quarta-feira, 13 de março de 2019

Novas Ideias, Antigas Raízes

André Lara Resende (Valor – Eu&Fim-de-Semana, 08/03/2019) reconhece: embora grande parte das teses do novo paradigma contradigam o consenso econômico-financeiro, elas não são novas. Têm raízes em ideias esquecidas, submersas pela força das ideias estabelecidas e insistentemente repetidas. No entanto, ele só pesquisa essas raízes no mainstream, ignorando a Banking School e outras correntes contrapostas à Teoria Quantitativa da Moeda desde o início do século XIX.

A tese da moeda ser essencialmente uma unidade de conta, cuja aceitação deriva da possibilidade de usá-la para pagar impostos, é de 1905. Foi originalmente formulada pelo economista alemão Georg F. Knapp, no livro “The State Theory of Money“. Ficou conhecida como “cartalismo” e foi retomada recentemente pelos proponentes da chamada moderna teoria monetária, MMT em inglês.

Já a tese do governo emitir a sua própria moeda e, portanto, não ter restrição financeira, de modo a não precisar equilibrar receitas e despesas, é de 1943. Seu autor, Abba Lerner, foi um economista. Como Clarice Lispector, nasceu na Bessarábia, estudou na Inglaterra e deu contribuições de grande relevância para os mais diversos campos da teoria econômica.

No ensaio “Functional Finance and the Federal Debt“, Lerner enuncia os princípios que devem guiar o governo no desenho da política fiscal. Segundo ele, os déficits fiscais podem e devem sempre ser usados para garantir o pleno emprego e estimular o crescimento. Um tal de Keynes já falava isso antes dele…

A primeira prescrição de Lerner, “a primeira lei da finanças funcionais“, é macroeconômica: o governo deve sempre usar a política fiscal para manter a economia no pleno emprego e estimular o crescimento. A única preocupação em relação à aplicação dessa prescrição deve ser com os limites da capacidade de oferta da economia. Eles não podem ser ultrapassados, sob pena de provocar desequilíbrios internos e externos e criar pressões inflacionárias.

A segunda prescrição, ou “a segunda lei das finanças funcionais“, é microeconômica: os impostos e os gastos do governo devem ser avaliados segundo uma análise objetiva de custos e benefícios, nunca sob o prisma financeiro.

Todo banqueiro central com alguma experiência prática na condução da política monetária sabe: o banco central controla efetivamente a taxa de juros básica da economia. Não havendo pressão sobre a capacidade de oferta, é possível criar qualquer quantidade de moeda remunerada sem provocar inflação. Trata-se de um poder tão extraordinário, conveniente a todos, a ponto de Resende argumentar com uma ficção para se opor a outra: “para evitar pressões políticas espúrias, continua a sustentar a ficção de o banco central dever controlar, e efetivamente controla, a quantidade de moeda”.

Diz o fato de o governo, emissor de sua própria moeda, não estar submetido a qualquer restrição financeira, é bem menos compreendido. Talvez porque seja profundamente contraintuitivo, porque todo e qualquer outro agente, as empresas, as famílias, os governos estaduais e municipais, estão obrigados a respeitar o equilíbrio entre receitas e despesas, sob pena de se tornar inadimplentes.

Quando se compreende a proposição da moeda ser um mero índice da riqueza na economia, evidentemente, sua expansão não provoca inflação. Com o seu corolário, o governo emissor não ter restrição financeira, há uma mudança de Gestalt.

A compreensão da lógica da especificidade dos governos emissores de sua moeda provoca uma sensação de epifania. Ela subverte todo o raciocínio macroeconômico convencional. Toda mudança de percepção, ao desconstruir princípios estabelecidos, é inicialmente perturbadora, mas uma vez incorporada, abre as portas para o avanço do conhecimento.

Como observou o Prêmio Nobel de Física, gênio inconteste, Richard Feynman, em um artigo de 1955, “O Valor da Ciência“, “o conhecimento pode tanto ser a chave do paraíso, como a dos portões do inferno”. É fundamental essa mudança de percepção ser corretamente interpretada para a formulação de políticas.

Assim como Ivan Karamazov concluiu “se Deus não existe, tudo é permitido”, de forma menos angustiada e mais afoita, não faltarão políticos para concluir: se o governo não tem restrição financeira, tudo é permitido. Aqui, Resende se aproveita, de maneira oportunista, da aversão da opinião pública aos políticos profissionais, não os reconhecendo como legítimos, porque eleitos, representantes de grupos de interesses.

Do ponto de vista macroeconômico, se o governo gastar mais em lugar do retirado da economia, via impostos, estará aumentando a demanda agregada. Quando a economia estiver perto do pleno emprego, corre o risco de causar desequilíbrios e provocar pressões inflacionárias.

Do ponto de vista microeconômico, a política fiscal tem impactos alocativos e redistributivos importantes. Embora o governo não esteja sempre obrigado a equilibrar receitas e despesas, a composição de suas despesas e de suas receitas, a forma como o governo conduz a política fiscal, é da mais alta importância para o bom funcionamento da economia e o bem-estar da sociedade.

A preocupação dos formuladores de políticas públicas não deve ser o de viabilizar o financiamento dos gastos, mas sim a qualidade, tanto das despesas como das receitas do governo. A decisão de como tributar e gastar não deve levar em consideração o equilíbrio entre receitas e despesas, mas sim o objetivo de aumentar a produtividade e equidade.

Por isso, é fundamental não confundir a inexistência de restrição financeira com a supressão da noção de custo de oportunidade. O governo continua obrigado a avaliar custos e benefícios microeconômicos de seus gastos. Um governo com equilíbrio do seu orçamento, mas gastando mal e tributando muito, é incomparavelmente mais prejudicial em lugar de um governo deficitário, mas capaz de gastar bem e tributar de forma eficiente e equânime, sobretudo quando a economia está aquém do pleno emprego.

Resende argumenta talvez ser melhor não desmontar a ficção de os gastos públicos são financiados pelos impostos, pelo “o seu, o meu, o nosso dinheiro”, para criar uma resistência da sociedade às pressões espúrias por gastos públicos. Afinal, pressões políticas, populistas e demagógicas, por mais gastos nunca hão de faltar. O problema é: quando se adota um raciocínio torto, ainda que com a melhor das intenções, chega-se a conclusões necessariamente equivocadas.

Novas Ideias, Antigas Raízes publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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