identidades diferentes e, sentindo-se: “Mas e a minha identidade? Estou sendo completamente ignorado. E, a propósito, eu achava que era a maioria”. Isso provocou muita raiva.

YNH: A identidade é sempre problemática, porque ela é sempre baseada em histórias fictícias. Elas, mais cedo ou mais tarde, colidem com a realidade. Quase todas as identidades, além do nível da comunidade básica de algumas dezenas de pessoas, são baseadas em uma história fictícia. Elas não são a verdade, a realidade. São apenas histórias cujas pessoas adeptas inventam e contam entre si – e, pior, começam a acreditar! Portanto, todas as identidades são extremamente instáveis. Elas não são uma realidade biológica. Às vezes os nacionalistas, por exemplo, acham a Nação ser uma entidade biológica. É feita de uma combinação de solo e sangue, então cria-se a Nação. Mas esta é apenas uma história fictícia.

CA: Solo e sangue fazem uma lama pegajosa! (Risos)

YNH: Faz, e também mexe com a mente quando se pensa muito sermos uma combinação de solo e sangue. Se você olhar do ponto de vista biológico, obviamente nenhuma das nações existente hoje existia há 5 mil anos. O Homo sapiens é um animal social, certamente. Mas por milhões de anos, o Homo sapiens e nossos ancestrais hominídeos viviam em pequenas comunidades de algumas dezenas de indivíduos. Todos se conheciam.

As nações modernas são comunidades imaginadas, no sentido de ninguém conhece todas essas pessoas compatriotas. Eu venho de uma nação relativamente pequena, Israel, e dos 8 milhões de israelenses, nunca conheci a maioria deles. Eu nunca vou conhecer a maioria deles. Os elos existem basicamente no imaginário nacionalista.

CA: Mas em termos dessa identidade, esse grupo se sente excluído e talvez perca seu emprego… Em “Homo Deus” você realmente fala deste grupo de certo modo se expandindo. Muitas pessoas podem perder seus empregos de alguma forma para a tecnologia. Poderíamos acabar com uma enorme “classe inútil”, uma classe tradicionalmente vista pela Economia como pessoas sem propósito e com desalento?

YNH: Sim.

CA: Qual a probabilidade disso ocorrer? Isso é algo que deve nos apavorar? E podemos resolver isso de alguma forma?

YNH: Devemos pensar sobre isso com muito cuidado. Ninguém sabe realmente como será o mercado de trabalho em 2040, ou 2050. Há uma chance de muitos novos postos de trabalho aparecerem, mas não é certeza. Mesmo se novos empregos aparecerem, não será necessariamente fácil para um motorista de caminhão desempregado, com 50 anos, tendo perdido seu emprego para veículos autônomos, se reinventar como designer de mundos virtuais.

Anteriormente, se você olhar para a trajetória da revolução industrial, quando as máquinas substituíram os humanos em um tipo de trabalho, a solução geralmente veio de trabalhos de baixa qualificação em novas linhas de negócios. Na mecanização do campo, não precisávamos de mais trabalhadores agrícolas, então as pessoas passaram a ocupar vagas industriais de baixa qualificação. Quando isso é tirado por mais e mais máquinas, as pessoas passam para serviços de baixa qualificação.

Agora, quando se diz: “haverá novos empregos no futuro”, os humanos podem fazer melhor em lugar da IA, podem fazer melhor do que robôs, costuma-se pensar em empregos bem qualificados, como engenheiros de software projetando mundos virtuais. Eu não vejo como um caixa desempregado do Wal-Mart se reinventa aos 50 anos como designer de mundos virtuais, e, certamente não vejo como os milhões de trabalhadores têxteis de Bangladesh desempregados serão capazes de fazer isso. Se eles irão fazê-lo, precisamos começar a ensinar aos bengaleses hoje como serem designers de software, e não estamos fazendo isso. Então, o que eles farão em 20 anos?

CA: É quase uma pergunta difícil de fazer em público, mas se alguma mente tem sabedoria para contribuir, talvez seja a sua, então vou te perguntar: para que servem os humanos?

YNH: Até onde se saiba, para nada. (Risos) Não há nenhum grande drama cósmico, um grande plano cósmico no qual tenhamos um papel a desempenhar. E só precisamos descobrir qual é nosso papel e então, desempenhá-lo da melhor forma conforme nossas habilidades. Esta tem sido a história de todas religiões e ideologias e assim por diante, mas como cientista, posso dizer isso não ser verdade. Não há um drama universal, com um papel nele para o Homo sapiens. Então…

CA: Vou me opor só um minuto, exatamente do seu próprio livro, porque no “Homo Deus,” você dá exemplos coerentes e compreensíveis sobre senciência, sobre consciência, esse tipo único de habilidade humana. Você diz ela ser diferente da inteligência construída em máquinas. Há, realmente, muito mistério em torno dela. Como você pode ter certeza não haver nenhum propósito quando nós sequer entendemos o que essa senciência é? Em seu próprio pensamento, não existe uma chance de o papel dos humanos ser aqueles com sentimentos a respeito do universo? Eles não são o centro da alegria, do amor, da felicidade e da esperança? Talvez possamos construir máquinas capazes de ajudarem a ampliar isso, mesmo elas não se tornando também sencientes? É loucura? Eu me vi acreditando nisso, ao ler seu livro.

YNH: Certamente acho a pergunta mais interessante hoje na ciência ser a questão da consciência e da mente. Estamos ficando cada vez melhor na compreensão do cérebro e da inteligência, mas não estamos ficando muito melhores na compreensão da mente e da consciência. As pessoas muitas vezes confundem inteligência com consciência, especialmente em lugares como o Vale do Silício, o que é compreensível, porque nos humanos, elas ficam juntas.

Quer dizer, a inteligência é basicamente a capacidade de resolver problemas. A consciência é a capacidade de sentir as coisas, de sentir alegria, tristeza, tédio, dor e assim por diante. No Homo sapiens e nos outros mamíferos também, não é exclusivo dos seres humanos, em todos os mamíferos e pássaros, e em outros animais, a inteligência e consciência andam juntas.

Nós muitas vezes resolvemos problemas sentindo as coisas. Por isso, costumamos confundi-las, mas elas são coisas diferentes.

O que está acontecendo hoje em lugares como o Vale do Silício é estarmos criando inteligência artificial, mas não consciência artificial. Tem havido um desenvolvimento incrível na inteligência computacional ao longo dos últimos 50 anos, e exatamente nenhum desenvolvimento na consciência computacional, e não há indícios de que computadores vão tornar-se conscientes tão cedo.

Então, primeiro lugar, se há algum papel cósmico para a consciência, ele não é exclusivo do Homo sapiens. As vacas são conscientes, os porcos são conscientes, assim como chimpanzés e galinhas, então, seguindo essa lógica, precisamos ampliar horizontes e lembrar de forma muito clara: não somos os únicos seres sencientes na Terra. Quando se trata de inteligência, há boas razões para acharmos sermos os mais inteligentes de todo o grupo. Mas quando se trata de senciência, afirmar os humanos serem mais sencientes do que as baleias, ou os babuínos, ou os gatos, eu não vejo nenhuma evidência para isso.

Então, o primeiro passo é ir nessa direção e expandir. A segunda questão sobre sua função, gostaria de invertê-la e dizer: a senciência talvez não sirva para qualquer coisa. Não precisamos descobrir o nosso papel no universo. O que realmente importa é nos libertarmos do sofrimento. O que caracteriza os seres sencientes ao contrário dos robôs, das pedras, de qualquer coisa, é: seres sencientes podem sofrer. Assim, eles deveriam se concentrar não em descobrir seu lugar em algum drama cósmico misterioso, mas sim em entender:

  1. o que é sofrimento,
  2. o que o causa e
  3. como se libertar dele.

Plateia: Em seu trabalho, você fala muito sobre histórias fictícias aceitas como verdade, e vivemos nossas vidas baseadas nelas. Como um indivíduo, sabendo isso, como isso afeta as histórias escolhidas por ele, para viver a sua vida, e se ele não as confunde com a verdade, como é habitual em todos nós?

YNH: Para mim, talvez a questão mais importante, tanto como cientista e como pessoa, é como saber a diferença entre ficção e realidade, porque a realidade objetiva está lá.

Não estou dizendo tudo ser ficção. É muito difícil para o ser humano saber qual é a diferença entre ficção e realidade. Isto tem se tornado mais difícil com o avanço da história, porque as ficções criadas: nações, deuses, dinheiro e corporações, etc., agora controlam o mundo. Então, só de pensar: “Oh, são apenas entidades fictícias criadas por nós”, é muito difícil. Mas a realidade está lá.

[Fernando Nogueira da Costa: O entendimento do conceito de Instituições ajudaria nesse debate: são as restrições criadas para dar forma às interações humanas. Yuval Harari parece sugerir instituições não são reais, mas sim ficções! Real seria só o biológico ou o físico?!

Restrições são as “regras do jogo”. Existem restrições informais: os códigos, os costumes e as tradições sociais. Há restrições formais: as regras consolidadas na lei e na política de cada País.

Instituições emergem através do aumento do número de adeptos de uma determinada regra; expressam conformidade com um hábito socialmente difundido.

Hábitos não são apenas frutos de pensamentos automáticos. Eles resultam da repetição de pensamento e ação consciente.

Lógica de Ação é um conjunto de regras socialmente compartilhadas e recorrentes de pensamento e comportamento. Constitui-se de modelo mental e regras de comportamento.]

Há vários testes para dizer a diferença entre ficção e realidade. O mais simples, o melhor para dizer resumidamente, é o teste do sofrimento. Se puder sofrer, é real. Se não puder sofrer, não é real.

Uma nação não pode sofrer, isso é muito claro. Mesmo se uma nação perde uma guerra, dizemos: “A Alemanha sofreu uma derrota na Primeira Guerra Mundial”, é uma metáfora. A Alemanha não pode sofrer. A Alemanha não tem mente nem consciência. Os alemães podem sofrer, mas a Alemanha não. Da mesma forma, quando um banco vai à falência, o banco não pode sofrer. Quando o dólar perde seu valor, o dólar não sofre.

Pessoas e animais podem sofrer. Isto é real. Assim, se você realmente quer ver a realidade, sugiro verificar se passa pela porta do sofrimento. Se puder entender o que é sofrimento, isso vai lhe dar também a chave para entender o que é realidade.

CA: Há uma pergunta do Facebook: “É a Era Pós-verdade uma era totalmente nova, ou apenas um outro clímax de uma tendência sem fim?

YNH: Pessoalmente, não aceito essa ideia de pós-verdade. Minha reação básica como historiador é: se esta é a Era da Pós-verdade, quando foi a Era da Verdade?

CA: Certo. (Risos)

YNH: Foi a década 80, a de 50, a Idade Média? Sempre vivemos em uma era, de certa forma, de pós-verdade.

CA: Mas eu me oporia a isso, porque havia um mundo no qual tínhamos menos meios jornalísticos, no qual havia tradições, no qual as coisas eram validadas. Foi incorporado nos estatutos daquelas organizações “a verdade importa”. Se você acredita em uma realidade, então o que você escreve é informação. Havia uma crença dessa informação se conectar à realidade. Se você escrevesse uma manchete, seria uma tentativa séria e sincera de mostrar algo realmente acontecido. A preocupação agora é termos um sistema tecnológico incrivelmente poderoso: a internet. Durante algum tempo, pelo menos, ampliou massivamente qualquer coisa, sem prestar atenção se as informações nela postadas refletiam a realidade, ou só se conectavam em busca de acessos e likes. Isso foi seguramente tóxico. Essa é uma preocupação razoável, não é?

YNH: Sim, é. A tecnologia muda a coisa. Agora é mais fácil divulgar tanto a verdade, como a ficção e a falsidade. É uma via de mão dupla. É também muito mais fácil, no entanto, propagar a verdade do que era antes. Mas não acho haver algo essencialmente novo sobre essa disseminação de ficções e erros. Não há nada de novo para Joseph Goebbels: ele sabia sobre toda essa ideia de notícias falsas e pós-verdade! Ele ficou famoso ao dizer: “se uma mentira é repetida muitas vezes, as pessoas vão pensar que é a verdade, e quanto maior for a mentira, melhor, pois as pessoas não vão nem pensar algo tão grandioso poder ser uma mentira”. As notícias falsas têm estado conosco há milhares de anos. Basta pensar na Bíblia. (Risos)

CA: Mas há uma preocupação de notícias falsas estarem associadas a regimes tirânicos. Quando há um aumento nas notícias falsas é um alerta de tempos sombrios estarem por vir.

YNH: O uso intencional de notícias falsas é um sinal preocupante. Mas não estou dizendo não ser ruim, eu só estou dizendo não ser novidade.

CA: Há um grande interesse no Facebook sobre esta questão de governança global versus nacionalismo. Uma pergunta de Phil Dennis: “Como podemos fazer as pessoas nos governos abandonarem o poder? Isso é uma necessidade? Será preciso uma guerra para chegarmos lá?”

YNH: Uma opção pensada comumente é apenas uma catástrofe sacudir a humanidade e abrir o caminho para um verdadeiro sistema de governança global. Não podemos fazê-lo antes da catástrofe. Temos de começar a criar os alicerces para, quando o desastre acontecer, podermos reagir rapidamente. Mas as pessoas simplesmente não têm a motivação para fazer tal coisa antes de o desastre ocorrer. Qualquer pessoa realmente interessada em governança global deve sempre deixar muito claro: ela não substitui ou abole as identidades e comunidades locais; ela deve ser parte de um único pacote.

CA: Eu quero ouvir mais sobre isso, porque as próprias palavras “governança global” são quase o epítome do mal na mentalidade nacionalista de muitos da “direita-alternativa” hoje. Parece assustador, remoto, distante, mas os xenófobos espantam o espantalho: “Globalistas, governança global? Não! Vão embora!” E muitos veem a eleição como pimenta nos olhos para quem acredita nisso. Então, como mudamos a narrativa para não parecer tão assustadora e remota? Elabore mais a ideia de isso ser compatível com identidades e comunidades locais.

YNH: Devemos começar com as realidades biológicas do Homo sapiens. E a biologia nos diz duas coisas sobre o Homo sapiens muito relevantes para esse problema.

Em primeiro lugar, somos completamente dependentes do sistema ecológico à nossa volta e ele é um sistema global. Você não pode fugir disso.

Em segundo lugar, nós, Homo sapiens, somos animais sociais, mas somos sociais em um nível muito local.

É apenas um fato simples da humanidade que não conseguimos ter convivência íntima com mais de uns 150 indivíduos. O tamanho do grupo natural, a comunidade natural do Homo sapiens, não é maior do que 150 indivíduos. E tudo além disso é na verdade baseado em todos os tipos de histórias imaginárias e instituições de grande escala.

Podemos encontrar uma maneira, baseados em uma compreensão biológica de nossa espécie, de juntar os dois e compreender hoje, no século 21, precisarmos tanto do nível global como da comunidade local.

Eu iria ainda além e diria isso começar com o próprio corpo em si. Os sentimentos que as pessoas hoje têm de alienação e solidão e de não encontrar seu lugar no mundo, o principal problema não é o capitalismo global. O principal problema é, ao longo dos últimos 100 anos, pessoas terem renunciado progressivamente a seus corpos, foram se distanciando de seus corpos.

Como um caçador-coletor ou até mesmo como um camponês, para sobreviver, você precisa estar constantemente em contato com seu corpo e seus sentidos, a todo momento. Se você vai para a floresta procurar cogumelos e não prestar atenção ao que ouve, cheira, o que prova, você morre. Portanto, você deve ficar muito conectado.

Nos últimos 100 anos, as pessoas vêm perdendo a capacidade de estar em contato com seus corpos e seus sentidos, de ouvir, cheirar, sentir. Mais da nossa atenção vai para as telas, para o que acontece em outro lugar, em outro momento. Isso, eu acho, é a razão profunda para os sentimentos de alienação e solidão, e assim por diante.

Portanto, parte da solução não é trazer de volta um nacionalismo de massa qualquer, mas sim a reconexão com nosso próprio corpo. Se você retomar o contato com seu corpo em harmonia com a natureza, vai se sentir muito mais à vontade no mundo também.

CA: Dependendo dos acontecimentos, todos poderemos voltar à floresta logo. Vamos a mais uma pergunta da sala e mais uma do Facebook.

Ama Adi-Dako: Olá. Eu sou de Gana, África Ocidental, e a minha pergunta é: como você apresenta e justifica a ideia de governança global aos países historicamente marginalizados pelos efeitos da globalização? Estamos falando de governança global a partir de uma ideia muito ocidentalizada de qual “global” deve ser. Então, como apresentar e justificar essa ideia de global versus algo inteiramente nacionalista para as pessoas em países como Gana, Nigéria e Togo e em outros países como esses?

YNH: A história é extremamente injusta. Devemos perceber isso. Muitos dos países cujos habitantes tiveram mais sofrimento, nos últimos 200 anos da globalização e do imperialismo e industrialização, são exatamente os países mais propensos a sofrer mais com a próxima onda. E devemos estar muito conscientes disso.

Se não tivermos uma governança global, e sofrermos com as mudanças climáticas, e as rupturas tecnológicas, o pior sofrimento não será nos EUA, mas em Gana, no Sudão, na Síria, em Bangladesh, será nesses lugares.

Então, esses países têm um incentivo ainda maior para fazer algo sobre a próxima onda de ruptura, quer seja ecológica ou seja tecnológica. Novamente, se você pensar em ruptura tecnológica, se a IA, as impressoras 3D e os robôs assumirem o emprego de bilhões de pessoas, eu me preocupo muito menos com os suecos do que com as pessoas em Gana ou em Bangladesh.

Portanto, porque a história é tão injusta, os resultados de uma calamidade não serão compartilhados igualmente entre todos. Como de costume, os ricos vão se livrar das piores consequências das mudanças climáticas de uma forma pela qual os pobres não serão capazes de fazê-lo.

CA: Aqui está uma ótima pergunta do Cameron Taylor no Facebook: “No final do ‘Sapiens’, você disse que deveríamos perguntar: “O que nós queremos querer?” Bem, o que você acha que devemos querer?”

YNH: Devemos querer saber a verdade, compreender a realidade. O que mais queremos é mudar a realidade, ajustá-la às nossas próprias vontades, aos nossos próprios desejos.

Devemos, em primeiro lugar, querer entendê-la. Se observarmos a trajetória de longo prazo da história, o que vemos é, por milhares de anos, nós humanos termos obtido o controle do mundo à nossa volta. Tentamos moldá-lo para atender às nossas próprias vontades. Obtivemos o controle sobre os outros animais, sobre os rios, as florestas, e os reformulamos completamente, causando uma destruição ecológica sem ficarmos satisfeitos.

Então, o próximo passo é voltarmos nosso olhar para dentro, e dizermos: “Certo, obter o controle do mundo à nossa volta não nos trouxe satisfação. Vamos agora tentar obter o controle do mundo dentro de nós“.

Este é realmente o grande projeto da ciência e da tecnologia e da indústria no século 21: tentar obter o controle do mundo dentro de nós, aprender a projetar e produzir corpos, cérebros e mentes. Estes tendem a ser os principais produtos da economia do século 21.

Quando as pessoas pensam sobre o futuro, elas frequentemente pensam em termos: “Oh, eu quero obter o controle do meu corpo e do meu cérebro“. Acho isso muito perigoso. Se aprendemos alguma coisa com nossa história anterior, ganhamos apenas o poder de manipular. Mas porque nós realmente não entendemos a complexidade do sistema ecológico, estamos agora enfrentando um colapso ecológico.

Se nós agora tentarmos reestruturar o mundo dentro de nós sem realmente entendê-lo, especialmente sem entender a complexidade do nosso sistema mental, poderemos causar uma espécie de desastre ecológico interno. Vamos enfrentar uma espécie de colapso mental dentro de nós.

CA: Juntando todas as peças aqui, as políticas atuais, a tecnologia a chegar, preocupações como acabou de resumir, parece você mesmo estar em um lugar muito sombrio quando pensa sobre o futuro; parece muito preocupado com isso. É isso mesmo? E, se houvesse um motivo de esperança, como você a relataria?

YNH: Eu foco as possibilidades mais perigosas em parte porque este é o meu trabalho ou responsabilidade como historiador ou crítico social. A indústria concentra-se principalmente nos lados positivos, então, é trabalho de historiadores, filósofos e sociólogos destacar o potencial mais perigoso de todas essas novas tecnologias.

Não acho que nada disso seja inevitável. A tecnologia nunca é determinista. Você pode usar a mesma tecnologia para criar tipos muito diferentes de sociedades.

Se observarmos o século 20, as tecnologias da Revolução Industrial, os trens e a eletricidade e tudo aquilo poderia ter sido usado para criar uma ditadura comunista ou um regime fascista ou uma democracia liberal. Os trens não lhe dizem o que fazer com eles.

Da mesma forma, hoje, inteligência artificial e bioengenharia e tudo isso, não predeterminam um único resultado. A humanidade pode enfrentar o desafio.

O melhor exemplo que temos da humanidade enfrentando o desafio de uma nova tecnologia é o das armas nucleares. No final de 1940, 1950, muitas pessoas estavam convencidas de, mais cedo ou mais tarde, a Guerra Fria acabaria em uma catástrofe nuclear, destruindo a civilização humana. E isso não aconteceu. Na verdade, as armas nucleares levaram os humanos de todo o mundo a mudarem a maneira com que conduziam política internacional para reduzir a violência.

Muitos países praticamente excluíram a guerra como opção política. Eles já não tentam mais alcançar seus interesses com guerras. Nem todos os países fizeram isso, mas muitos deles sim. Talvez esta seja a razão mais importante pela qual a violência internacional diminuiu drasticamente desde 1945, e hoje, como eu disse, mais pessoas cometem suicídio do que são mortas em guerras.

Então, esse é um bom exemplo de, mesmo com a tecnologia mais assustadora, os seres humanos poderem enfrentar o desafio e coisas boas poderem até advir disso. O problema é termos bem pouca margem para erro. Se não acertarmos, poderemos não ter uma segunda opção para tentar novamente.

CA: Esse é um ponto bastante forte, sobre o qual podemos concluir esta entrevista. Antes de encerrar, só quero dizer uma coisa para as pessoas aqui e para a comunidade global TED e qualquer pessoa assistindo on-line: nos ajudem com esses diálogos. Se você acredita, como nós, ser preciso encontrar um tipo diferente de conversa, agora mais do que nunca, ajude-nos a fazê-lo. Ajude outras pessoas, tente conversar com pessoas que você discorda, entenda-as, junte as peças, e nos ajudem a descobrir um modo de levar essas conversas adiante para que possamos fazer uma contribuição real para o que está acontecendo no mundo agora. Todo mundo se sente mais vivo, mais preocupado, mais envolvido com as políticas do momento. Os riscos parecem mesmo bastante altos, assim nos ajudem a responder a eles de uma maneira bem sábia. Yuval Harari, obrigado.

Chris Anderson entrevista Yuval Noah Harari publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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