terça-feira, 12 de março de 2019

Pilares de um Novo Paradigma

O artigo do André Lara Resende (Valor – Eu&Fim-de-Semana, 08/03/2019), “A Crise da Macroeconomia”, me lembrou minha tese de Livre Docência – Por uma Teoria Alternativa da Moeda –, defendida em 1994 e parcialmente publicada em livro (“Economia Monetária e Financeira: Uma Abordagem Pluralista”) em 1999. Foi meu esforço para elaboração de uma alternativa à Teoria Quantitativa da Moeda.

“O primeiro pilar do novo paradigma macroeconômico, a sua pedra angular, é a compreensão de que moeda fiduciária contemporânea é essencialmente uma unidade de conta”, diz Resende. Nesse meu livro, eu distinguia entre dinheiro e moeda. Todo dinheiro é moeda, mas nem toda moeda é dinheiro. Uma moeda se torna dinheiro quando a sociedade (mercado e Estado) a aceita como cumpridora de três funções básicas: reserva de valor, unidade de conta e meio de pagamento. Se for apenas unidade de conta e não cumprir as demais funções, não é plenamente dinheiro.

“A moeda acompanha a evolução da atividade econômica e da riqueza. No jargão da economia, diz-se que a moeda é endógena, criada e destruída à medida que a atividade econômica e a riqueza financeira se expandem ou se contraem. A moeda é essencialmente uma unidade de referência para a contabilização de ativos e passivos. Sua expansão ou contração é consequência, e não causa, do nível da atividade econômica”. Esta é a tese defendida por Resende no seu livro “Juros, Moeda e Ortodoxia“, de 2017.

Assino-a embaixo, pois é a mesma defendida por mim no concurso de Livre Docência, há 25 anos, e no meu livro publicado há vinte anos. Eu contrapus Postulados e uma Teoria Alternativa da Moeda (TAM) aos Postulados da Teoria Quantitativa da Moeda (TQM) através da Equação de Trocas. Resumo esquematicamente abaixo.

  1. A Equação das Trocas representa a natureza dual de todas as transações em que o valor total dos bens vendidos é igual à despesa monetária para sua aquisição, ou seja, a quantidade vendida ou o rendimento monetário dos vendedores é idêntica à quantidade comprada ou a quantia gasta pelos compradores.
  2. Para essa tautologia ser considerada uma explicação, expressando relação de comportamento que permite previsões, a identidade sem relação causal deve ser sujeita a certas hipóteses levantadas tendo como referência os postulados da Teoria Quantitativa da Moeda ou de uma Teoria Alternativa da Moeda.
  3. A mais conhecida variante da Equação de Trocas é a expressa por Irving Fisher (1911) – V = P.T – representa simples identidade contábil para economia monetária: relaciona o fluxo circular da moeda (lado esquerdo), em dada economia, durante específico período, ao fluxo circular de bens (lado direito).
  4. Pode-se destacar as variáveis nível geral de preços e preços relativos:

M sn .V = P 1  .  1  S  i  . P i / P 1 . Q i  onde M sn é a oferta de moeda nominal; V é a velocidade de circulação da moeda; P 1 é o nível geral de preços (preço absoluto ou monetário); P i / P 1 são os preços relativos em termos da moeda mercadoria (bem 1); Q i é a quantidade de transações.

para que Msn determine unicamente P1 são necessários: para que PQ (necessidades econômicas) determine Msn (quando esta está endógena e V está estável) são necessários:

 

POSTULADOS DA TQM: POSTULADOS DA TAM:
Postulado da Proporcionalidade:
P1 = f( Msn ) => V constante e Md / P 1 = Q dado => demanda por moeda transacional = f( padrão de gastos para atender necessidades básicas ) X  f( J ):
não se influencia pela taxa de juros
Postulado da Velocidade Variável:
Msn = k P Y onde k = f(decisão do agente econômico em ativar moeda ociosa ou fazer inovações financeiras) => instabilidade de V = f(acomodação de Msn às variações de P Y) = f( J )
Postulado da Causalidade:
> Msn => > P 1 com Mdr = Q dada => quantidade real de moeda = quantidade em termos de volume de bens e serviços => efeito saldo real = f( M sn > M dr ) =
oferta monetária excedentária
Postulado da Validação:
> P 1 = f(validação via Msn ) =>
mark-up efetivo = f( decisão de gasto vs. preferência pela liquidez de outro agente ) => variação de P1 => variações em Mdr = desmonetização ou remonetização
Postulado da Neutralidade da Moeda:
> Msn não determina > Q i em longo prazo; moeda não-neutra a curto prazo =
f(ilusão monetária e/ou
oferta monetária inesperada)
Postulado da Não-neutralidade da Moeda: mecanismo de transmissão indireto:
> Msn -> < J m -> > Q i = f(expectativas) ou mecanismo de transmissão direto: diferimento de gastos = retenção de moeda inativa: < Msn ativa
Postulado da Exogeneidade da Oferta da Moeda: variações da Msn X variações da Mdr = f( fatores determinantes independentes ):
Msn = f( reserva de ouro, reserva cambial, autoridade monetária ) X
Mdr = f( taxa de inflação, renda permanente, rendimentos de outros ativos, capital humano, atributo da liquidez) => variação de Msn perturba equilíbrio pré-existente.
Postulado da Endogeneidade da Oferta da Moeda: variações da Mdc => variações da Msc: demanda de crédito efetiva oferta de crédito via contratação = f(risco do credor / risco do devedor ) => não há oferta de moeda efetivamente em circulação sem haver demanda por moeda => Mdc e Msc interdependentes = f( relação de débito e crédito )
Postulado de uma Teoria Monetária dos Preços: (+) Msn não determina
variações de   P i / P 1  em longo prazo => somente determina variação no P1
Postulado de uma Teoria de Fixação de Preços: variações de mark-up => dispersão de Pi / P1 (com preços rígidos para baixo) => variações do P1
se variações na Mdn são sancionadas por variações na Msn

Também concordo com Resende (e ambos concordamos com Keynes): “Moeda e impostos são indissociáveis”.  Mas não vou ao ponto de dizer: “a moeda é um título de dívida do Estado que serve para cancelar dívidas tributárias. Como todos os agentes na economia têm ativos e passivos com o Estado, a moeda se transforma na unidade de contabilização de todos os demais ativos e passivos na economia. A aceitação da moeda decorre do fato de que ela pode ser usada para quitar impostos”.

Moeda é um ativo monetário por definição oficial (legal) e daí detém o poder liberatório de dívidas imediato. Isso não significa moeda ser um título de dívida pública, porque o endividamento envolve um prazo de vencimento, enquanto a moeda é plenamente líquida, ou seja, é um meio de pagamento de dívida – e não a própria dívida.

“O segundo pilar é um corolário do primeiro: dado que a moeda é uma unidade de conta, um índice oficial de ativos e passivos, o governo que a emite não tem restrição financeira. O Estado nacional que controla a sua moeda não tem necessidade de levantar fundos para se financiar, pois ao efetuar pagamentos, automática e obrigatoriamente, cria moeda, assim como ao receber pagamentos, também de maneira automática e obrigatória, destrói moeda”.

Disso discordo pela premissa – o governo emissor da moeda oficial não tem restrição financeira – a ser demonstrada. Há três maneiras do Estado se financiar quando tem uma restrição orçamentária: aumentando a arrecadação tributária, lançando títulos de dívida pública ou efetuando pagamentos com emissão monetária, caso a Casa da Moeda não seja subordinada ao Banco Central e essa Autoridade Monetária não tenha independência do Poder Executivo.

Sem demonstrar sua premissa, Resende já a pressupõe como uma verdade indiscutível e parte para afirmar: “como não precisa respeitar uma restrição financeira, a única razão macroeconômica para o governo cobrar impostos é reduzir a despesa do setor privado e abrir espaço para os seus gastos, sem pressionar a capacidade de oferta da economia”. Em outras palavras, ele sugere a política fiscal, assim como a política monetária, ser apenas uma política de controle da demanda agregada para evitar o pleno emprego inflacionário.

“O governo não tem restrição financeira, mas é obrigado a respeitar a restrição da realidade, sob pena de pressionar a capacidade instalada, provocar desequilíbrios internos e externos e criar pressões inflacionárias”, diz Resende. Este é um consenso na profissão (e não uma nova macroeconomia): a “inflação verdadeira” surge com a plena ocupação da capacidade produtiva, seja pelo uso no limite de máquinas e equipamentos instalados, seja pelo pleno emprego da mão-de-obra e da matéria-prima disponível.

“O terceiro pilar é a constatação de que o Banco Central fixa a taxa de juros básica da economia, que determina o custo da dívida pública. Desde os anos 1990, sabe-se que os bancos centrais não controlam a quantidade de moeda, nenhum dos chamados agregados monetários, mas sim a taxa de juros. O principal instrumento de que dispõe o Banco Central para o controle da demanda agregada é a taxa básica de juros”.

Tudo muito bem, tudo muito bom, mas realmente isso é dito pela heterodoxia desde o debate com os monetaristas nos anos 50 do século XX! É a crítica contumaz ao controle monetário geral, ao uso como único instrumento de política econômica em curto prazo a programação monetária. Desde quando o novo-classicismo aceitou essa ponderação e passou a dar ênfase ao “estado de confiança na independência do Banco Central” – leia-se: sua capacidade de provocar uma brutal recessão punitiva a quem duvidar de sua credibilidade de entregar a meta de inflação –, saiu de moda a programação monetária.

“O quarto pilar é a constatação de que uma taxa de juros da dívida inferior à taxa de crescimento da economia tem duas implicações importantes. A primeira é que a relação dívida/PIB irá decrescer a partir do momento em que o déficit primário – aquele que exclui os juros da dívida – for eliminado, sem necessidade de qualquer aumento da carga tributária. Portanto, se a taxa de juros, controlada pelo Banco Central, for fixada sempre abaixo da taxa de crescimento, a dívida pública irá decrescer, sem custo fiscal, a partir do momento em que o déficit primário for eliminado”.

Resende diz este ser “um resultado trivial e mais robusto do que parece”. Ora, eu diria ser apenas um resultado matemático, se o denominador (PIB) crescer em ritmo superior ao da taxa de juro remuneradora dos títulos de dívida pública, registrados no numerador, logicamente a relação dívida/PIB cairá. Essa aritmética qualquer economista tem a obrigação de entender, porém, mais uma vez, os neoliberais abominam planejar uma retomada do crescimento econômico, pois receiam uma intervenção governamental em O Mercado e optam ideologicamente por cortar gastos sociais! Vale-tudo pelo mercado livre!

“A segunda implicação, tecnicamente mais sofisticada, é que será́ possível aumentar o bem-estar de todos em relação ao equilíbrio competitivo através do endividamento público”. Sem dúvida, a Teoria da Fragilidade Financeira elaborada pelo pós-keynesiano Hyman Minsky, desde os anos 70, mostra como um “fato-da-vida” capitalista a alavancagem financeira. O grau de endividamento só se torna um risco sistêmico quando todos os devedores abandonam a posição defensiva (“protegida ou hedgeada”), mesmo involuntariamente, pelas interações com os demais agentes econômicos, passam para a posição especulativa e ameaçam alcançar a posição Ponzi, ou seja, de inadimplência à espera de negociação de um refinanciamento.

“Sobre esses quatro pilares, acrescenta-se o que foi aprendido sobre a inflação nas ultimas três décadas. Ao contrário do que se acreditou por muito tempo, a moeda não provoca inflação. Inflação é essencialmente questão de expectativas, porque expectativas de inflação provocam inflação. As expectativas se formam das maneiras mais diversas, dependem das circunstâncias, e os economistas não têm ideias precisas sobre como são formadas”.

Viva! Viva! Minha tese de Livre Docência foi aceita na academia ortodoxa! ½ do Larida, elaborador da Teoria da Inflação Inercial, detentor da paternidade do Plano Real, reconheceu o dito por todos antiquantitativistas há séculos! E de lambuja aceita nossa Teoria da Inflação Acelerada, movida por expectativas incertas!

“A pressão excessiva da demanda agregada sobre a capacidade instalada cria expectativas de inflação, mas não é condição necessária para a existência de expectativas inflacionárias. Alguns preços, como salários, câmbio e taxas de juros, funcionam como sinalizadores para a formação das expectativas”.

Sim, qualquer choque de preço básico desencadeia uma série de variações de preços relativos até se acomodar novamente a um novo equilíbrio, caso alguns agentes econômicos aceitem suas perdas dentro do conflito distributivo estabelecido. A volta à inércia, depois de uma aceleração, não é automática, como já dizíamos nos anos 80.

“Se o banco central tiver credibilidade, as metas anunciadas para a inflação também serão um sinalizador importante. Uma vez ancoradas, as expectativas são muito estáveis. A inflação tende a ficar onde sempre esteve.”

Aí, Resende adota o novo-classicismo das expectativas racionais – e não expectativas incertas como destacam os pós-keynesianos, devido às decisões descentralizadas, descoordenadas e desinformadas umas das outras.

Por isso, deduz Resende, “é tão difícil, como sempre se soube, reduzir uma inflação que está acima da desejada. Depois da grande crise financeira de 2008, ficou claro que é igualmente difícil elevar uma inflação abaixo da desejada”.

Por que elevar a inflação? Para corroer os salários reais? Para diminuir a dívida não indexada ou prefixada? Não entendo uma “inflação desejada”. Resende poderia me explicar melhor…

Pilares de um Novo Paradigma publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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