André Lara Resende (Valor – Eu&Fim-de-Semana, 08/03/2019) chega à análise da economia brasileira. Desde o início dos anos 1990, a taxa real de juros foi sempre muito superior à taxa de crescimento da economia. Só entre 2007 e 2014 a taxa real de juros ficou apenas ligeiramente acima da taxa de crescimento.
A partir de 2015, quando a economia entrou na mais grave recessão de sua história, com queda acumulada em três anos de quase 10% da renda per capita, a taxa real de juros voltou a ser muito mais alta do que a taxa de crescimento. A economia cresceu apenas 1,1% ao ano em 2017 e 2018.
Hoje, com a renda per capita ainda 5% abaixo do nível de 2014, quando no ano seguinte findou a Era Social-Desenvolvimentista e voltou a Velha Matriz Neoliberal com Joaquim Levy, com o desemprego acima de 12% e grande capacidade ociosa, a taxa real de juros ainda é mais do dobro da taxa de crescimento. Como não poderia deixar de ser, a relação dívida/PIB tem crescido e se aproxima de níveis considerados insustentáveis pelo consenso macro- financeiro.
O diagnóstico não depende do arcabouço macroeconômico adotado, é claro e irrefutável: as contas públicas estão em desequilíbrio crescente e a relação dívida/PIB vai continuar a crescer e superar os 100% em poucos anos. Resende destaca de maneira correta: o desenho das políticas a serem adotadas para sair da situação em que nos encontramos é completamente diferente caso se adote a visão macroeconômica convencional ou um novo paradigma.
O velho consenso exige o corte a despesas, a venda de ativos estatais, a reforma da Previdência e o aumento dos impostos, para reverter o déficit público e estabilizar a relação dívida/PIB. É o roteiro do governo Bolsonaro sob a liderança do ministro Paulo Guedes. A partir de um novo paradigma, compreende-se esse equívoco neoliberal vir de longe.
A inflação brasileira tem origem na pressão excessiva sobre a capacidade instalada, durante as três décadas de 1950 a 1980 de esforço desenvolvimentista. Foi agravada pelo choque do petróleo na primeira metade da década de 1970, quando adquiriu uma dinâmica própria, alimentada pela indexação e pelas expectativas desancoradas.
Altas taxas de inflação crônica têm uma forte inércia, não podem ser revertidas apenas através do controle da demanda agregada, com objetivo de provocar desemprego e capacidade ociosa. Para quebrar a inércia é preciso um mecanismo de coordenação das expectativas.
No Plano Real, esse mecanismo foi a URV, uma unidade de conta sem existência física, corrigida diariamente pela inflação corrente. A URV foi uma unidade de conta oficial virtual, com poder aquisitivo estável, uma moeda plena na acepção Cartalista, que viabilizou estabilização da inflação brasileira.
Quando a URV foi introduzida, a economia não crescia, havia desemprego e capacidade ociosa. A causa da inflação não era mais o gasto público nem o excesso de demanda. Quando se compreendeu o governo emissor não ter restrição financeira, ficou claro: não havia necessidade de equilibrar as contas públicas para garantir a estabilidade da moeda. A criação do Fundo de Estabilização Social e, posteriormente, a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal, apenas satisfizeram as exigências do consenso macroeconômico e financeiro da época.
Como se acreditava na necessidade de equilíbrio financeiro do governo, para garantir a consolidação da estabilização, a carga tributária foi sistematicamente elevada. Chegou a 36% da renda, comparável às das mais altas entre as economias desenvolvidas.
Daí Resende baba o ódio antipetista, típico em seus adversários políticos, devido ao próprio sucesso popular dos governos Lula e do primeiro mandato da Dilma. “Durante os governos do PT, opção demagógica pelo aumento dos gastos com pessoal e por grandes obras, turbinadas pela corrupção e sem qualquer avaliação de custo e benefícios, combinada com a ortodoxia do Banco Central, aprofundou o desequilíbrio das contas públicas”. O quadro foi agravado pela rápida queda do crescimento demográfico e do aumento da expectativa de vida. Isso tornou a Previdência crescentemente deficitária.
Uma vez feita a transição da URV para o Real, teria sido necessário manter uma âncora coordenadora das expectativas. Retrospectivamente, o correto teria sido adotar um regime de metas inflacionárias, para balizar as expectativas. Ela só veio a ser adotado no segundo governo FHC.
A opção à época foi por dispensar um mecanismo coordenador das expectativas e confiar nas políticas monetária e fiscal contracionistas. Optou-se por combinar uma política de altíssimas taxas de juros com a austeridade fiscal. O resultado foram:
- mais de duas décadas de crescimento desprezível,
- colapso dos investimentos públicos,
- uma infraestrutura subdimensionada e anacrônica,
- Estados e municípios estrangulados, incapazes de prover os serviços básicos de segurança, saneamento, saúde e educação.
“Mas como não vale a pena chorar sobre o leite derramado, passemos a políticas a serem adotadas para sair da armadilha em que nos encontramos, com base no novo arcabouço conceitual macroeconômico”.
Resende começa sua prescrição de terapia recomendada pela questão socioeconômica monopolistas das manchetes, a reforma da Previdência. Sim, é preciso uma reforma da Previdência, não porque ela seja deficitária, mas sim:
- porque ela é corporativista e injusta e
- porque o aumento da expectativa de vida exige a revisão da idade mínima.
O déficit do sistema previdenciário, como todo déficit público, não precisa ser eliminado se a taxa de juros for inferior à taxa de crescimento. Como estamos com alto desemprego, significativamente abaixo da plena utilização da capacidade instalada e com expectativas de inflação ancoradas, o objetivo primordial das “reformas” deve ser estimular o investimento e a produtividade.
Resende não apresenta nenhuma evidência da possibilidade de fixar a taxa de juro de 6,5% aa nominais e 2,65% aa reais, no fim de 2018, para abaixo de 1,1% de crescimento do PIB. Se a Selic for fixada em 5% aa com taxa de inflação de 3,75% aa, a taxa de juro real seria 1,2%, ou seja, no patamar da taxa de crescimento do PIB.
“Em paralelo à reforma da Previdência, deve-se fazer uma profunda reforma fiscal segundo os preceitos das finanças funcionais de Abba Lerner. O objetivo da reforma tributária não deve ser maximizar a arrecadação, mas sim o de simplificar, desburocratizar, reduzir o custo de cumprir as obrigações tributárias, para estimular os investimentos e facilitar a inciativa privada. Enquanto não houver pressão excessiva sobre a oferta e sinais de desequilíbrio externo, a carga tributária deve ser significativamente menor.
A taxa básica de juros deveria ser reduzida, acompanhada do anúncio de, a partir de agora, seria sempre fixada [em termos reais ou nominais?] abaixo da taxa nominal de crescimento da renda.
Simultaneamente, deveria-se promover a modernização do sistema monetário, substituindo as LFTs e as chamadas Operações Compromissadas (R$ 1,15 trilhão), hoje representando metade da dívida pública, por depósitos remunerados no Banco Central”.
Essa medida de substituição das operações compromissadas por esses depósitos remunerados eu acho bem-vinda, porque diminuiria substancialmente a dívida bruta.
Quando ao fim das LFTs, em uma economia historicamente instável em termos inflacionários e com alta volatilidade das taxas de juro, sou contra: os investidores, inclusive todos os trabalhadores com formação universitária com necessidade de cuidar de suas Finanças Pessoais para complementar aposentadoria, ficariam sem uma proteção pós-fixada crucial. Nesta instável economia de endividamento, renda fixa não pode ser prefixada sob o risco de a marcação-a-mercado desvalorizar os recursos para aposentadoria.
Adicionalmente, diz Resende, “seria dado acesso direto ao público, não apenas aos bancos comerciais, às reservas remuneradas no Banco Central. A modernização do sistema, com redução de custos e grandes ganhos de eficiência no sistema de pagamentos, passaria ainda pela criação de uma moeda digital do Banco Central, que abriria o caminho para um governo digital e desburocratizado”.
Resende não explica o que seria esse “bitcoin” do Banco Central do Brasil. Na realidade, a maior parte da moeda em circulação já é “invisível”, contábil, escritural, ou seja, digital. A meca de todos os pagamentos serem realizados via cartões de crédito ou débito, de modo a serem rastreados, se choca com o dinheiro sujo ou “frio” dos corruptos, criminosos organizados, sonegadores, pastores arrecadadores de dízimos, etc., sem falar na informalidade dos “sem cartões”. Eles têm bancadas fortes em defesa de seus interesses.
“Para garantir a eficiência dos investimentos e o ganho de produtividade, deveria-se promover uma abertura comercial programada para integrar definitivamente a economia brasileira na economia mundial. O prazo de transição para a completa abertura comercial deveria ser pré-anunciado e de no máximo cinco anos”.
Essa é uma revolução mental necessária em boa parte dos economistas desenvolvimentistas. O capitalismo de compadrio protecionista é pior em relação ao capitalismo liberal de mercado. O desafio é ter “um capitalismo de Estado misturado com socialismo de mercado”. Mirem-se no exemplo dos chineses.
Por fim, mas não menos importante, para Resende, “seria fundamental criar mecanismos eficientes, idealmente através da contratação de agências privadas independentes, para avaliação de custos e benefícios dos gastos públicos em todas as esferas do setor público”. Os membros da Sociedade de Executivos possuem essa cultura de resolver tudo via “contratação de uma consultoria”. Transferem o problema para terceiros, gastam dinheiro público e não resolvem nada no aparelho de Estado com essa promiscuidade entre o público e o privado.
“A política fiscal é da mais alta relevância para o bom funcionamento da economia e para o bem-estar da sociedade. Compreender que o governo não tem restrição financeira não implica compactuar com um Estado inchado, ineficiente e patrimonialista, que perde de vista os interesses do país. Ao contrário, redobra a responsabilidade e a exigência de mecanismos de controle e avaliação sobre a qualidade, os custos e os benefícios, dos serviços e dos investimentos públicos”.
Na verdade, o olhar neoliberal é obsessivamente dirigido contra o Estado – e não se enxerga! Não vê ou analisa se o setor privado brasileiro necessita de incentivos estatais para ter alguma iniciativa particular! A baixa qualificação profissional e a indisponibilidade de capital, inclusive cultural, não impede aqui germinar uma sociedade de empreendedores substitutos dos desempregos em via de desaparecimento, devido à 4ª. Revolução Industrial?
“Estas linhas gerais de políticas, sugeridas pelo novo paradigma macroeconômico, correm o risco de desagradar a gregos e troianos. Não se encaixam, nem no populismo estatista da esquerda, nem no dogmatismo fiscalista da direita”, afirma Resende.
Esse discurso “centrista”, típico de ex-tucanos em busca de um partido para chamar de seu, seja com a Marina, seja com o Ciro, é um “poço de mágoas rancorosas”. Acabam no lugar-comum antipetista de xingar “o populismo estatista da esquerda”. No fundo, adotam um discurso de ódio ao povo brasileiro, culpando-o por seus infortúnios.
“Como observou, de maneira premonitória, Abba Lerner, em seu ensaio de 1943, os princípios das Finanças Funcionais são igualmente aplicáveis numa sociedade comunista, como numa sociedade fascista, como numa sociedade capitalista democrática. A diferença é que se os defensores do capitalismo democrático não os compreenderem e adotarem, não terão chance contra aqueles que vieram a adotá-los”.
Em outras palavras, a China e outros países orientais mais pragmáticos e menos ideológicos adotaram as Finanças Funcionais. O velho mundo ocidental permanece, ideologicamente, paralisado e estagnado com a adoção das Finanças Públicas saudáveis segundo critérios orçamentários de “dona-de-casa doméstica”.
No primeiro ensaio do livro “Juros, Moeda e Ortodoxia“, Resende sustenta: “durante o século XX, o liberalismo econômico perdeu a batalha pelos corações e pelas mentes dos brasileiros. Embora a história tenha mostrado que seus defensores, desde Eugênio Gudin, estavam certos sobre os riscos do capitalismo de Estado, do corporativismo, do patrimonialismo e do fechamento da economia à competição, foram derrotados porque adotaram um dogmatismo monetário quantitativista equivocado. Tentaram combater a inflação promovendo um aperto da liquidez. O resultado foi sempre o mesmo: recessão, desemprego e crise bancária. Expulsos do comando da economia pela reação da sociedade, seus defensores recolhiam-se para lamentar a demagogia dos políticos e a irracionalidade da população”.
Na verdade, esses liberais-conservadores, elitistas e impopulares, remoem sua mágoa contra a casta dos sábios-tecnocratas desenvolvimentistas até hoje. Isso embora tenham tido exemplos de trânsfugas do quilate de Roberto Campos e outros menos brilhantes em termos de ironia.
“Quase sete décadas depois de Gudin, os liberais voltam a comandar a economia. O apego a um fiscalismo dogmático e a um quantitativismo anacrônico pode levá-los, mais uma vez, a voltar para casa mais cedo do que se imagina”. Esta é a sentença final de Resende. Estou de acordo com ela.
No entanto, acho necessitarmos ultrapassar os discursos de ódio mútuos. Não implica em amarmos uns aos outros. Quem deserta das fileiras do seu exército e passa a servir no exército inimigo é tido como um desertor assim como quem deixa o partido político ao qual estava filiado para filiar-se a outro de ideologia oposta. É difícil convencer um indivíduo a mudar de crença religiosa ou ideológica, pois ele teme ser visto como quem renega seus princípios, quem se descuida de seus deveres.
Não é o caso de André Lara Resende. Ele é fiel à ciência e não briga contra os fatos. Não chega a ser um dissidente do mainstream, mas provoca o debate de maneira proveitosa a fazer todos os economistas lúcidos repensarem suas teses. É bem verdade os dogmáticos, seja à direita, seja à esquerda, rejeitarem qualquer pensamento alheio, porque eles creem já deterem “a verdade” definitiva.
Os desenvolvimentistas brasileiros necessitam avaliar crítica e profundamente o capitalismo de compadrio aqui instalado para não repetir erros em alguma nova oportunidade política. Aprenderem a lidar com mecanismos de mercado. Não rejeitarem o critério de mérito em todas as instituições e licitações em favor dos “amigos (sic) aliados”. A impessoalidade no trato da coisa pública é uma virtude ainda a ser aprendida no Brasil, seja à direita, seja à esquerda.
Leia mais:
ANDRÉ LARA RESENDE – Consenso e Contrassenso- déficit, dívida e previdência
Armadilha Brasileira publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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